TRAVESSIA DO SAMSARA

Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Na volta ao chão,
agora,
traçando os longos caminhos



Querido avô






Há um frio nos ares da grande cidade
o inverno resiste terminar, gela nossos ossos
constrange nossos corações, incendeia o medo gelado
dificulta o passo
participa do momento, recomeço, depuração, reflito.
     
Mas olhamos de frente
temerosos, incertos.
        
Da suprema debilidade 
que brota do fundo de nossa consciência
essa consciência do quanto estamos fracos, tristes
medrosos e solitários

nasce uma flor, é preciso cuidar dela

que a estrela da manhã carece ser buscada
no cada segundo cotidiano

religiosamente
tecido de aranha
trabalhando

Relançam-se as cartas
A mesa mostra os parceiros.







Seus netos

Arakim Valente, do clã dos Aryakins
Flebeca Moleca, do clã dos Lovecas
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda



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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

De volta ao chão


Querido avô


         Cá estou, após a longa viagem. De volta, ao chão. De olho, recomeço, o caminho desenhado, junto aos irmãos e amigos. Rumo, à uma grande Felicidade sonhada, antevista.







Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda



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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Cruzando terras
às alturas, da grande Roda


Querido avô


         Segue esse seu neto por terras estrangeiras, deste outro lado do oceano. Chego a um lugar onde há uma roda, uma Grande Roda, a mais gigante. Uma grande Roda, gigante. Ainda não tinha visto algo dessa proporção.

         Entro, sento. E a Roda começa a girar, lentamente. Vou subindo, e aos poucos as paisagens vão se abrindo. Horizontes. Não visíveis para quem ou quando estamos no chão.

         Subindo. Os horizontes ficando amplos, largos, lá longe. Panoramas. Meu coração se extasia, belezas aos olhos.

         Chegamos ao topo. A Roda para. A visão mais ampla, tudo sereno, belo. Luminoso. As alturas.      

         De repente, um pensamento, um temor: E se essa Roda despenca? Não, isso não é possível, é segura, muita gente já passou por ela, estão nela agora. Seguro? Quem garante? O belo, o êxtase vira temor, a queda das alturas, anseio pelo chão seguro, os pés.

         A Roda reinicia o giro, descida. Ufa! As belezas baixando, os horizontes diminuindo, se aproximando do chão.

         E de repente, outro temor, vindo de não sei onde: e se essa Roda começar a girar tresloucada, cada vez mais rápido, rápido, nada de parar no chão, girando, girando, girando ... Um relâmpago no coração: avô, a vida não é essa Roda gigante, girando sem parar, altos e baixos, êxtases e medos, girando, girando? Como escapar dessa Roda gigante da vida sobe-desce?

         E quem construiu essa roda Gigante da vida sobe-desce?

         Estou pensando.

         Continuo me sinto um tanto só, sem namorada, nessas terras lonqínquas. Saudades, do aconchego, criar minha vida, com arte. Retornar.









Aos construtores, dessa roda mecânica a mais gigante
E a Roda Gigante da vida sobe-desce?


Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda





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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Cruzando terras
às profundezas das Minas


Querido avô


         Segue esse seu neto por terras estrangeiras, deste outro lado do oceano. Chego a um lugar onde há uma Mina famosa. Em um elevador, vamos descendo às profundezas dessa Mina, toda iluminada. Aqui bem no fundo, há um grande lago, como se fosse um mar, interligando várias cavernas, pelas quais vamos passando, dentro de um barco.

         Maravilha, as águas cristalinas, as paredes iluminadas! Uma sensação de estar nas profundezas do nosso íntimo, com suas águas calmas, e as paredes cravejadas de nossas pedras preciosas, brilhantes. Daqui não vemos mais o mundo da superfície, com suas agitações. Tudo aqui é silêncio, mistério, profundidade. Contemplo, extasiado.

         Penso nos homens das minas, os que tornaram esse acesso possível, construtores; os mineiros que trabalham no fundo das minas, sua coragem, extraindo preciosidades para o mundo lá de cima, de fora.

         De repente, as luzes se apagam. Alguma falha no sistema. Escuridão. Tensão no barco. Então, como um relâmpago de visão interna, vem uma compreensão; o fundo da mina como prisão, escuridão, medo, terror. O apavorante e obscuro íntimo da mente, desconhecido. A ânsia de sair dali, subir, subir, sair, à superfície, ao ar, luz, liberdade, espaço aberto. O terrível rondando a vida dos homens das minas, soterrados, presos, falta de ar, luz, eminência da morte, fruto da cobiça pelos ouros do mundo. Nossa morte.

         Alguns segundos, talvez minutos. E acendem-se as luzes. Alívio em todos. Não tanto em mim. No meu coração, esse gosto, lusco-fusco- da luz e escuridão desse mundo corpo cavernoso, magia inebriante que seduz, perigo e temor que sufoca, destrói. Na superfície respiro, céu aberto. E me vem aquelas sábias palavras daquele monge africano: Nibbana, o céu aberto da mente liberta.
  

         Me sinto só, sem namorada, nessas terras lonqínquas. Saudades, do aconchego, criar minha vida, com arte. Retornar ...








Aos mineiros, das Minas profundas





Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda



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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias


Cruzando terras
refugiadas


Querido avô

 Seguindo, prosseguindo, por essas terras deste outro lado do oceano, vejo povos, exilados de sua terra natal, refugiados de guerras sangrentas, disputas pelos bens materiais, pelo poder, ganância, ignorância. Expulsando para acampamentos, barracas, precárias, gente, gente, muita gente. A violência, parece se espalhar, pelo planeta Terra, como rastilho de fogo, em matagais secos. Dói, no coração, aberto, ao mundo, humanidade.





Aos que se esforçam, artesãos, em suas lutas, exílios.
Paz, aos corações


Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda




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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Cruzando terras
coração

Querido avô 

Quanto mais ando, mais se abre este coração. Dói, um grande amor, quero compartilhá-lo, diminuir sofrimentos, abrir caminhos rumo à uma grande Felicidade.  Misteriosa, ainda misteriosa, vasta.  Seria aquelas palavras do monge africano? Nibbana.







Aos que trabalham, pelo bem

  
Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda




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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias


Cruzando novas terras 
 águas estranhas


Querido avô

      E prossegue esse seu neto, cruzando terras e novas. Uma cidade sobre as águas. Que sensação misteriosa, contemplar o mar, visto de Veneza. Como se lá longe, algo. Dói em meu coração. Esse misto de  vida, beleza, pulsando, pelos olhos, ouvidos e pensamentos. E de sonho, esvanecente. Nos deixando só. Sem mais. Vem na memória, as palavras do monge africano: esta vida, apenas um sonho, fugidio.






Nas águas, um passarinho, morto,afogado.
Um canto à vida, amizade.
Contemplo,  espelho de minha própria morte.
E o depois, haverá, virá?



Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda

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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias


Cruzando os mundos
em busca do Grande Sonho

Querido avô




há um Grande Sonho
ardente
correndo nas veias
doendo no coração




Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda

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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Escapando rumo ao Sol


Querido avô

Move meu coração um fogo ardente, rebelde, avesso aos grilhões, escapando rumo ao Sol....






Projeto de viagem, barcas, cais, mundos
Lanternas imáginicas





azul no branco
o negro no branco

por quê este sol está brabo??




... navegando ...
...  saudades da minha amada ...





viver a vida é simplesmente um balão
voar pro céu azul é a missão



Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda


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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias


Aspirações ao Sol

Querido avô

         Vinha esse seu neto, seguindo, por dentro desses velhos novos mundos.

Maravilha, avô, maravilha, cada novo lugar é como um relicário de beleza e luz, misteriosa, fulgurante. O que significa, essa luminosidade, natureza, paisagens?



ponto azul
canhoneira

ponto negro
 no branco





olha aí
o Sol se abrindo
devagar






trabalho e amor




as pessoas têm dificuldades
de carinho e amor






olha ali
o Sol
se abrindo






nada a dizer
tempo de busca do amor




Mas também sinto a insatisfação, a falta, um desejo contido, insaciado. Falta uma companheira, um afeto, um contato de corpos, prazer. Insatisfação, insatisfação, insatisfação. E um impulso no íntimo, querendo algo grandioso, falando de uma vida de plenitude, beleza, amor. Mas insatisfação, insatisfação, insatisfação.






quando você tiver medo
lembre-se que não estás sózinho
lembre-se que você não está sózinho




Eis que nessas andanças, um cartaz me agarra o olho: “A vida como impermanência, insatisfação”. Fui lá. Um monge de Ruanda, de uma filosofia oriental chamada budista, africano como eu, descortinando a um público atento, uma visão da vida como impermanência e insatisfação. Pegou fundo, no meu coração. Como um relâmpago em noite escura, vi: minha vida, desde uma África machucada, como eu, Arakim, Flebeca, nossa mãe, insatisfação, desejo, falta. Ele me deu, o endereço dele em Ruanda.

Trilhas, do mistério, enigmas, vou rastrear, tudo turbilhoneia em minha mente. Aspirações, ao Sol.

Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda



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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Luzes e Gaiolas


Querido avô
        
         Não deu mais, avô. Meu amigo nordestino voltou para a terra dele, meu amigo africano também, até me convidaram para visitá-los, trocamos contatos. E eu cansei da vida acadêmica.  

         Avô, me vejo num fogo cruzado.

De um lado, meu coração me dizendo: “uma maravilha estranha, para ser realizada”.

De outro, uma forte sensação de estar amarrado, incompleto, “o que estou fazendo aqui, preso nessas salas-selas universitárias, nessas bibliotecas cheias de palavras e palavras?”

 Sinto falta de uma namorada, o desejo sexual ferve em mim, uma solidão me aperta fundo, longe de meus amigos, da nossa banda.  Me sinto como um pássaro, preso em gaiolas. Gaiolas, gaiolas, prisões, o mundo aberto e eu preso, gaiolas...

Chega! O conhecimento agora me puxa para outro caminho, estou com o pé na estrada. Rodar por esse mundo, até minhas economias aguentarem, depois voltar. Algo muito forte queima dentro de mim, achar meu rumo na vida, me sinto meio perdido, carente, meio pressentindo alguma coisa grande para realizar. Vejo luzes e gaiolas. Insatisfação, insatisfação, insatisfação.



















O que será, avô, que move meu coração rebelde, alazão indômito e confuso, desejoso, dividido, insatisfeito, temeroso?

Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda





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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Mano Véio


Mano Véio Jeremoabo

         Como tu estás, na Medicina da Neurologia? Já pronto para curar nossos cérebros destrembelados por esse mundo doido? A mana Severina nas terras do Recife, peitando os desafios para se tornar uma fisioterapeuta de mão cheia (e forte), como anda nossa mana? E a mana Clementina, nas terras baianas de São Salvador, arretada no caminho da idéia maluca da Arqueologia?

         Mano véio, estamos nós aqui, esse seu irmão desvairado, nessas terras mudernas, por entre os castelos dos tempos antigos, ô terra que três horas da tarde vira um breu da gota. Saudades da luz brilhante do nosso sertão de Icó, das nossas praias de azul Fortaleza. Alô, Fortaleza, alô Mucuripe, velas ao vento tropical, a solidão quer acabar comigo, as árvores, sem nenhuma folha, só galhos, feito espantalhos esturricados. Onde fui me meter, no rastro das fontes dos cantadores dos cordéis, mouros e bardos, logo vou para lá, terras de Andaluzia, flamenga caatinga.

         Mano veio, ‘tô riscando no papel os escuros dos olhos. Aprendido com um novo amigo, Pambhu, rastreador de suas origens africanas, arretado.

Mano véio, nossa alma cigana, está puxando, ardente, pra lá, e pra voltar. Aonde vou chegar, rubro incêndio querer, alazão desatino? E tome os riscados, corisco, que lhe mando.






Caminho por ruas escuras,
onde estarão os tesouros
nos porões do Velho navio Jamaica?


*



Deixo que o vento
sopre na cidade morta
ou eu que me sinto morto
longe de ti, meu amor, solto?
Lonely people


*



London by night
no pleno janeiro de inverno
é bonito o céu como hoje
um azul britânico, claro, mas é triste
ou são meus olhos
longe de ti, meu amor, viste?


*




No infinito espaço celeste do meu coração
caminho pela noite e canções

Meu mano é dono da guitarra mágica


*



Tantas, que a gente rola pelas estradas
sangra-e-geme
aguarda o brilho de outros tempos
enquanto prossegue a infinda busca
não sei bem do quê
mas que sabemos existir.

Nas veias para o papel
corre o azul, não dos reis
mas da gasolina
do céu de estrelas
correndo pelos vidros
dos trens, aviões,
pés.

Viajando,
recolhemos
plantamos
pouco
a volta será
plantios.


*



Aqui está meu mano, meus amigos, amigas, Amizade
os árabes, espanhóis, a Bahia
todos os amantes
liberdade


*



Geografia dos mundos
os rebeldes
nada sei,
somos
buscas, esperas


*




O Amor chama-se



Seu mano
Jeronimo Ponteio da Viola


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seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Meu amigo do Nordeste


Querido avô
        
         Conheci um amigo, ele é do Nordeste, a mãe é do sertão da Bahia e o pai é do sertão do Ceará, o nome dele é Jeronimo, mas o apelido é Ponteio da Viola. Veio estudar História, rastrear os caminhos por onde vieram os cantadores repentistas. Meu amigo africano falou dos griots, bardos que andavam pelas terras das Áfricas, levando conhecimento, dos tempos antigos, dos espíritos ancestrais, conexão.

Ele me ofereceu este desenho, inspirado numa frase de uma canção do Milton Nascimento, de quem ele também é um admirador.





E aquela criança ali sentada.



Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda



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seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Caminhos por terras estrangeiras



Querido avô

Já se passou mais de um mês nestas terras estrangeiras. Já andei por meio mundo, olhando, olhando, as ruas, os parques, tudo escurece lá pelo meio da tarde, parece filme dos tempos antigos, desses que vi ou estudei nos livros de História, tudo cheirando a meio velho, morto, ultrapassado. As pessoas são educadas, mas às vezes me evitam, sinto um quê de preconceito por debaixo do jeito educado e frio com que me olham, talvez por causa da minha pele ou porque venho de um país do hemisfério Sul. Meu orientador dos estudos é muito gentil, gosta do meu trabalho.

Conheci um rapaz africano, do Quenia, conversamos bastante sobre a África; se eu tivesse dinheiro, pegava um vôo e dava uma escapada para o meu país onde nasci. Estou pensando em fazer umas economias na comida e juntar uns trocos para isso, mas não sei se vai dar. Apesar de estar achando interessante meus estudos por aqui, estou sentindo uma solidão doída no coração. Não sei não, estou sentindo subir uma insatisfação com uma força que nunca tinha sentindo antes. Esse meu amigo me disse que é assim mesmo, coisa de primeira viagem para o exterior, dá medo, solidão, saudade dos amigos, da banda, das namoradas. De repente, me vejo perguntando: o que estou fazendo aqui? Isso aqui não é meu lugar, é tudo parado, velho. Vontade de largar tudo isso, voltar para casa. Vem uma ventania interior dizendo: isso de ficar preso em salas fechadas, bibliotecas, no meio de livros, tudo cheirando mofo, palavras e mais palavras, enquanto a vida corre lá fora, me esperando, tudo isso não tem nada a ver. É como se brotasse de dentro um chamado para a vida, lá fora, no mundo, andante, sem clausuras, solto, atravessando os mundos. Para onde? O quê? Que doidura, avô!

Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda



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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

O quê, esse destino?
Por dentro das depressões



Querido avô

         Está difícil. Voltou aquela tristeza, melancolia, sentimento de prisão, me sinto só, meio deprimido, carente. Sobe um terror, vem não sei de onde. Então ando, ando, converso comigo, revejo o passado, procurando achar o porquê, limpar a cabeça, arrancar esses pensamentos ruins, que voltam, voltam. E quanto mais tento apagar esses pensamentos escuros, mais eles voltam. Não consigo aceitar as deficiências deste corpo, fraco, limitado. O Tai Chi, que pensei que iria fortalecer meu corpo, me faz perceber ainda mais dolorosamente a fraqueza desengonçada deste corpo. Daí a depressão me afunda, e com isso me sinto mais cansado, e com isso mais dividido, deprimido. Daí volto a andar, andar, pelas ruas. Lá vou eu falar com o psicólogo de novo, às vezes fico com pena dele, que paciência, ter de me agüentar, esse sujeito atrapalhado que sou. Que enrôsco, avô!

Mas apesar de tudo, batalho!











Seu neto
Arakim Valente


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Novos mundos, Caminhos

Querido avô

Escrevo-lhe para contar um pouco da minha chegada e primeiros tempos no lado de cá do oceano. Avô, que coisa mágica, ver da janela do avião o céu lá do alto, aquele espaço azul marinho infinito, a lua brilhando sobre as asas. Com o céu da noite é bonito, misterioso, parece um sonho, algo do outro mundo, a gente quer entender, pegar, mas escapa das mãos, das palavras e conceitos! E quando abriram a porta do avião? Tudo meio cinzento, em pleno dia, que frio!!! Eu tinha saído em plena verão, aquele calor!!! Estamos aqui no inverno, todo mundo anda encapotado, e tira casaco, põe casaco. Estou tendo de me virar com uma língua diferente, me localizar nas ruas, dinheiro local, comida e tudo o mais. O quarto que me alojaram é razoável. Aqui escurece cedo. A virada do ano mexeu comigo. Um aperto no coração, uma mistura de medo, solidão e maravilhamento de estar num mundo todo diferente do nosso. Estou olhando o mundo, avô. Os povos, gente, gente. De todas as partes do mundo. Tudo tão longe, e perto, grande, e pequeno, avô. E ao mesmo tempo, uma pulsação no coração: caminhos, caminhos, caminhos...algo grandioso, avô, algo grandioso, como se esta presença em novo mundo abrisse a percepção de que há um Caminho pulsando no coração, a ser realizado. Que Caminho é esse, avô?














Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda




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Viajando para Novos Mundos

Querido avô

         Como você já deve estar sabendo, o Pambhu está viajando, vai ficar lá por um ano. Vamos sentir falta dele aqui, ainda mais agora, que a situação de saúde da nossa mãe piorou um bocado. Mas ele precisa ir, é uma oportunidade e tanto. Fizemos um sarau de despedida, vieram alguns amigos, tocamos, desenhamos (o Clube do Desenho que o Arakim criou é bem legal).

Ôba, aí vai, alguns desenhos  nossos para você.
















Clube dos Amigos do Desenho

Sua neta
Flebeca Moleca



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seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

o Tao do vazio cheio
Querido avô 
         Nosso professor de Tai Chi Chuan falou hoje sobre uma filosofia chinesa antiga, chamada Taoísmo. Gostei, isso de fluir com a Natureza: “Aquele que pudesse fazer de si mesmo um vazio onde os demais pudessem entrar livremente, estaria com tudo (Tao)”. Fiz um desenho, olha só.


Seu neto
Arakim Valente

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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

De lá eu mando notícias

Querido avô

Escrevo-lhe para contar uma notícia muito boa. Ganhei um concurso de melhor trabalho sobre o tema do racismo, e como prêmio, irei passar um ano de estudo e pesquisa sobre esse tema numa universidade estrangeira, do primeiro mundo. Mexeu um pouco comigo, pois sabe como é, muito do sofrimento dos nossos povos africanos veio da escravidão e da colonização destas terras americanas, em que meus parentes foram trazido à força e postos a trabalhar no chicote. Ir para lá tem um gosto de curiosidade e rebeldia, é como voltar a um tempo passado que ainda fica presente. Será que minha pele negra em terras do primeiro mundo não vai gerar racismos e preconceitos?  E também, viajar sozinho para uma terra estrangeira, está me dando um pouco muito de medo. Mas vou encarar, na força da minha raça guerreira. De lá eu mando notícias.

Seu neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zananda

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Tristezas e belezas


Querido avô

Pambhu já deve ter lhe contado que estamos na fase de muito estudo para enfrentarmos o terrível vestibular, muito concorrido, ainda mais quando tentamos universidades públicas. As vagas para Psicologia, minha opção, são muito disputadas.

Resolvi procurar ajuda de um psicólogo, para lidar com essa minha cabeça, rebelde e chegada numa tristeza, por causa desse corpo difícil, limitado. Porque tive de nascer e crescer assim, e não com um vigor como todos os outros meus amigos? Foi um erro da Natureza? É duro você ter uma cabeça rebelde, cheia de sonhos e desejos de viver forte, e preso num corpo débil. O psicólogo, na primeira sessão, depois de ouvir minha história e queixas, me aconselhou que eu tivesse mais afeto, tolerância e aceitação para com minhas limitações. Nada fácil, isso de aceitação, avô. Entendo, não faz sentido, ficar reclamando, não resolve, só piora, mas quem disse que lá no fundo, meu coração aceita? Acho que eu tenho de ir mais fundo dentro de mim, conhecer a mim mesmo, a vida, melhor, o porquê disso tudo, por isso escolhi a Psicologia. A poesia, o desenho e a música têm me ajudado a pôr no papel e no som meu coração rebelde, doidão, que quer muito. Às vezes vem um grande medo, de ser um carente sem solução, um desadaptado demais, como se um buraco negro fosse se abrindo e aumentando na minha frente. Caminho pelas ruas, muitas vezes solitário, olhando tudo, conversando comigo, depois escrevo, desenho: 




No fundo do coração
romântico
sou um sonhador
mas não queria viver
só de sonhos
queria vê-los real
a realidade tem sido
dura
e eu precisava mais barra
para fazer o sonho real
Passo para o desenho
meu mundo interior
às vezes sinto ele mais real
do que a realidade
mas não dá
só sonhar
batalho
muito


Seu neto
Arakim Valente



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Univers-idades


Querido  Avô

Por onde segue nosso avô-andante? Por aqui vamos, seus netos voôandando. Pressentimos em nós um horizonte muito mais vasto do que esse mundo xôxo, troncho, curral. Tudo soa cenários de papel, meio real – meio sem sentido. Ora nos sentimos impulsionados por uma estranha força, nossa juventude avião supersonico querendo romper barreiras, fogozo e irreverente. Ora nos sentimos tristes, presos, pássaros em gaiolas douradas, loucos de uma febre de viver muito, e chegarmos não sabemos bem aonde, mas algo muito bom, maravilhoso. Nascidos para sermos rebeldes.

E seguimos. Nossa mãe, em sua beleza e frágil, sentindo o envelhecer deprimindo. Arakim, lutando em seu corpo débil. Avô,  estamos nos aproximando dos vestibulares. Sinto que meu caminho é pelas Ciências Humanas, compreender o mundo, meu caminho nele, resgatar meu rumo pela África, nossos sons e danças, ardente. Arakim quer encarar a Psicologia, adentrar pelos mistérios de seu íntimo e encontrar uma saída para seu sofrimento diante do seu corpo sufocante. Flebeca vai enfrentar o temível vestibular da Medicina, conhecer o corpo humano, ajudar nossa mãe e o Arakim, no caminho da saúde. Não vai ser fácil, avô. Temos de entrar em universidades públicas, não temos dinheiro para pagar estudos, teremos de trabalhar, nos virarmos do avesso, para estudar. Nossa banda de música teve de parar por enquanto, muito estudo. Mas criamos entre nós e alguns amigos o Clube do Desenho, o Arakim sugeriu e dá boas dicas, nos juntamos e nos permitimos cada um de nós pôr no papel nossas ventanias rompantes e rabisquentas.

E lá se vão alguns desenhos para nosso avô.
Êta mundão besta e sem porteira!

Saudades
Seu neto, Pambhu Gandha











Pessoas  excitadas sofrem  porque amam e como o mundo é careta,
o amor fica lá entalado, não pode sair, deprime


Arakim Valente





Dentro de uma mulher, tem um coração de mulher
Flebeca Moleca



Palavras, os espaços profundos, céus  azuis pontilhados
bonito, azul
como os olhos dela



Pambhu Ghanda


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O amor que se procura



Meu querido neto Arakim
Muito obrigado por seu poema e desenho. Tenho-os como seu espelho, em minha frente. Como vai o Tai Chi, ajudando nas dificuldades do corpo? Muito bom, o nome que vocês deram para o grupo de música de vocês.

Veja a mensagem que lhe enviei, ao final de seu desenho.


Cuida de você. Abraços em seus irmãos e mãe.
de seu avô.



Às vezes parece tão simples
mas, é difícil, chegar nas pessoas
e trocar amor com elas.
São muitas portas e muitos medos.
Muitas vezes o que se procura não é amá-las
entregá-las o amor, o carinho
mas apenas jogar, nelas
devorar a sede do amor e do prazer por nós mesmos
a ansiedade de que o outro nos preencha o vazio.

Tenho um corpo estranho
caminhar sobre ele dói, incomoda
minha consciência renega, retrai
e acabo no chão, dividido.
Seria bom aceitá-lo, unificar-me, ser o que se é.

Atravesso,
tempos de escuridão, e medo
prisioneiro deste corpo, desta mente
embaraçada
nas cadeias, esses pensamentos
esse mundo, esses tiranos.

Abro mão de tudo,
vem o receio de cair no nada
a tristeza de tantas ofensas
que inflingimos a nós mesmos
quando em nossa cabeça
governa o esforço opressivo
dos modelos
criados, sociedades
nossos egos
enganados.

Tristeza dos tempos, renascer no abandono, na entrega
no sem resistência, relaxado, fundir-se no mundo
deixá-lo se revelar, me guiar, sem desejos, propósitos, ansiedades.

Ir, sinto o amor pelo mundo, vasto e rico
e dele nada me aproprio, apenas aceito, respiro leve
deixo os sentimentos e paisagens irem e virem
sem o comando
da consciência,
observo os movimentos,
de dentro
de fora
interiores
exteriores.

Ainda me assusta
o medo,
o nada, entrega.
Sinto que é difícil, nesse mundo
horários, convenções, rigidez
trocar o amor
com as pessoas, meu coração
às vezes, sufoca
de amor
e a cidade é dura,
os espaços, pequenos. As cabeças
cheias de imagens, expectativas,
medo, preso
ao dever ser
receio do espontâneo,
desconhecido,
a simples, carícia.
Quero dissolver-me, dissolvo, os caminhos abertos, correndo
em minhas veias, olhos.

Às vezes sinto
esta poesia,
do amor,
que busco,
ainda não encontrado
esconde
os desejos,
sexuais,
insaciados.

Uma dama, e bela, e mulher, corpo ardente
nada mais faltou, finalmente, consumado.

Que ela virá, a devida, real, prometida
e dizê-la, poderei, nenhuma dúvida sombria
eu sabia, eu sabia, que você existia, viria.

Mas o que sei, do amor, que renuncia?

Me sinto, longe, do quê? Do pressinto, que posso, ser.
Mistério, isso, de destino, estranho
e luto, me esforço

Verei? E irei, viver-hei?





Meu neto, Arakim, o amor, que tanto
procuras
será pessoa, figura, o por fim
de todas penúrias?


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Os meninos e meninas
seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Solidão de mãe mulher


Querido Avô

Por onde você anda agora? É sua neta Flebeca escrevendo. Nós por aqui vamos indo, às vezes bem, às vezes mal. Quer dizer, não tão mal assim, mas podia ser melhor. Ter dezesseis anos, ser uma moça, não é nada fácil. Outro dia no colégio, uma amiga disse que leu numa pesquisa que no mundo de hoje tem oito meninas para cada menino. Ixe, avô, o que vai acontecer com as outras sete meninas, vão ficar sem namorado, solteironas? E se eu ficar para titia? No colégio falamos dessas coisas entre nós, as meninas, às vezes dá medo. De vez em quando converso sobre isto com a nossa mãe. Avô, as coisas estão difíceis para ela. A mãe teve de vender o sítio, o único bem que nosso pai deixou. Ainda bem que o apartamento onde moramos é nosso, senão como íamos pagar aluguel?

Ficamos tristes de vender o sítio, entrava algum dinheiro da plantação, mas pouco, e era longe. A mãe disse que com a venda, dá para nos manter por um tempo, mas não muito, logo logo vamos todos ter que trabalhar de dia e estudar à noite, ou arrumar um trabalho de meio período. Pambhu começou a dar umas aulas particulares de Física e Matemática, ele é bom nisso; Arakim, com aqueles problemas de saúde, fica mais difícil. Meu colégio está oferecendo bolsas de estudo, em troca de algumas horas trabalhando junto com as crianças do maternal e da creche dos filhos dos funcionários, eu vou tentar, quem sabe, já ajudaria. A mãe arrumou um emprego de vendedora de produtos de beleza, ela vai na casa das clientes, ela é muito comunicativa, faz amizade logo. Mas, avô, eu sinto que ela sofre um bocado. Avô, não é fácil ser mulher, sozinha. A solidão dói, dá medo. Eu, o Pambhu e o Arakim, queríamos muito que ela encontrasse alguém, um companheiro bom, de coração, pra viver junto. Bem que ela tentou, mas aquele segundo casamento foi uma furada. A mãe fez cinqüenta anos, o coração está apertado, pensando, o que esperar da vida daqui pra frente? Tudo bem, ela fala que temos nós pra criar, mas só isso? Criar os filhos, trabalhar e ir ficando velha, até um dia morrer, acabou? Cuidar dos netos? Um dia nós três os filhos vamos embora, cada um pra sua vida, e a mãe, como vai ficar?

Ela começou a fazer umas aulas de Yoga, que o Pambhu arrumou pra ela, estava indo bem, mas largou. Aquele entusiasmo no começo, depois vem o desânimo, fazer pra quê? Quero estudar, ter uma profissão que eu goste, ser alguém na vida, independente. Não vai ser fácil, será que vai ter emprego e namorado pra tanta gente? Dá um aperto no coração, olhar para o futuro, procurar um amor. Li num livro de uma poetisa esta frase:

No coração de toda mulher, existe sempre a esperança
de chegar
aquele riso que anuncia
o seu amor.

Tocou meu coração. Será que os homens também não têm essa esperança? “No coração de todo homem, existe sempre a esperança de chegar aquele riso que anuncia o seu amor”. Ou hoje em dia o grande amor acabou?

Fiz um desenho, usando uma foto que ganhei.


Saudades
de sua neta
Flebeca Moleca

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seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Vindo

Querido Avô

Por aqui vamos, na luta. Mamãe anda vivendo umas dificuldades de saúde, ela está experimentando agora um tratamento homeopático. O médico é muito atencioso, conversou umas duas horas na consulta, é um jeito diferente, fez muitas perguntas sobre a vida dela. Desde que nosso pai se foi, mamãe tem enfrentado muitas dificuldades.

Estou começando a dar umas aulas particulares, para ajudar nas contas, o dinheiro está curto, vivemos bem apertados. Ainda bem que conseguimos bolsa no Colégio, senão o jeito seria escola estadual. Os amigos da escola convidam a gente para comer no shopping, não dá. Tênis novo, nem pensar, só quando furar, e bem furado. Acho que tudo isto entristece a mamãe, não poder dar pra gente o que os outros meninos têm. Quando ela tentou casar de novo, e não deu certo, acho que isso também machucou o coração dela. O sujeito era um blefe, um tipo violento, disfarçado de galã de cinema mudo. Um sedutor bem canalha! Desculpe meu desabafo, avô. Muita coisa está vindo lá de dentro da gente... Avô, por que as pessoas sofrem, mesmo quando se esforçam para serem felizes? Por que alguns nascem com o corpo defeituoso, outros têm riqueza, sucesso no amor e no sexo? Se os que sofrem é por castigo de Deus, por quê isso, avô, se Deus é bondoso? E a justiça, avô? Gente rica roubando o dinheiro do povo, só os pobres vão para a cadeia, porque só acharam esse jeito pra levar comida pros filhos. O mundo está ficando violento, avô. Ainda bem que temos nossas guitarras, pra segurar nossa cabeça. ‘Tamos tentando entender, avô, mas às vezes é muito pra cabeça, a gente pira.

Fico preocupado com o Arakim, avô. Continua triste, meio deprimido, o corpo dele machuca muito a cabeça dele, não poder fazer o que ele gostaria. Mas daí a Flebeca dá força pra gente, é uma menina legal, está crescendo, ficando uma moça. Bom ter irmãos, avô. O melhor de tudo é que descobrimos as músicas de um cantor e compositor, uau! Este é o cara, avô! Miltão. Milton Nascimento, mineiro, afro da pesada. “O” cara, avô, o cara! Que voz, que música! ‘Tamos querendo tirar todas no violão, aprender a compor coisa boa como as dele. Muita coisa está vindo lá de dentro da gente, avô, muita coisa.




de peito aberto
seu neto, Pambhu Ghanda

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Como se algo, assim, estranho


Querido Avô
 
Depois que terminou meu namoro com a Flor de Lis, ando meio cambaleando. Avô, acredito muito no Amor, me acho um rapaz meio estranho, não sei, esse meu coração, parece que vivo num mundo estranho, com se eu fosse um constante estrangeiro, sem lugar, buscando algo inalcançável. Faço de meus lápis e pinturas, quase infantis, pequenas estradas. Nem sei por que faço.
 
De uma folha branca, vejo aos poucos minhas mãos correrem, buscando, misturando cores assim por acaso. Nem mesmo sei o que faço neste estranho planeta, porque vim aqui parar, se tenho um destino a cumprir, me confundo entre o que devo, por que tudo isso. Me perco, mergulho no espaço, nem mesmo sei quem me governa. Acaso algo além de mim me governa, não sei, sinto-me apenas espantado, assim aberto, pequeno ser diante da existência, como se algo silencioso se fizesse presente de forma densa. Tudo tão denso, dentro de mim, fora de mim. Tudo tão frágil, minha vida frágil, os homens vivos, trabalhando, como se para eles tudo em volta fosse tão evidente e trivial. Eu repleto de imperfeições, confusões e erros, claro e escuro.
 
Digo em silêncio à Flor de Lis: “Meu amor, é tão difícil dizer quanto te amei, o quanto foste fundo dentro de mim, o quanto nossas distâncias, diferenças, nos afastaram. Quanta dificuldade de só ser amor, assim, simplesmente eu te amo com tudo, com toda sua história. Estou longe, muito longe, estamos muito longe de estar preparados para o Amor. A tarefa mais difícil, suprema, a do Amor”.
 
Silenciosamente saio pelas ruas, o sol apareceu hoje. Você percorreu meu sonho, quanto amor misturado com meus medos, como foi difícil não te aceitar e aceitar, em teu modo, teus limites. Então é assim, amar e não te aceitar, difícil, essa coisa de diferenças, afinidades em algumas coisas, distâncias em outras.
 
Subo as colinas da cidade, e devagar, conversando contigo, procurando entender essa coisa, de personalidade, ser, nosso jogo de forças, desejos e paredes. O perdão, o é e o não é. Estranho ser, o humano. E vou subindo as colinas, os raios de sol parecem tornar as folhas de inverno brilhantes. Tudo realça, marcado, infinitas variações, espaços, profundidades. Amor, virás? Talvez nunca puro, ilusão infantil. Mãe preta, seu filho é bonito, mora dentro de mim minha mãe, e branca, e preta, sobre o sol de julho. Nada puro, mistura, meu caminho estranho.
 
Vento, roçando as folhas em beijos quentes. Sinto frio no corpo, meu inconsciente é um baú transbordante, não sustento meu corpo entre o mundo de fora e o de dentro, busco passagens, às vezes morro, olho quietamente a morte se achegar do meu corpo, resisto. O vento nas folhas e árvores, passo horas observando os pássaros nos seus vôos graciosos, vôo junto e quase posso ver o chão aqui do alto. Fantasia, mente viajeira, navios piratas, solitário. Queria tanto que ela me entendesse, amor, tarefa suprema, árdua.




Cavalgo, e como que todo o universo é engolido por meus olhos e corre lá pra dentro, cavalos árabes que vão desintegrar meu corpo frágil. Invento, em vento, teus cabelos, canaviais, brôto vivo nas queimadas, céu azul tão azul, queria poder correr, amor de mulher, eu te amo e não te amo. Galopa fantasias e visões céleres, e meu corpo é quase mudo, e em cada traço um mundo se abriu e por ele me deixei levar, em suas cores e profundezas. É tudo tão estranho, triste e alegre, mudo. Tudo calado dentro de mim. Sim, é tudo muito misterioso, e sem fim, assim acho que é, sem fim, quem sabe... Ser humano, tarefa difícil, suprema.
 
Saudades
do seu neto
Arakim Valente
 
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Os temores de Flebeca

Querido Avô

Por quais terras anda por agora meu avô?

Por aqui vamos, saí uns dias de férias com minhas amigas da escola, foi muito bom. Falamos muito sobre nós, ser meninas adolescentes, e os rapazes. Algumas de nós querem casar logo, filhos, e uma profissão bacana. Ninguém mais quer ser apenas dona de casa. Algumas falam de namorar, mas nada de casar, essas coisas, querem curtir a vida, carreira, e viajar muito.

A gente se olha muito no espelho. Será que uso maquiagem, batom, esmalte brilhante nas unhas? É difícil ser menina, ser mulher. Às vezes fico com medo. Acho que sou feia, ninguém vai me amar. Ou quem eu gostaria que fosse meu namorado, é só um sonho, não existe. Tem hora que acho os meninos uns chatos, só falam coisas sem graça. E se eu ficar feia? Os meninos só pensam em sexo, beijar. Outro dia na festa um menino me deu um beijo. Senti uns arrepios, acho que foi excitação. Mas não me afino com ele, só fala em videogame e ser bem rico. Meu cabelo é meio esquisito, uma amiga tingiu o dela com umas faixas de vermelho. Disse que um dia vai fazer umas tatuagens na perna e colocar piercing na sobrancelha.

Avô, uma das minhas amigas me mostrou essa poesia, que a irmã dela, que estuda na 8ª série, escreveu. Tocou meu coração, muito do que sinto:

Ardemos, eu e muitas
na solidão da noite, quem nos ama?
Como aperta, me saber não amada
não desejada, meu corpo vivo, freme
e as mãos e os lábios de um amado
que ainda não existe
não me conhece, não me procura.

Por quê?
Lamento cortante
quase um grito, surdo.
Quase ninguém me vê
pois meu rosto não acham belo
meu corpo, flácido
nada magro como nas revistas, nada modelo, nada top
meus seios, nada firmes.
Dentro do biombo de mim mesmo
só eu me vejo, em minha beleza
esplendor que sou, menina, mulher.

Os meninos, quais viram, o instante?
Menina, moça, mulher: o que somos?
Delicadezas, hormônios desarmonios, voláteis anseios?
Incompletudes, sem os meninos, os homens?
Sem eles, teremos sentido?
Colocarei tudo, no ser de uma carreira,
uma profissão? É tudo só isso?

Eu, menina, feminina,
recolho-me
no centro do meu coração, candente.

Tenho medo de sofrer
sentir que a alma se perde sôlta, cabelos
cavalo desenfreado por campinas e noites
luas sopros de ventos correntes, desvelos.

Avô, um desenho que fiz, das colinas:


 
Subir aos ares no álamo
levando meu fado
sonhos de amor,
memórias, indo.

Presos à rotina
não viram o fundo
da vida
oculta.

Sua neta
Flebeca Moleca


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Inquietudes

Querido Avô
Olha seu neto de novo viajando por esses interiores. Sabe, avô, não consigo ficar muito tempo preso na cidade grande, me sinto sufocado. Estou de férias, então, pé na estrada. Conheci um rapaz nesta cidadezinha, e num papo ele me contou a história dele. Veja só:

Tenho 25 anos. Há 3 anos atrás saí desta cidade, fui trabalhar numa cidade maior. Trabalhava de estoquista numa indústria, de noite. Comia mal, dormia de dia, acordava suando. A vista ficou ruim, a saúde desgastou. Muita agitação, aqui é mais tranqüilo. Nesta cidade moram uns três mil, mas estou só. Os amigos da minha idade se foram, pra outras cidades. Trabalho aqui tem pouco, um comércio, umas fazendas de gado. Indústria não dá, é muita baixada. Na época dos escravos tinha quarenta mil, café, escoava riquezas para o litoral. Os amigos que ficaram e casaram, pararam no tempo, não dá para conversar. Os meninos que eram crianças e hoje estão com dezoito anos, conheço todos, aqui tudo é próximo, se conhece, quase parente. Mas não dá para entrosar muito, eles estão muito na frente, tem outro modo de pensar, de agir. Quer dizer que para mim, se a cidade grande me deixava nervoso por causa da agitação, aqui fico nervoso porque é tranqüilo demais, dou uma volta na praça, não tem moça para namorar, vejo um pouco de televisão, daí acabou. Acho que não dá para ficar muito assim não, reanimo o corpo e vou. Não muito longe, por causa dos meus pais, donos dessa lojinha. Tenho que pensar, o que fazer da minha vida.

Querido avô, o rumo da minha vida, o que eu quero? Ixe!

Seu neto, Pambhu Ghanda


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Os meninos e meninas
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Louco motiva


É de manhã. O trem vem nos trazendo, no cajado-guia de nosso Capitão querido avô, do interior, aqueles paranás, à grande cidade.

Serpenteando, entre paisagens.




Que caminhos, o destino quer nos abrir, possante, locomotiva, louco-motivo?

Eia avô! E seus netos, viajeirentos!

Pambhu Ghanda
Arakim Valente
Flebeca Moleca

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Os meninos e meninas
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Meu querido neto
Pambhu Ghanda, do clã dos Zanandas

Perdoe-me se às vezes demoro para lhe responder. O silêncio e a reclusão, nossos amigos também. Tão bem.

Sua carta revela sua bela e difícil interioridade. Seu olhar me lembra os viajantes sábios; hoje o conhecimento virou burocracia, ou talvez burrocracia, que pensa que o mundo se descortina apenas nos gabinetes, nas salas fechadas das escolas e nos computadores. Muitos querem se atualizar, e não vêem o que está diante de seus olhos, nas ruas e estradas. Que não se sabe como chegar nas pessoas, ouvi-las, perceber seus corações. Imagino o que às vezes você sente, essa sensação estranha de viver os muitos tipos que você encerra dentro de si. Todos nós temos vários personagens dentro do palco teatral de nossa mente, mas quantos percebem e refletem?

Não tenha medo do seu modo de ser. E se tiver, prossiga com medo e tudo. De vez em quando investigue, ponha o medo na sua frente e pergunte: do que tenho medo? Porque tenho medo? Não tente ser igual aos outros, pois pode ser que muitos deles, como você bem percebeu, estejam sendo apenas cópias de um modelo estereotipado, ocos por dentro. Não se iluda com as aparências, pode ser apenas cascas sem recheio, sem espírito. E se você assim perceber, que tal compartilhar com seus amigos seus horizontes? Amizade. Eles podem estar buscando esse amigo que inspire abertura de janelas. Seu desenho da janela.

Firme aí, meu neto. E confie no tempo.

Siga, e junto com sua mãe e seus irmãos Arakim Valente e Flebeca Moleca.

grande abraço,
de seu avô

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Os meninos e meninas

seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Querido Avô

Estou aqui em uma pequena cidade do interior. Eu e minha mochila. Sentado na praça, um rapaz me contou sobre como se faz tijolo. Uma terra especial, de liga, mas que está acabando, inventaram o concreto vazado. Amassar o barro, pôr na forma, secar no forno, cobrir quando chove. Cheio de detalhes, difícil, como tudo. Só não sabe quem nunca fez nada, que só pegou o produto e comeu. A humanidade já batalhou muito para conseguir cada coisinha, né, avô? Trabalho. Enquanto ele explicava, percebi o quanto era importante a gente ser ouvido, cada pessoa tem um mundo dentro de si, à espera de um companheiro. Quando a gente fecha a porta a um tipo de visão, de pessoas, e ficamos na nossa panelinha e achamos que é tudo, pronto, virou estátua. Quem não tem nada a perder, nem ganhar, porque descobriu que a vida é frágil travessia por muitos caminhos, muito vê, nada pede, só deixa os fluidos correrem por dentro de si, como se tudo fosse, e é, doido, e ao mesmo tempo passageiro, sem importância. Não há vitórias nem derrotas, só um coração aberto ao vento. Às vezes acho que tenho esse destino de registrar esses sentimentos. Talvez o verdadeiro africano que tenho dentro de mim seja exatamente esse viajante que tudo vê, dá toques aos outros, vai para o fundo dos bastidores e anônimo a nada se agarra porque sabe que a morte lhe espera a cada instante. Avô, será que eu sou um esquisito? Sinto como se eu atravessasse o maluco espetáculo que a vida me traz a cada novo dia e cada detalhe é amor. A fragilidade física do Arakim tem me feito olhar a vida como um mistério, como se a cada dia o possível fosse uma química entre o fazer o necessário e deixar o dia mostrar o que quiser.


Daí saí aos arredores e a cidade com suas ruelas, morros e casinhas coloniais foram passando por meus olhos, sob um céu azul muito lindo. A sensação era muito brasileira. Numa dessas ruelas, cruzei com um moleque e começamos a conversar. Ele brincava com seu caminhão e percebi que ele vivia num mundo onde ele conversava com ele mesmo, sem ter consciência disso, havia um mundo em que ele viajava e eu sem saber que mundo era esse, eu podia sentir que existia, e seu caminhão servia de tapete para a viagem dele. Seu interior era quase tudo e ele dava pouca conta do mundo exterior que o rodeava. Ver tudo isso me toca profundamente, só tenho de agradecer a generosidade da vida.

Aí vi uma mulher catando lenha. Fez um feixe nas costas. Me contou que seu marido morreu de câncer no pulmão, trabalhava numa indústria que dá empregos ao pessoal daqui. Disse que ia comprar um fogão a gás, que a madeira estava cara. Dei uma forcinha para ele levar a lenha. As crianças foram chegando. Na minha calça tinha uma estrela de metal, brinquei com eles dizendo que tinha caído do seu. Elas ficaram meio espantadas, meio sen acreditar. Aí falei da estrela cadente e elas disseram que nunca tinham visto uma, e eu insisti, até que chegou um menino e confirmou. Fiz um desenho do céu no chão e mostrei a estrela cadente, acho que elas daí acreditaram. Fui me embora, repetindo a elas olharem sempre pro céu que um dia elas viriam.

Segui e logo adiante vi umas roseiras com as rosas vermelhas mais lindas. Cheguei num campo de futebol e comecei a desenhar. Os moleques foram chegando, olhando, um chamando o outro e daqui a pouco altos papos, e eu desenhando e falando das coisas do desenho, das cores. Como se eu fosse um grande entendido nessa arte. Mas é uma sensação muito maluca você viver esses jeitos. Lá no alto um papagaio azul de rabiola branca, peito ao vento, me fascinava. Daí me deu vontade de fazer uns movimentos do Taichi naquele campo de futebol. Senti certa vergonha, as crianças olhavam, uma me chamou de marciano, deu vontade de desistir, aí resolvi encarar, puxei papo, falei que estava treinando para uma grande maratona, daqui a pouco estavam todas as crianças fazendo ginástica, dois deles até correram em volta do campo, e agora eu era o atleta. Que maluco tudo isso, avô! Percebi que com um jeitinho, calma e persistência, a gente pode vencer o medo e a vergonha que o mundo chapado cria. O mundo fica querendo que a gente seja uma forma, tudo igual, senão você é chamado de nerdi, um esquisito, e a gente vira estátua. To fora dessa , avô!

Vai junto com esse email esse desenho pra você, avô.




Escreve um email pra gente.

Seu neto, Pambhu Ghanda



(Olha, clique encima da imagem, para vê-la melhor)







Os meninos e meninas




seus Caminhos de Sonhos, e Rebeldias

Beco dos Animais


Querido Avô

Por onde anda você?
Obrigado pela dica do Tai Chi Chuan. Mestre Shang Ti é boa gente. Me falou que devo ter muita paciência com meu corpo. Que o ideograma em chinês para paciência é “Faca no coração”.
Tirá-la aos poucos. Vou conseguir, avô?


Arakim prosseguia seu caminho, quando:

Era uma vez uma noite, dessas de muita chuva, na cidade. Sapato não vencia a umidade, entrando por baixo, por cima, sem falar na que vem dos lados. Até as plantas já andavam reclamando: “Assim já é demais!” E o frio, a noite escura.

Cena Primeira

Arakim olha e vê, na casa ao lado, um homem
assistindo, na televisão: “a Dama e o Vagabundo”
antigo filme do Disney.

Arakim vê, que via, uma dama,
“um dia, terei, uma namorada bela e Guerreira?”
e eu, talvez o Vagabundo, livre, Guerreiro errante?

Imagem, fantasia, preconceito, porta dos devas-divinos, arquétipo de meninos?

Na casa ao lado, instalado no sofá, sala morna,
“seu” Percival, assistindo a televisão.
Nos seus braços, ronronando, Veluda, uma gata siamesa:
"Sabe, Veluda, estou feliz de ter encontrado essa casa.
E você, é claro.
É verdade que muito lutei, anos a fio
até chegar ao salário para alugar casa neste bairro razoável.
Nunca mais morar em bairro pobre, rua sem asfalto,
faltando água e esgoto, criança gritando,
vizinhos entrando um na casa do outro, cachorros”.

Então Percival ouviu um latido chorado,
cachorro molhado, com frio, pedindo para abrir alguma porta.
Vinha lá dos fundos da casa.

Na televisão colorida, a Dama passeava, maravilhada, pelas ruas,
com o Vagabundo, que linda noite enluarada!

Lá fora, um cachorro gania.
Percival, “abro ou não abro”, dúvida.
Sentia preguiça, mas a consciência pesava.
Foi até a janela.

Cena Segunda

Percival abre a porta do fundo.
Um cachorro olha para ele, gane, espera.
              o Tempo. o Silêncio.

Então começa a latir, bravo, feroz.
Era um cão feroz, o da casa do vizinho.
Estava meio escuro, o cão olhava fixamente, latiu mais.
Percival sentiu medo. Medo das profundezas.
O medo da fera, na noite escura.

Na televisão colorida, a noite enluarada aconchegava a Dama e o Vagabundo.
Noite azulada, amor e ternura. E sob a luz amarelada daquele poste,
a Dama e o Vagabundo sugavam fios de macarrão
até que se encontraram no mesmo fio, e chuac, um beijo.
A Dama nem se lembrava do lar.

Então a fera parou de latir, e começou a ganir,
triste e chorado. Chovia e fazia frio, no quintal.
A fera-brava virou um cãozinho, com frio, chorando.
Não é mais fera-brava, é só um cãozinho,
sem lugar para se proteger, não tem daquelas casinhas.
Vai para debaixo de uma escada, não protege muito.

Era uma noite de tempestade.
Espanta-Leão tinha muito medo de noite de tempestade.
Estava sozinho e tinha muito medo.
Procurou se acalmar. Diante do medo, não se desesperar.
Olhou bem o arredor, mediu, e fuçando, fuçando,
viu uma porta, por um vão da parede
do muro que separava as duas casas.

Trancada. Espanta-Leão arranha a porta, ganindo.
Percival titubeia, tem medo e dó.
             Tempo.

Resolve abrir. A casa do vizinho, que ele Percival nem conhecia,
estava apagada e fechada.
Aberta a porta, o cachorro entra, se abana, cabisbaixo.
Vai até à porta da frente, insinua que quer sair para a rua.
Percival acede, o cachorro sai rápido e feliz
deixando o homem enbasbacado, na perplexidade.

Na televisão, Dama voltava ao lar de seus donos
cansada de tanto deleite
sonhando com casamento próximo e cachorrinhos.
O osso seria trazer o Vagabundo
para dentro da casa aconchegante de seus amáveis donos.

Veluda, no sofá, assistia, espantada, a tudo aquilo.
Percival foi até a estante, procurar livros
de Zoologia, Psicologia.

Cena Terceira

Tempos depois, de novo a porta sendo arranhada.
Percival vai até a frente, abre a porta.
O cão entra.

Armando-se de toda coragem, desta vez Percival
exige explicações.
O cão começa dizendo seu nome:

Espanta-Leão - Pois é este meu nome. Espanta-Leão.
Sou filho de Lobo e Cão, pura raça pura.
No meu sangue, gerações de linhagem pura,
os homens sempre cuidando, evitar desvios, misturas impuras.
Trato de primeira classe. Alimentação, treino. Tudo.
Guardei a casa contra estranhos
até Leão já espantei de lá.
Nunca fui de reclamar. Algumas vezes, indo pela rua,
vi cães em situações miseráveis
pensei aqui comigo: como eu sou sortudo.

Mas não sei bem por quê, um dia cansei do quintal.
Aproveitei a porta aberta e, escapei pela rua.
Fiquei vagando, fascinado, e assustado.
Era um mundo estranho.
Então apareceu uma gata, me olhou, mediu, chegou.
Bela, no andar. Mas como era nossa arquinimiga
lati, correndo atrás dela. Ela subiu numa árvore,
e lá de cima disse:

Cena Quarta

Freelady - Agressivo, não, senhor cão? Meu nome é Freelady.
O senhor é...
Espanta-Leão - Espanta-Leão.
Freelady - Muito prazer em conhecer o senhor, Espanta-Leão.
Pelo jeito pertence à família fina.
Nunca lhe vi por aqui.
Espanta-Leão – É, não costumo sair, assim, sozinho. Primeira vez.
Freelady - Gosta?
Espanta-Leão – É, acho que sim. Um pouco assustado, muita coisa.
Freelady – Pois estas ruas são meu mundo.
Nelas fui parida e criada.
Desde cedo, a luta pela comida, dormir nos telhados.
Aprendi logo a ver os humanos.
Nestas ruas estão minha vida e minha morte.
Todo dia o desafio, o perigo, o movimento.
Assim é que sei viver
muito chão para minhas patas
muito espaço para meus olhos.

De repente, Freelady saltou para dentro de um latão de lixo.
Espanta-Leão, parado, sem entender nada.

Freelady – Ei, pula aqui pra dentro, logo.

Espanta-Leão atrapalhado, pula pra dentro do latão.

Freelady – Na sua terra não lhe explicaram
que a carrocinha é o deus-nos-acuda da gente?... Já vi que não...

Espanta-Leão não sabia se ficava mais assustado com essa tal de carrocinha
ou com aquela sensação esquisita de estar próximo daquele ser felino...

Freelady - Esses humanos são fogo. Dormiu no ponto, adeus, vai pro orfanato.
Hum, até que pelo de cachorro não é tão ruim assim.

Espanta-Leão fica sem graça, ali, espremido, no latão.

Espanta-Leão – Será...que a carrocinha...já foi embora?
Freelady espiou. - Ainda não.
Está com muita pressa, senhor Espanta-Leão?

Espanta-Leão faz um não, mais sem graça ainda.

Freelady – Não vai me dizer que sofre daquela coisa dos humanos
aquele chiado no peito por causa de pelo de gato.
Sabe, esses humanos são estranhos.
Imagine, põem a carrocinha atrás de nós
e as mulheres vivem imitando a gente
com aquelas roupas parecendo pele de onça sensual.
Sabe, estou começando a achar você um cão simpático.
Um pouco tímido demais, é verdade, mas simpático.
Não precisa ficar assim sem graça,
pode ficar tranquilo, cachorro e gata não se cruzam.

Freelady espiou lá fora, tudo em paz. Continuaram a passear.

Freelady – Esses humanos são muito malucos.
Um dia, vi um conterrâneo seu, um cachorro,
aparecendo no sonho de um homem do dinheiro.
O cachorro ficava latindo pro homem
e o homem não conseguia dormir.
o homem acordava mal humorado
ia pro escritório, soltava a raiva na secretária, e daí dormia.
A secretária soltava a raiva no assistente
E assim ia, até o menino entregador.
Aí o menino descontava num cachorro da rua.
Aí o patrão, descansado, saía pra rua.
E quem saía correndo atrás dele?
Esse cachorro, parecido com aquele do pesadelo dele.
Esses humanos são meio malucos, não acha?

Assim é que Espanta-Leão acompanhava, estranhado, essa Freelady.
Vendo como ela se virava
sem comida no prato na hora certa, sem dono, nem muros.
Entre os automóveis, frenetizados, em uma pressa estranha.
Pelas árvores, pelos becos, nas latas de lixo.
Submundo, perigoso, desconhecido, para Espanta-Leão.
Até chegarem a uma ruela. Lá muitos gatos. De noite.

Os gatos se assustaram, com a presença, inimiga.
Freelady acalmou-os, era um cão amigo.
Muitos gatos, muitas cores, e tamanhos.
Os últimos, de rua. Os tempos estavam mudando.
Havia, no ar, estranha inquietação.
Aproximou-se, deles, um gato, Gatmoon.

Gatmoon – Esperávamos por você, Freelady.
Uma gatinha fugiu de casa.
A dona da gatinha está aqui, pedindo ajuda... Quem é ele?
Freelady - Espanta-Leão, um cão amigo, parece.
Fugiu, por breve instante, do seu dono. Está vendo.
Alguma coisa me disse que hoje é dia importante para ele.
Estão todos presentes? Muito bem.
Preste atenção, Espanta-Leão.

Espanta-Leão viu a cena, Quinta.

Todos os gatos em círculo, sentados, no chão. Relaxados.
Dentro do círculo: Gatmoon e Freelady.
Sobre um caixote, Espanta-Leão.
Mais ao alto, a mulher, dona da gatinha.

Gatmoon – Estamos aqui, como gatos. Os últimos, gatos de rua.
Uma gatinha fugiu de casa, a dona quer que ajudemos a encontrá-la.
Como chamava sua gatinha?
A dona – Sonolência.
Gatmoon – Sonolência?!
A dona – É...
Gatmoon – Com um nome desse, não deve ser fácil fugir de casa.
Agora ela deve ter mudado o nome para “Acordada”.
Freelady – Vamos, Gatmoon, olha a consideração.
A dona – Estou aflita. Ela pode estar correndo perigo,
há tantos gatos malvados pelas ruas. Ela pode sofrer algum abuso.
Freelady – Entre nós, gatos, não existe isso de “abuso”.
Abuso é coisa dos humanos.
A dona – A gatinha nos pertence.
Tratei dela desde cedo, como minha filha de estimação,
como isso pode ter acontecido?
Não posso ver meu amor por essa gatinha ser maltratado.

Freelady – A nós, gatos, muito nos conforta saber do seu trato.
E também de sua lealdade para com sua gatinha.
Nós felinos somos leais.
Claro, nossa lealdade é um pouco diferente daquela dos cães.
Concorda, Espanta-Leão?
Sempre fomos livres. Não pertencemos a ninguém.
A Natureza nos deu esse corpo tranqüilo.
Bem, quando fazemos amor nos telhados da noite,
Sabe como é, nosso gemido de gozo, som de criança.
Vocês humanos é que chamam nossos gemidos de “vozes do mal”.

Gemidos amorosos pelos telhados, e lá na casa, Percival sentiu inveja
a quanto tempo o feminino lhe abandonara?

Gatmoon – Se encontrarmos sua Sonolência, iremos perguntar a ela
se ela se sente perdida.
Não costumamos entregar nossos parentes de volta para a prisão.
Ela decide se quer voltar. Combinado?

Freelady – Somos leves e livres
Não trocamos nossa liberdade por comida, nem afagos.
Não somos servis como cachorrinhos
afagando as mãos dos donos por casa e prato.
Chegamos quando queremos e partimos quando queremos.
É a nossa natureza solta de felinos.
Nossa casa é o mundo, sem portas nem correntes
e pagamos com nossa vida, atropelada nas ruas, nos asfaltos.
O preço do nosso eterno passear.

Percival se arrepiou, na sua casa, se agarrou à Veluda, bradando:
“Veluda é de raça, é de raça, não é de rua”.

Gatmoon – De raça! Foram vocês, humanos, que inventaram isso de “raças”.
Somos gatos, de muitos tipos, linhagens e misturas.
Vocês, humanos, com seus olhos turvos e carentes,
é que inventaram esse trato desigual.
É verdade que nós, gatos da rua,
temos lá nossa diferença com os cachorros
que nos ameaçam com sua ferocidade.
Pobres cães, tão facilmente usados, servis.
Veja o Espanta-Leão: pode servir a um santo
como a um tirano. Cão feroz, treinado para ferir.

Espanta-Leão rosnou com a alusão.
Depois ficou murcho.
Bem que Freelady podia tê-lo poupado dessa,
afinal, até então tinha sido maravilhoso descobrir a rua, esses mundos.

Freelady – Mas, apesar de tudo, somos animais.
Filhos da Criação.
Gatos, cães, e todos os animais.
Vocês, humanos, receberam privilégios,
E com eles conquistaram o mundo.
De onde vem o mérito de ser humano? Isso não entendemos.
Não se intimidam mais conosco, os animais.
Pouco se ligam com o que sentimos
ou com nossa força. Não precisam mais de nós.
Deixamos de ser vistos e tratados
como imagens, ícones, presenças
de verdades profundas.
Esse Poder que a Natureza lhes deu
vocês usam para nos dominar, e nos violentar.

Que tal se nós julgássemos
a violência dos humanos contra nós, animais?
A violência dos humanos contra a terra
a água e os peixes, as baleias,
as barbatanas dos tubarões cortadas, para apreços da boca humana
os tubarões mutilados
devolvidos para morrer no fundo do mar, esvaindo em sangue.
O ar, os pássaros
quem vai redimir
as aves derrubadas, os elefantes, as onças, as abelhas
as espécies extintas pela cobiça humana
as matas se acabando
o ar envenenado, as águas poluídas, quem vai?
Como se a Natureza fosse feita só para vocês.
Como se nós, os animais,
fôssemos feitos apenas para adornar suas casas
e preencher sua solidão.

Espanta-Leão cada vez mais espantado.

A dona – Também sou contra a violência, por isso vim aqui.
Freelady - Sabemos disso. Lemos nos seus olhos
a violência que você viu e sentiu em sua infância
sua família cheia de rancores, os humanos embrutecidos.
Vimos a menina assustada, dentro de você
e agora a mãe amorosa, cuidando da gatinha como filha
buscando resgatar a menina sofrida.
Mas os animais sabem dos animais
os bichos dentro dos humanos são os bichos dos humanos.

Cena Sexta

Os gatos saíram, em busca da gatinha. Espanta-Leão foi junto.
A dona, lá, sozinha, na ruela escura.
E diante de seus olhos, viu desfilar cenas.

Viu sua infância, sua família abastada, sufocante.
Viu a cidade dos homens cegos, expulsando os animais
aos Zoológicos, às gaiolas, dentro dos muros,
dentro das casas, agressividade e ternura à serviço.

Nas estradas, animais atropelados.
Crias afogadas, bebês em latas de lixo.
A vida concebida nos limites estreitos
dos quintais e porta dos fundos.
Um cão, latidos ferozes na noite, medos.
O homem, diante, da Escuridão, de si mesmo.

Viu uma criança no cinema: olhos ingênuos, um filme de cor escura
um Dragão inventado feito monstro, saindo do fundo do mar
e pobre Dragão, de assustado virou fera, morte ao inocente Dragão.

Garotos e garotas, telas de cinema, e os ingênuos King Kongs,
armas mortíferas, morte ao ingênuo gorila, apaixonado.
Filmes de terror, horror, fascínio para a mente,
excitação, fuga, ou projeção
do horror interior?

Anúncios garantem: compre-compre-seja
a potência mística, dos motores e cavalos de lata.
Neles cavalgue, és a força
touro viril, garanhão
de mim longe os bambis
é isso que querem, essas...
Morcegos: só se for Batmans.
Animal silvestre: só lá longe
bem longe, floresta
coisa de primitivo, índio.

O deserto está crescendo. A Natureza, o que ela está preparando?
Ilusões, poderes, e no final.

Cena Sétima

Espanta-Leão dorme na sala de Percival.
Percival mergulhado nos livros, desentendido.
Alguém bate à porta. Percival vai até lá e abre.

Um homem. Diz ser seu vizinho, Maramundo.
Primeiro encontro de vizinhos, após quantos anos.

Maramundo irritado, quer saber se Percival viu Espanta-Leão.
Entra na sala. Maramundo, Percival e Espanta-Leão na sala.
Maramundo dá bronca em Percival, com que direito permitiu, a passagem?
Maramundo dá bronca no Espanta-Leão, te criei, domestiquei
ingratidão, deslealdade, fuga, ousadia.

Espanta-Leão vacila, ambíguo. Lealdade?
Percival perplexo.
Veluda arrepiada.

Amor de Damas e Vagabundos
Noite enluarada, doce infância
nossos corações.

Arakim vendo. O Amor:
Será a guerreira? A sedução? A divina? O arquétipo?
Algo em todos, mais além de todos?

O que será de nós, animais
Tempos de hoje, modiernos: que opção temos?
Animal de estimação, vivo preso dentro de casa, ou empalhado na estante?
Menos ruim o primeiro que o segundo? pensou Freelady.

Na casa de Arakim: Freelady, Gatmoon e mais um, três gatos adotados.
Com direitos: saem à noite pelos telhados, voltam quando, se quiserem.
Os outros, gatos, Espanta-Leão, animais, cachorros, por onde andarão?
Adotados, fugidos para a floresta? Que floresta?


Me manda um email, avô.
Arakim Valente

(Olha, clique encima da imagem, para vê-la melhor)











Querido Avô

Sinto saudades de você.

Conheci uma amiga na escola, gente fina, me contou a história da irmã dela, veja só.


Era uma vez uma moça. Inocencia, seu nome. Silenciosamente, chegou até a pequena praça, sentou-se no banco de pedra, e no canto dos olhos soluçou. A dor e a tristeza de carregar a trava na garganta. O sofrimento da gagueira. Tanto tempo, tanto tempo... Soluçou um pouco, chorou um pouco, desanimada.

Naquela praça, um velho a tudo observava. Compadecido de sua dor, se aproximou, quieto. Delicadamente sentou-se ao lado dela, e ali permaneceu, junto ao choro, aguardando.

Quando ela cessou o choro, ele esperou o silencio se apoderar daquele espaço, e se desculpando pela intromissão, quis saber seu nome, o porquê do choro. Um leve medo contraiu o íntimo da moça. Aproximações naqueles tempos eram raros e traziam o perigo da violência, da grosseria. Eram tempos escuros, aqueles. Mas a feição serena daquele velho acalmou seu receio e ela abriu sua confidencia:

A moça – Meu nono...me é Inono....cencia.

O velho – Bonito nome. Como você. Mas difícil, também. Não é?

Inocencia - É... Hoje mais do que nunca...baba...um...teu o o...o...o...o...desespe...pero...n..não suporto m...m...mais. É horrível. Querer fafalar e não conseguir...é horrível.

O velho – Falar...é, coisa importante.... Há muito tempo que você sofre de gagueira?

Inocencia – M...muito. Desde aque...queque...la noite.

Era uma vez uma criança. Inocencia, seu nome. Naquela tarde, como em muitas tardes, brincava no seu quarto, entre seus brinquedos de madeira e trapos espalhados no seu castelo de histórias de terras longínquas, para além das turbulências do mundo dos adultos, que para Inocencia era um mundo sem muito sentido, aquela agitação toda. Algumas vezes tentou entender o que significava aquela correria toda à sua volta. Não conseguiu. Achava mais divertido permanecer adentrando no seu mundo mágico, onde ali sim, tudo era luminoso e real, e por onde ela passasse havia um lugar para si mesma. Lá ela podia ser ela mesma, a princesa, a bruxa, a vendedora de pipas. Lá tudo era simples e familiar. Inocencia era uma criança em quem muitas vezes a solitude era agradável. Não que não tivesse pequenos amigos, tinha muitos, não lhe faltava o dom do convívio. Mas sentia-se atraída por sua aventura solitária.

Naquela tarde, Inocencia brincava sozinha no seu pequeno quarto. A porta do quarto estava encostada. Traquina como era, deixou sua curiosidade levá-la até a porta e virou a chave. Não viu nenhum resultado espantoso naquilo, e voltou para dentro de suas histórias. Lá pelas tantas sentiu vontade de fazer xixi. Pediu aos seus nobres personagens de aventura que continuassem seguindo a história, ela logo voltaria. E foi ao banheiro, que ficava do outro lado da porta, até que... Sentiu que a porta não abria.

Subitamente, todo aquele mundo encantado que habitava seu quarto se desmanchou. E começou a virar alguma coisa que ela não podia compreender, algo de assustador. Já começava a escurecer. Inocencia sentiu medo, uma sensação estranha e obscura que crescia opressiva e rapidamente. Ela desprotegida diante daquela coisa que se expandia pelo quarto, aquela massa negra e desconhecida. Inocencia sentiu seu medo crescer, puxou o trinco da porta, e nada, não abria. Então ela começou a sentir medo do medo que ela sentia. Seus nobres amigos de história desapareceram e no seu lugar aquela massa escura.

Inocencia – Quem...está aí?, perguntou tremendo.

Silencio e escuridão.

Inocencia – Quem é que está aí? É você, não é, Príncipe Valente? Tornou ela a perguntar, um pouco menos assustada. – Eu sei que é você, Príncipe Valente. Você e essa sua mania de pregar sustos, escondido, pra depois me salvar. Pronto, agora já me assustou, agora pronto, pode aparecer.


Silencio e escuridão.


Inocencia - Príncipe Valente, chega, vai! Aparece...Aparece, vai! Vem abrir a porta pra mim, estou com medo.

Silencio e escuridão. O medo começou a voltar, agora mais forte. Inocencia desatou a chorar, até que ouviu uma voz.

A voz – Inocencia, não tenha medo de mim. Desculpe, não sou o Príncipe Valente. Mas não vou te fazer mal nenhum. Vim te ajudar a abrir a porta.

Inocencia voltou a ficar menos assustada. Afinal, era alguém.

Inocencia – Quequem é você?

A voz – Eu sou o menino-silêncio. Moro na escuridão do silêncio.

Inocencia - Não gosto do escuro.

O menino – Eu sei. Muitas crianças não gostam do escuro e do silêncio, e muitos adultos também. Quase ninguém vê a luz que brilha no escuro. Só enxergam o lado escuro do escuro.

Inocencia – Tenho medo do escuro. Fico com medo.

O menino – Do quê você tem medo?

Inocencia – Não sei. Medo de ninguém gostar de mim, medo de virar fumaça.

O menino – Por que você acha que vai virar fumaça?

Inocencia – Não sei, é uma sensação, esquisita.

O menino – Olha pela janela: a noite escura é feia?

Inocencia – Tem umas estrelas bonitas. Quando a gente vai acampar na praia, têm muitas estrelas...Estou de novo com medo do escuro.

O menino – Vamos fazer uma brincadeira? Faz de conta que estamos no cinema. Fecha os olhos. Está escuro?

Inocencia – Está.

O menino – O que você está vendo?

Inocencia – Uns monstros.
O menino – Olha pra eles: que cara eles têm?

Inocencia – Não sei, umas caras feias. Estou ficando com medo do escuro.

O menino – O que os monstros estão falando?

Inocencia – Acho que eles também têm medo, de virar fumaça.

O menino – Pergunta pra eles o que eles precisam pra ir embora.

Naquele instante, a mãe da Inocencia, alarmada com os primeiros choros da filha, chegou até o outro lado da porta, ouviu sua filha falando como que com alguém. A mãe se assustou, tentou abrir a porta, trancada, se apavorou. Lembrou que a televisão falava da violência daqueles tempos, do perigo dos estranhos, e começou a gritar, batendo na porta:

A mãe – Abre a porta, Inocencia! Inocencia, abre a porta!

Inocencia, que começava a olhar o silêncio e a escuridão e a balbuciar algumas palavras com aquele menino, então vieram os gritos da mãe, batendo na porta, trancada, ela no meio, de repente voltou o medo, tudo ficou demasiado estranho, perigoso. Algum fio se rompeu dentro dela. E o pânico explodiu na sua frente, e ela começou a gritar, apavorada. E a mãe gritava mais alto ainda, batendo na porta:

A mãe – Abre a porta, Inocencia! Inocencia, abre a porta!

Inocencia não entendia mais nada, só sentia terror. Impossível dizer quanto tempo aquilo tudo durou, aquela gritaria e choros. Até que um vizinho veio ao socorro, arrombando a porta. Quando entraram no quarto, encontraram Inocencia muda e catatonica, num canto.

Inocencia – Éé...sa minha his...tória. Fifi...quei muda mumu...mumu...ito tempo. Fifiz muitos tr...tra...tamentos pra voltar a fafalar....A hm...hm...gag...gagueira fificou, ap...apesar dos tratam...mentos médicos quiqui já fiz. Já entendi o tra...trauma, tetento fificar calma, como o ...psi...có...cólogo meme ensinou...mamas a gague...gueira...é hohorrível nanão conseguir fafalar...mamas, e o senhor, o senhor é daquiqui mesmo?

O velho – Eu? Não. Vim de outras terras, do outro lado dos oceanos.

Inocencia – Ah, o senhor é uum estrangeiro. De quiqui nacionalidade é o sisinhor?

O velho – Nacionalidade? Acha isso muito importante? Chega uma idade que o homem descobre que pertence a todos os lugares e não pertence mais a lugar nenhum...Infelizmente, tenho ouvido que muitos lugares do mundo, por causa da competição pelos empregos, já andam criando muitas barreiras para os imigrantes.

Inocencia – E o quiqui o senhor faz, queque...ro dizer, sua profifissão?

O velho - Profissão? Não tenho profissão. Eles aqui me chamam de andarilho. Ando pelo mundo. Sou um andarilho. Minha alegria é conhecer e ajudar os outros. Isso é profissão?

O Sol derramava seus últimos raios na praça, que ia ganhando um tom alaranjado e fosco pela fuligem da cidade industrial. Algumas raras estrelas lutavam para romper a densa camada cinzenta que as separavam dos homens, cuja batalha árdua e apressada pela vida naquelas caixas modernas muitas vezes fazia se esquecerem de olhar para o céu. Anoitecia e a moça tinha de ir. Estava mais calma agora.

No outro dia, a moça resolveu voltar e na praça lá estava ele.

O velho – Sabe, desde ontem estive pensando sobre você, e sua gagueira. Teus olhos me disseram que teu coração é puro. Tive uma intuição e gostaria de lhe ajudar. Você quer?

Inocencia – Oo..ra, não devia se in...in...como...dar.

O velho – Você quer?

Inocencia – Quequerer eu queria, mamas não tenho muitas esperanças...já tetentei mumuiito.

O velho – Tentar e errar é importante. Mas tentar a vida inteira pelo caminho errado não resolve. Talvez até hoje você venha tentando romper sua gagueira, brigando com ela...Tive uma intuição de que esse caminho não é muito útil, é um beco sem saída. Tem um reloginho dentro de você, e enquanto você não enxergar esse reloginho, você vai continuar a brigar inutilmente com sua gagueira. Pense nisso ...Agora tenho de ir.

Inocencia ficou sem entender muito essa história do reloginho que teria dentro dela. Foi-se embora, entre pensativa e decepcionada. Esperava alguma sugestão mais prática e imediata; ao invés disso, o tal reloginho.

Naquele dia sua vida parecia um pouco mais escura e solitária do que normalmente se sentia. Oprimiu-lhe o peito um cinzento vazio. Não foram poucas as vezes que acusara sua gagueira como a culpada pela sua falta de um namorado, e nesses momentos mais raiva sentia de sua dificuldade e de si mesma. Estranho destino do ser humano, assim tão dificultoso e limitado, vulnerável. Nesses momentos, o sentido da vida lhe fugia, cobrindo de névoa seu coração, retraindo-se mais para seu íntimo.

Assim, a Inocencia passou muitas noites em claro, virando de um lado para outro da cama, com aquela história do reloginho que estaria dentro dela. Seu pensamento vagava, incontrolável, pelo seu passado, aquela noite, o medo, o silencio e a escuridão, a mãe gritando, ela com medo, muda, gaga, os tratamentos, os conselhos, os sentimentos de frustração. Seria tão bom se pudesse falar como as outras pessoas, era muito difícil viver assim, no trabalho, entre amigos, nas baladas. Sem namorado. Sempre aquele engasgue.

Toda noite ela ia dormir, dizendo a si mesma que no outro dia tentaria falar com calma, até um dia conseguir. Sua longa batalha com a gagueira tinha desenvolvido dentro dela um espírito de perseverança. Mas a história do reloginho não tinha ficado muito clara. Pelo contrário, ela agora estava mais confusa do que antes, e mais insegura ainda, não sabia no quê se apoiar. Quando a tristeza parecia querer dela se apoderar, conseguia num esforço considerar que afinal seu mal não era tão grande assim, havia males piores nesse mundo, e amenizava com isso sua rotineira tristeza e depressão.

Alguns dias se passaram, até ela voltar à praça.

Inocencia – Pepensei muito esses dias sobre essa histotória do re...reloginho. Quequer dizer que tetem um relo...giginho dedentro de mim. Não entendi bem isso. Dedepois, de quiqui adianta teter consciência, já sei que fifico nervosa e quiqui preciso fificar calma, mas dadaí gaguejo, nunum consigo mumudar nanada. A conconsciencia só serve pra acacalmar minha raiva, mas continuo gaga. Nunnum adianta. Já estou cansada de revirar memeu pa...pa...passado. Quiquiqui...qui...qui eu faço pra vencer?

O velho – Nada.

Inocencia – Como aassim, nada?

O velho – Nada. Não faça nada. Fique só vendo como funciona esse reloginho da gagueira dentro de você, cada vez que ele entrar em funcionamento. Fique fora, vendo esse reloginho. Mas é preciso que você olhe não com os olhos da raiva ou da decepção, mas com os olhos do coração amoroso, porque esse reloginho ainda você pensa que é parte sua, ainda você pensa que é você. Agora tenho de ir.

Naquele entardecer, Inocencia sentiu que uma pequena luz se agitava dentro dela, excitando seu interior, mexendo no seu longo rosário de fracassos, perturbando sua quase descrença. Inocencia sentiu medo, novamente medo, medo de ter esperanças e mais uma vez fracassar, medo de não ter esperanças e ser prisioneira definitiva de sua gagueira. Mas aquelas palavras daquele velho atravessaram algumas barreiras e foram atiçar algum lugar íntimo muito estranho. Sentia-se ansiosa, seu pensamento girava fascinado como que uma borboleta atraída por uma lâmpada. Então sua gagueira era um reloginho misterioso que ela precisava decifrar e desmontar. Um danado de um reloginho que fazia dela sua vítima. Mas como é mesmo? Aquilo tudo ainda estava meio confuso. Agora tudo dependia dela, da sua paciência e perseverança, lhe dissera o velho.

O reloginho. Inocencia estava obcecada com isso, só queria ver o reloginho na sua frente. Naquela manhã, quando ela chegou, seus colegas de trabalho repararam um estranho brilho nos olhos da Inocencia. Mas como a Inocencia era uma moça de muitos altos e baixos, acreditaram que não passava de mais um daqueles momentos de alta, que antecediam a uma baixa. A reunião já ia começar, e naquele dia seriam apresentados os vários andamentos dos trabalhos.

Um a um, os coordenadores da equipe relataram os resultados, ante aos olhos e ouvidos bem atentos de todos. Quando chegou a vez da equipe em que Inocencia trabalhava, ela se antecipou, pedindo licença para falar. Todos se entreolharam um tanto surpresos, pois normalmente Inocencia evitava falar na presença de muita gente, dado o esforço penoso que era para ela e para os outros. Desta vez Inocencia parecia disposta a lançar-se a uma aventura estranha.

E Inocencia começou a falar. Calmamente, começou a relatar os resultados do trabalho, e todos acompanhando sua ousadia. Ia indo tudo bem, cada palavra que fluía provocava uma profunda sensação de alívio entre todos os presentes. Até que de repente, sem mais, veio a gagueira. Inocencia começou a gaguejar, tentou lutar com sua gagueira, soltar as palavras, todos à sua volta olhando para ela, ela tentando falar, aí ela parou. Parou. Inocencia parou.

E olhando se viu mergulhada dentro de uma região onde era tudo silencio e escuridão. Assustou-se. Mas continuou olhando. Estava dentro de si mesma. E de lá de dentro viu, lá fora, a Inocencia começando a falar. Ia bem, aí de repente as cordas vocais começavam a travar, de novo o desespero reaparecendo, aqueles olhares em torno dela, esperando, aquela aflição e expectativa, seu próprio olho interior olhando para ela brigando com a trava de suas cordas, brigando, brigando, travando, brigando, todos aqueles olhares esperando, e a aflição, a vontade e o medo do fracasso em briga no seu interior, suas vozes interiores exigindo...Sentada dentro e fora de si mesma, lá no silencio e escuridão, Inocencia via a Inocencia, Inocencia viu o reloginho, funcionando, a sutil e violenta engrenagem da sua própria prisão...Duas lágrimas correram recatadas pelo canto dos seus olhos. Inocencia levantou-se e retirou-se, quieta.

Durante longo tempo, Inocencia navegou por dentro do seu silencio. Durante longo tempo, caminhou solitária pelas ruas, olhando as coisas como nunca tinha percebido antes, o olhar no silencio. Agora podia voltar. Estaria atenta, para desativar o reloginho cada vez que ele entrasse em funcionamento dentro de si. Quanto tempo fosse necessário para isso, ela não sabia. Não tinha mais pressa. E falar, o necessário.

Naquele entardecer, Inocencia voltou à praça, queria ver o velho. Procurou, esperou, não viu o velho. Perguntou a um rapaz, que sempre vinha por ali. O rapaz se chamava Silencio. Ficaram sabendo que o velho tinha sido obrigado a se retirar daquelas terras, os donos daqueles territórios haviam criado uma nova lei, o velho era considerado um estrangeiro, sem profissão, um inútil.

Na praça, do alto das árvores despreendiam-se sorridentes, folhas de inverno, inúteis.

Flebeca Moleca




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Avô

Esses meus netos. Arakim, seu penar: como vou orientá-lo sobre a verdade do sofrimento, a efemeridade da existência? Cheio de desejo de viver deleites, aventuras, juventude ardente.

Meus queridos netos

Pambhu Ghanda, do clã dos Zanandas
Arakim Valente, do clã dos Aryakins
Flebeca Moleca, do clã dos Lovecas

Gostei dos desenhos. Ousados. Meu querido Arakim, compartilho compadecido com o seu pesar. Difícil, saber por que o destino lhe colocou nesse corpo limitado e exigente. Paciência, meu neto, muita paciência. Vamos à luta: certo, você diz que sentado, deitado, está tudo bem com o corpo. Mas quando levanta, desanda, vêm sensações instáveis e oscilantes. Respira fundo e relaxa. Repita isso sempre que puder e lembrar. E procure por meu amigo mestre Shang Ti, experimente se a prática do Tai Chi Chuan pode lhe ajudar.

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Querido Avô

Como você sabe, desde que nosso pai de repente deste mundo se foi, nossa vida mudou. Ficamos pobres. Primeiro, quando meus pais desapareceram, no conflito de Ziganda. Eu menino, três anos, refugiado vindo das Áfricas, adotado por esta minha nova querida família. Quero voltar um dia lá, será que ainda tenho parentes por lá? Ninguém soube dizer, parece que o clã dos Zanandas desapareceu, não se sabe mais deles. Agora, meu pai de criação. Nossa mãe teve que arrumar um emprego para nos sustentar. É duro ganhar a vida. Alguns parentes nossos tentam nos ajudar. Que mal fizemos para isso acontecer? Às vezes vem uma raiva, não podemos ter as coisas que queremos, que os outros meninos têm, dá uma depressão. As guitarras nos consolam, ficamos alegres, ontem tiramos um novo rock, doido. Daí, eu e Flebeca ensaiamos uns passos novos, enquanto Arakim rasga na guitarra.

Mais uns desenhos de seus netos.
(Olha, clique encima da imagem, para vê-la melhor)

Pambhu Ghanda









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Querido Avô

Por aqui vamos, iniciando. Algo dentro de nós se rebela, nos inconformando. Sonhamos com uma vida maior, não sabemos bem, o quê. Este mundo, cara de verniz, soa falso. Será que, estranhos demais, nós somos, avô?

Arakim, depois daqueles difíceis dias, em que perdeu muito dos movimentos, sente grande sofrimento. Nossa juventude, e o meu corpo torto, desconjuntado e fraco, diz ele. Sentado, fica a olhar os amigos jogando futebol, gols bonitos. Nos sentimos sós, muitas vezes. Nossos dedos, em nossas guitarras, flamengam.

Uns desenhos, de seus netos, viajeirentos.

Pambhu Ghanda
Arakim Valente
Flebeca Moleca