A
difusão de Mindfulness nas áreas de Saúde:
Benefícios e cuidados,
na perspectiva da Psicologia Budista
Arthur
Shaker
Núcleo
Neurociências, Mindfulness e Saúde
Este texto se inspira no Simpósio que proferimos sobre
este tema, junto com a equipe do Núcleo
Neurociências, Mindfulness e Saúde, no II Congresso Internacional de
Mindfulness, realizado em junho 2015, na UNIFESP.
Desde há três décadas, a prática de Mindfulness para o
lide de transtornos mentais e físicos tem se difundido amplamente nas áreas de
Saúde. Médicos, psiquiatras, psicólogos e vários outros profissionais de Saúde
têm se interessado e aplicado essa prática, como complemento aos vários
tratamentos fármacos e psicoterapêuticos.
Como,
na perspectiva da Psicologia budista, o treinamento de Mindfulness se coloca,
como se interrelaciona com as atuais práticas de Mindfulness nos contextos
clínicos, e quais alertas podem ser feitos?
Quais seus eventuais limites e riscos de empobrecimento, em relação aos
propósitos maiores sustentados pela Psicologia budista?
Coube a Jon Kabat-Zin, da Universidade de Massachussets,
o pioneirismo de abrir essa propícia perspectiva prática. Conjugando, da
psicologia budista o treinamento de Mindfulness, com exercícios de yoga e
dinâmicas de diálogos em grupo, formulou um programa de treinamento de oito
semanas, o MBSR (Mindfulness Based Stress Reduction). Os benefícios verificados nos estados mentais
dos pacientes meditadores participantes do Programa, em comparação com os
não-meditadores, inspiraram essa difusão para aplicação em outras sintomáticas,
muitas vezes resistentes à superação pelos métodos fármaco-psicoterapeuticos,
como a ansiedade, depressão, síndrome de pânico, transtorno- obsessivo-compulsivo,
obesidade, fibromialgia, entre outras.
Gradualmente, se irradiou para formulações de outras
práticas psicoterapeuticas ocidentais, como o DBT (Terapia
Dialético-Comportamental), ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso), MBCT
(Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness). Com formatos próprios, esses vários
modelos de aplicação têm participado de inúmeras pesquisas, em que se busca avaliar,
a partir de certos parâmetros empírico-científicos, os efeitos da
aplicação do treinamento de
Mindfulness a curto, médio e longo prazo, comparando com praticantes de longa,
curta experiência em Mindfulness, e os que não praticam.
O termo “Mindfulness” é uma tradução, na língua inglesa,
do termo original Sati, da língua
páli, em que há 2500 anos, Buddha transmite seus ensinamentos. Uma das
possíveis significações para Sati seria consciência,
atenção e rememoração. Voltaremos mais adiante para uma importante reflexão
sobre as implicações desse termo e suas traduções-aplicações. A primeira
tradução de dicionário teria datado de 1921 (1). Kabat-Zinn define Mindfulness
como “a consciência que surge de prestar atenção intencionalmente no momento
presente, e sem julgamento, às experiências que surgem em cada momento” (2).
As avaliações dos benefícios do treinamento de
Mindfulness nos transtornos psico-físicos provêm, de um lado, das evidências
trazidas pelos que o experienciam nos contextos das áreas de Saúde, e, por
outro lado, das evidências nas pesquisas da Neurobiologia. Há uma vasta e
variada literatura sobre o campo de estudo neurobiológico. Em seu texto
“Neurobiologia del Mindfulness” (3), Michael T. Treadway e Sara W. Lazar nos
apresentam ricos aportes. Segundo os autores, o treinamento implica em mudanças
nos recursos atencionais, com seus subprocessos subjacentes, que têm merecido
diversas pesquisas. Três seriam os ângulos envolvidos: estar alerta (ser
consciente de um estímulo); atenção sustentada; monitoramento de conflito
(permanecer centrado em um estímulo, apesar da presença de um estímulo que
distrái-entra em conflito). Observa-se nos praticantes uma diminuição da
habituação (tendência a uma atividade neuronal reduzida em resposta a um
estímulo dado, se este se repete muitas vezes).
Quais seriam os efeitos de Mindfulness na atividade
neuronal? Segundo Treadway e Lazar, um
ângulo seria aqueles advindos das eletroencefalografias dos estados
meditativos. Os resultados parecem, entretanto, ser discrepantes, talvez porque
diferentes estilos de meditação podem produzir padrões determinados. Nos
estados de meditação de relaxamento há uma associação do aumento das ondas
delta e teta; já nos estados de meditação de concentração e Mindfulness há uma
associação do aumento das ondas alfa e beta 1, e mais especificamente na
meditação de Mindfulness maior alfa e beta 1 que o de concentração. A
eletroencefalografia teria um inconveniente: é muito limitada a informação
espacial (sobre de qual parte do cérebro procede a atividade observada).
Já na fMRI (imagens por ressonância magnética funcional)
e PET (tomografia por emissão de
pósitrons), a resolução espacial é excelente, mas não temos informações
sobre os diferentes tipos de ativação dos neurônios. Mas é possível observar:
1. Ativação
do córtex pré-frontal dorso lateral (DLPFC), zona associada com as funções
executivas, tomadas de decisões e a atenção;
2. Maior
ativação no córtex cingulado, na subdivisão anterior (ACC), papel fundamental
na integração da atenção, motivação e controle motor. Na subdivisão ACC, a área
superior relaciona-se às tarefas carregadas emocionalmente; a área dorsal, às
tarefas cognitivas. As diferenças observadas estariam correlacionadas ao dado
empírico de se tratarem de monges (menor ativação no ACC, pela capacidade maior
de manter a atenção), em relação a experientes leigos (mais atividade no ACC),
devido ao menor desenvolvimento da capacidade de manter a atenção, em
comparação com os não-praticantes.
3.
Por último, haveria indicações de que o
córtex insular ou ínsula também se ativa durante a meditação: “A ínsula se
associa à interocepção, ou soma de sentimentos viscerais e instintivos que
experimentamos em um momento dado, e também é proposta como a principal região
do cérebro implicada no processamento de sensações físicas passageiras,
contribuindo assim à nossa experiência de ‘si mesmo’” (Craig, 2004). Uma
hipótese que explicaria a maior ativação da ínsula durante a meditação é que
refletiria a atenção cuidadosa do meditador pelo aumento e descenso de
sensações internas. A subregião da ínsula identificada nesses estados também
está muito ligada em várias psicopatologias (Phillips, Drevets, Rauch e Lane,
2003). A matéria cinzenta desta área é significativamente menor entre os
pacientes com esquizofrenia, em comparação com os controles (Crespo-Facorro et al,
2000; Wright et al, 2000). Também se observa atividade insular entre sujeitos
com depressão e sadios durante a indução de um estado de tristeza (Liotti,
Mayberg, McGinnis, Brannan e Jerabek, 2002), e ao experimentar dor (Casey,
Minoshima, Morrow e Koeppe, 1996) ou desgosto (Wright, He, Shapira, Goodman e
Liu, 2004). Alguns estudos também têm destacado o papel da ínsula nas emoções
geradas internamente (Reiman, Lane, Ahern e Scwartz, 1997), assim como durante
a culpa (Shin et al, 2000). Esses estudos sugerem que as anomalias na função
insular podem desempenhar um papel essencial em vários transtornos psiquiátricos.
Além
das regiões do cérebro que são ativadas na meditação, “também pode utilizar-se
as técnicas de neuroimagem para identificar diferenças específicas na estrutura
do cérebro. Em 2005, nosso grupo publicou um estudo que apoiava com firmeza a
hipótese de que a prática de Mindfulness tem efeitos a longo prazo na estrutura
cerebral. Vinte meditadores de Mindfulness com ampla experiência através de anos
e 15 controles participaram em uma comparação sobre a espessura do córtex
através da utilização de uma ressonância magnética de alta resolução. Os
meditadores e controles coincidiam em sexo, idade, raça e anos de educação
formal. Detectou-se que os meditadores com ampla experiência tinham uma maior
espessura do córtex na ínsula anterior, no córtex sensorial e no córtex
pré-frontal. Devido à importância que se dá à observação das sensações internas
que têm lugar durante a meditação, o engrossamento dessas regiões é consistente
com os informes da prática de Mindfulness (Lazar et al. 2005). Um estudo mais
recente confirmava e ampliava os resultados do nosso grupo, indicando uma maior
densidade da matéria cinzenta na ínsula anterior direita, além do hipocampo e
no giro temporal esquerdo entre os meditadores
de Mindfulness em comparação com os não-meditadores (Holzel et all, 2007)” (4).
Ainda
segundo esses autores, dois estudos chamam a atenção. Um deles examina como o
treinamento do MBSR repercutiria nas redes neurais envolvidas na experiência de
referência de si mesmo, que se divide em duas formas: autoconsciência
momentânea centrada da experiência do momento presente, e uma referência de si
mesmo ampliada em termos de características perduráveis, enfoque narrativo em
que os sujeitos consideravam seus traços de personalidade. Os dados da pesquisa
sugeririam que “um possível mecanismo de ação para a meditação de Mindfulness é
a dissociação das duas redes neurais de referência de si mesmo que normalmente
estão integradas, e um reforço na rede vinculada à experiência consistente com
os objetivos de redução de estresse baseado em Mindfulness” (5).
Um
segundo estudo (Creswell, Way, Eisenberg e Lieberman, 2007) apontaria que
“Mindfulness pode associar-se a uma melhor regulação pré-frontal das respostas
límbicas (ligadas às emoções), e que pode ajudar a explicar em parte porquê
Mindfulness é um componente útil da terapia” (6). E Treadway e Lazar,
analizando como estudos neurobiológicos recentes de meditação e Mindfulness podem
ser úteis para as aplicações clínicas, apontam resumidamente resultados
clínicos importantes:
·
Capacidade para experimentar emoções
negativas sem ficar necessariamente “enredado” nelas.
·
Fomento do afeto positivo, inclusive nas
populações clínicas.
·
Pacientes com depressão e ansiedade
mostravam uma atividade maior na eletroencefalografia na metade direita o
cérebro quando descansavam tranquilamente, enquanto que os sujeitos sem
transtorno psicológico mostravam maior atividade no lado esquerdo, e a correlação
nas mudanças observadas com uma melhor função imune.
·
O MBCT com pacientes com risco agudo de
suicídio mostra um aumento do estilo afetivo positivo, ajudando-os a manter um
padrão emocionalmente estável da atividade cerebral.
·
Menos reatividade fisiológica diante de
estímulos desagradáveis, com menos “enredamento” nos pensamentos recorrentes
que prolongariam a ativação autonômica.
·
Maior proteção contra a diminuição do
córtex cerebral que ocorre normalmente na velhice, constituindo-se numa
intervenção potencialmente poderosa contra algumas deteriorações cognitivas
devido à idade.
Poderíamos
estender os contextos de aplicações e pesquisas sobre os benefícios da prática
de Mindfulness (7). Mas vejamos como, na perspectiva da Psicologia budista, o
treinamento de Mindfulness se coloca, como se interrelaciona com as atuais
práticas de Mindfulness nos contextos clínicos, e quais alertas podem ser
feitos, não para desconsiderar esses benefícios, mas para apontar seus
eventuais limites e riscos de empobrecimento, em relação aos propósitos maiores
sustentados pela Psicologia budista.
Originado
do termo budista Sati, Mindfulness
passou a abarcar um amplo espectro de ideias e práticas, para seu uso nos
procedimentos médico-psicoterapeuticos. Usando a atenção, uma das fortes
qualidades da consciência (citta),
abre-se a possibilidade de se estar consciente do que ocorre no corpo e na
mente momento a momento, e com isso regular a relação com as sensações e
sentimentos para uma direção mais equilibrada, ao invés de tentar controlar ou
suprimir as emoções e estados mentais difíceis e ameaçadores. Rememorando,
através de sati, a mente de estar
intencionalmente consciente e atenta, concentrada, com amor ilimitado (metta), aceitação inicial e compaixão (karuna), e a partir dessa base,
transformar os padrões não-saudáveis entranhados na mente, que produzem
infelicidade, as emoções aflitivas como a raiva, a cobiça, que nos trazem danos
e aos outros.
Não
julgamento, aceitação e compaixão passam a ser incluídos em Mindfulness, para a
diminuição dos transtornos clínicos. Consciência da experiência presente com
aceitação (Germer, Siegel, Fulton, 2005), “consciência afetiva”, “presença
sincera”, compaixão consciente” (8). Esses autores lembram que a inclusão da
aceitação encontra sentido para a maioria dos psicoterapeutas, pois os
pacientes vêm em uma situação de muito sofrimento. Acolhendo-os, ajudando-os a
observar esses sintomas, aceitá-los com compaixão num primeiro momento, sem
autocrítica, julgamento ou culpa, abre-se com a compaixão o espaço para
investigar esses sintomas como surgem a cada momento, não se deixando arrastar
por essas torrentes sintomáticas, buscando modos hábeis de deixá-los vir e
passar, sem se identificar com esses sintomas e pensamentos aflitivos, evitando
fugir do momento presente em busca ansiosa por momentos e objetos prazerosos.
Ao invés de reatividade desencadeada pelos padrões condicionados de apego e
aversão, o que realimentaria esses padrões, o treinamento de Mindfulness
permitiria uma resposta mais hábil diante desses sintomas.
A cultura ocidental passou a incluir no termo Mindfulness
um conjunto de práticas não apenas no âmbito do cultivo do amor ilimitado (metta), concentração (samadhi) e introspecção (vipassana), mas também técnicas de
visualização, entre outras. Também “meditação” é um termo bastante vago, e
inclui práticas muito variadas, o que dificulta o discernimento e avaliação
sobre seus princípios e efeitos. “Meditação” é um termo de origem ocidental – o
termo budista é bhavana, que
significa “desenvolvimento mental”. Assistimos atualmente a difusão da prática
de Mindfulness no campo da Educação e no mundo empresarial. No campo da
Educação, a descrição de Mindfulness, em Ellen Langer (1989) como “um processo
cognitivo que implica abertura, curiosidade e consciência de mais de uma
perspectiva” (9); no campo empresarial, as colocações de Richard Boyatzis e
Annie McKee (2006) sobre a prática de Mindfulness “para observar a realidade
emocional na empresa e evitar enfoques estreitos e a multitarefa constante”
(10). O termo “burn out”, como o estresse e desalento de profissionais em
empresas, começa a surgir como tema de investigações para o uso da prática de
Mindfulness.
E como a Psicologia budista, em suas raízes originais, veria
esse amplo espectro de difusão de Mindfulness?
Um
primeiro aspecto, apontado pelo monge budista Ven. Piyadhammo, refere-se ao
formato de treinamento de oito semanas. Historicamente, a formatação de retiros
budistas em tempos definidos, como o de dez dias, é algo que foi feito a partir
dos finais do séc. XIX – inícios do séc. XX, como uma adaptação, certo
enquadramento do treinamento monástico contínuo para viabilizar o acesso aos
leigos. O quanto não se cria com isso, na mente dos leigos, a ideia, e os
riscos ilusórios, de “treinamento em tempo determinado”, após o qual se
tenderia a “recair na mente dispersa” na vida diária?
Um
segundo aspecto a destacar seria o da tradução para sati. Da tradução como
“Mindfulness”, a mais frequente nas línguas ibéricas aparece como “plena
atenção”. Convém lembrar que há outra palavra em páli para “atenção”: manasikara, que significa “advertência mental,
reflexão. É a 1ª. confrontação da mente com um objeto. A atenção prende o
objeto aos fatores mentais associados. É, portanto, o fator proeminente em duas
classes específicas de consciência: advertência nas cinco portas os sentidos e
na porta da mente. Esses estados de consciência formam o 1º. estágio do
processo da percepção” (11). A adição do adjetivo “plena” ao termo “atenção” não
parece ser suficiente para exprimir a complexidade envolvida no importante
termo sati. A atenção comum é uma
faculdade básica e universal que está presente em qualquer tipo de estado
mental, e “caracteriza os segundos iniciais de simples conhecimento de um
objeto, antes que se inicie o reconhecer, identificar, e conceitualizar. Sati pode ser entendido como um
posterior desenvolvimento e extensão temporal deste tipo de atenção, pelo
acréscimo da clareza e profundidade à usual e muito curta fração de tempo
ocupada pela atenção simples no processo perceptivo” (12). A semelhança na
função entre sati e atenção se
reflete na referência ao termo yoniso manasakira,
“atenção sábia”, que funciona como nutrimento para Mindfulness e o claro
conhecimento.
Buddhadasa
Bhikkhu, renomado monge budista tailandês, define Sati como “a habilidade da mente de conhecer e contemplar a si
mesma. Rememoração, conscientização reflexiva, sati é veículo para pañña,
sabedoria. Sem sati, a Sabedoria não
tem como ser desenvolvida. Sati não é
memória, embora as duas sejam relacionadas. Sati
nos permite estar conscientes sobre o que estamos experienciando no corpo e
na mente, momento a momento, e o que devemos fazer para nos libertar do
sofrimento. Sati é caracterizada pela
rapidez e agilidade” (13). Assim, “Consciência Atenta” poderia ser uma
expressão mais próxima do sentido original de sati.
Sem
nos deter em demasia no campo linguístico, devemos nos perguntar: Como usamos Sati? Através do desenvolvimento mental
(bhavana) nas Quatro Fundações ou
Direcionamentos de Sati, Satipatthana,
investigando a vida dos quatro objetos que compõem nossa vida psico-física: o
corpo (kaya), as sensações (vedana), os estados mentais (citta) e as atividades-objetos mentais (dhammas). O Satipatthana Sutta, o Anapanasati Sutta e o MahaSatipatthana
Sutta, presentes respectivamente no Majjhima Nikaya 10 e 118 (Sermões de
Extensão Média) e Digha Nikaya 22 (Sermões de Extensão Longa), dos ensinamentos
do Buddha, são a base do treinamento de Sati.
Importante
entendermos que, na perspectiva budista, corpo e mente não são vistos como
entidades substantivas, mas como processos condicionados e condicionantes, momento
a momento. Fluxos de causas, condições e efeitos. Corpo e mente são agregados
processuais: os cinco agregados de corpo, sensação, percepção, formações
mentais e consciência, num constante surgir e desaparecer. a consciência
é vista como um processo cognitivo, que se vale de suas qualidades-faculdades
para contactar, processar e gerar efeitos, saudáveis ou não-saudáveis. A
atenção é uma dessas qualidades, cuja tônica depende da intenção (cetana) presente. Sati, a consciência atenta, é uma das qualidades importantes nesse
processo.
E
se Sati nos permite estar conscientes
sobre o que estamos experienciando no corpo e na mente, momento a momento, e o
que devemos fazer para nos libertar do sofrimento, então devemos nos perguntar:
de qual sofrimento a Psicologia budista está se referindo? E qual a causa do
nosso sofrimento? São duas perguntas-chaves interconectadas, e sua compressão
correta é fundamental, pois dela extraímos as soluções efetivas. “Sofrimento” é
uma das possíveis traduções para o termo dukkha
(em páli). Outros significados seriam
“insatisfatoriedade”, “o que é difícil de suportar”. Nascer é sofrimento,
envelhecer, adoecer, morrer é sofrimento; não ter o que se quer é sofrimento;
ter o que não se quer é sofrimento; não conhecer as verdades que conduzem ao
fim do sofrimento é sofrimento. E onde se produz o sofrimento? No corpo e
mente, nos cinco agregados de corpo, sensação, percepção, formações mentais e
consciência. Os cinco agregados do apego são sofrimento. Se olharmos com
profundidade e clareza esta Primeira Nobre Verdade formulada pelo Buddha,
veremos que todos os tipos de transtornos mentais e físicos estão incluídos
nesta Nobre Verdade. Corpo, sensação, percepção, formações mentais (nelas se
incluem os pensamentos, as emoções, a imaginação, a memória) e consciência não
são sofrimento em si. São o que são: fenômenos impermanentes.
Então
qual a causa do nosso sofrimento? É o apego aos cinco agregados que é
sofrimento, apego movido pela cobiça, o ódio e a ignorância. Na Psicologia
budista, esta causa é referida como tanhã,
a sede ardente pelos objetos sensoriais (kamatanhã),
pelo existir (no mundo condicionado e fenomênico, bhavatanhã), e pelo não-existir (o escape do sofrimento da
existência, pela auto-aniquilação, abhavatanhã).
Cobiça e ódio são duas faces da mesma moeda, o apego e a aversão. Cuja raiz é a
ignorância (avijja). Ignorância de
quê? Temos uma percepção distorcida sobre a realidade, seja do corpo-mente
(“nosso mundo”), seja do mundo externo. Não vemos com clareza as três
características deste corpo-mente e de toda a realidade fenomênica existencial:
que são impermanentes (anicca), por
isso insatisfatórios (dukkha) e
carentes de uma substância imutável (anatta).
A
ignorância sobre a lei da impermanência nos induz a ver a vida apenas na sua
face prazerosa, nos induzindo ao apego, a desejar que o prazeroso permaneça,
não vendo sua face inerentemente desprazerosa, nos induzindo à aversão em suas
várias formas (irritações, ressentimentos, raivas, ódios, fúrias), desejando
que o desprazeroso, o desagradável, não surja. A ignorância sobre a lei de que
o que é impermanente (e esta é a natureza de todos os fenômenos físicos e
mentais) é por isso insatisfatório (não nos conduz à satisfação-felicidade
plena, duradoura) nos induz à delusão do correr atrás dos objetos, mas que por
serem impermanentes, estão sempre surgindo e desaparecendo, nos frustrando. A
ignorância sobre a verdade da impessoalidade dos fenômenos corpo-mente nos
induz à delusão do “eu”, esta pseudo-identidade que criamos e nos apegamos, nos
identificando com este corpo-mente, e por isso experienciamos os frutos amargos
dessa delusão do “meu corpo sou eu; as sensações são minhas sensações; as
percepções são minhas percepções; os pensamentos, emoções, imaginação, memória são
meus pensamentos, emoções, imaginação, memória; a consciência é a minha
consciência”. Em suma: “isto sou eu, isto é meu, isto é o meu eu”.
Corpo
e mente, embora estejam entranhados um no outro, é a mente que conduz o
processo. Se movida pela cobiça, o ódio e ignorância, conduz a várias formas de
sofrimento (pesar, lamentação, dor, tristeza, frustração, depressão, medo), que
reverberam nos danos ao corpo, que por sua vez retroalimenta os danos mentais,
num ciclo interminável de causas-efeitos, renascimentos, seja que entendamos
renascimento dos cinco agregados momento a momento, ou de uma vida a outra.
Isto é o samsara, o incessante
turbilhão do vir-a-ser, com todas suas características: nascer, envelhecer,
adoecer, morrer. Até quando queremos isto? Esta é a Segunda Nobre Verdade
realizada e transmitida pelo Buddha, e que deve ser compreendida.
E
se a cobiça (apego), ódio (aversões) e ignorância são, em última instância, as
causas dos transtornos mentais e físicos, então abandonando essas causas,
superamos o sofrimento, e isto nos conduz a uma vida mais saudável,
equilibrada, sábia, e ainda à transcendência desses ciclos, à realização de Nibbana, a Realidade Incondicionada,
Plenitude. E se não quisermos considerar essa possibilidade transcendente, ao
menos podemos viver esta vida melhor. Esta é a Terceira Nobre Verdade que deve
ser vista. E isto não depende de controvérsias sobre religião ou não religião,
se o treinamento de Mindfulness deve ser laico ou não-laico, ou se devemos ser
budistas ou não-budistas para praticarmos. Estamos no âmbito da pura ciência da
mente, verificável empiricamente em nós mesmos, momento a momento. Ehi passiko, venha e veja, dizia o
Buddha. Se a prática nos for útil e sustentável aos nossos olhos
investigativos, a seguimos. Se não for, deixamo-la de lado.
E
se estas são as causas de todos os transtornos físico-mentais, como superá-las?
Como um bom médico e terapeuta – e o Buddha é um exemplo disso- vemos a Primeira
Nobre Verdade como a sintomática que traz o paciente em busca da cura, a Segunda
Nobre Verdade como o diagnóstico, a Terceira Nobre Verdade como a possibilidade
da cura pelo diagnóstico correto. Mas e o remédio? A prática do Nobre Óctuplo
Caminho, a Quarta Nobre Verdade. O cultivo, treinamento das oito nobres
qualidades da mente que contra-agem sobre essas causas e conduzem gradualmente
à cura. Oito qualidades organizadas em três grupos: o grupo da Sabedoria (pañña), o grupo da Ética (sila) e o grupo da Concentração (samadhi), do qual Sati, Mindfulness faz parte.
No
grupo da Sabedoria, está a compreensão
correta (sobre as três características de todos os fenômenos:
impermanentes, insatisfatórios e carentes de uma substância, um “eu”, imutável)
e o pensamento correto (do não-apego
à cobiça sensorial, e cultivo à renúncia-generosidade e compreensão de que nada
deste mundo realmente nos pertence; não-animosidade e cultivo da bondade-amizade
amorosa; não-crueldade e cultivo da compaixão).
No
grupo da Ética, está a fala correta
(não-mentira, não-fala que fere, divide, ou inútil), a ação correta (não causar sofrimento aos seres, não tomar o que não
nos é dado gratuitamente, vigiar as portas dos sentidos, não se intoxicar com
substancias físicas e mentais que anuviem a mente) e o modo de vida correto (basicamente, o sustento da vida através do
trabalho que não cause sofrimento a nós e aos outros).
No
grupo da Concentração, estão o esforço
correto (evitar condições que criem estados mentais não-saudáveis, e se
surgirem, abandoná-los; cultivar e fortalecer estados mentais saudáveis), sati-mindfulness correto e a concentração
correta (que conduz a estados mais focados e sublimes).
Já podemos perceber como a prática de Sati-mindfulness
se insere, em sua raiz, num campo amplo e profundo de treinamento. Não se trata
apenas de cultivar uma atenção contínua, mas a Sati se conecta o importante adjetivo correto, samma sati. Um
ladrão tem uma mente muito atenta e concentrada para efetuar o roubo, mas a
intenção é não-saudável, incorreta, pois baseada na cobiça, por isso Sati,
assim como a concentração, nesse caso, não são saudáveis, corretos. E o que é a
prática de Sati-mindfulness correto, hábil, saudável? É o cultivo da
consciência atenta, diligente, com visão clara, liberdade, em um campo aberto e
amplo de compreensão, livre do desejo e pesar em relação ao mundo (14). Sati-mindfulness
é o guardião que vigia e protege a mente da invasão e proliferação de conteúdos
do apego, ódio e ignorância. Sati-mindfulness é o fator que deve estar presente
junto a todos os outros sete fatores do Nobre Óctuplo Caminho.
É
dito no Mahasatipatthana Sutta que a prática Sati-mindfulness correto, hábil,
saudável está na contemplação do corpo no corpo, da sensação nas sensações, da
consciência na consciência, do Dhamma (as verdades, as leis das coisas como
elas são) nos dhammas, os objetos-atividades mentais.
E
como praticamos Sati-mindfulness correto nesses quatro objetos (corpo e mente)?
De forma ardente, diligente (com energia, esforço correto), com consciência
atenta (Sati-mindfulness) e com clara compreensão, sabedoria, sem cobiça e
aversão ao corpo e mente, em seu surgir e desaparecer momento a momento, como
fenômenos impermanentes, insatisfatórios, carentes de um eu substancial,.
Esforço, mindfulness e compreensão corretos são os três fatores cardinais do
treinamento do Nobre Óctuplo Caminho, devem estar sempre presentes em nosso
treinamento para a reeducação mental. Todos os oito fatores ou qualidades
mentais são importantes, mas esses três são cardinais, muito importantes. Os
oito fatores são como os aros de uma roda, devem estar equilibradas, se apoiando
mutuamente, para fazerem girar a Roda da Vida no sentido da Felicidade, oposta
à roda do sofrimento, em suas causas e múltiplas manifestações sintomáticas.
Sati,
Mindfulness, nos ensinamentos budistas originais, aparece em três grandes
contextos. Como o 7º. Fator-Qualidade mental de treinamento do Nobre Óctuplo
Caminho, conforme visto. Como a 3ª. Faculdade das cinco Faculdades Espirituais:
Confiança-Fé em nossa possibilidade de desenvolvimento mental-espiritual,
Energia, Consciência Atenta (Sati-Mindfulness), Concentração e Sabedoria. Se imaginarmos uma balança, Mindfulness seria
o fiel da balança para equilibrar a relação entre Confiança-Fé/Sabedoria e
Energia/ Concentração. Muita Confiança-Fé sem Sabedoria conduz ao fanatismo,
cegueira; muita Sabedoria sem Confiança-Fé conduz à arrogância, presunção,
frieza intelectualista; muita Energia e pouca Concentração conduz ao
sobre-esforço extenuante; muita Concentração e pouca Energia conduz um estado da mente rígida, como uma estátua
de pedra.
E
Sati-Mindfulness como o 1º. dos Sete
Fatores do Despertar: Sati-Mindfulness, a Investigação (das realidades/leis do
corpo-mente), Energia, Êxtase, Tranquilidade, Concentração e Equanimidade.
Usando
um foco propício (a respiração, por exemplo, entre outros), treinamos a mente a
se manter presente no foco escolhido (e sempre que notamos que ela se distrái -
e é Sati que realiza essa importante função -, aceitamos num primeiro momento,
relaxamos, não nos criticamos e com gentileza e firmeza trazemos a mente de
volta para o foco atencional - e é o Esforço-energia, o 6º. Fator do Nobre
Óctuplo Caminho que realiza essa ação -, e com isso geramos gradualmente
tranquilização e concentração (samatha),
que servirão de base para a mente investigar introspectivamente, à luz das
Quatro Nobres Verdades, nossos processos físico-mentais (vipassana), em sua tríplice característica de impermanência, insatisfatoriedade
e impessoalidade.
E
com qual direção? Removendo a cobiça/desejos não-saudáveis (que nos mantém
presos ao sofrimento da existência condicionada) e o pesar/descontentamento
pelo mundo (dos agregados corpo-mente). Pela gradual compreensão de que: se
cada um dos cinco agregados é impermanente, e por isso insatisfatório, como
poderia ser um “eu – meu”? Portanto nossa relação terapêutica com cada um dos
cinco agregados é vê-los como: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu
eu”. Libertando a mente do apego/aversão aos cinco agregados do apego.
Sabemos
que o treinamento de Sati/Mindfulness é longo, e depende das condições e fases
em que cada paciente se apresenta. E depende de até qual nível de reeducação
mental o paciente se dispõe a empenhar-se. A avaliação cuidadosa e realista do
terapeuta-instrutor é fundamental. O cuidado que aqui queremos apontar é no
sentido de alertar sobre certos riscos do treinamento de Mindfulness. Ao se
desconectar das raízes profundas de suas estruturas originais budistas, ao não
incluir a fundamental importância do cultivo de uma Ética, ao não abranger as
motivações de abandono da cobiça, ódio e ignorância sobre as causas do
sofrimento, ao desconectar a relação de responsabilidade não só do praticante
como também dos meios sociais pelas causas do sofrimento, pode se tornar uma
panacéia superficial e banalizante, um recurso que, se de um lado, traz certos
benefícios mais imediatos e visíveis, por outro lado, pode se reduzir a apenas
um amortecedor de sintomas aflitivos, a um reforçador das práticas cobiçosas do
mundo contemporâneo, e estancar o processo mais profundo de efetiva superação
dos transtornos físico-mentais, tanto ao nível pessoal como social, solapando
os nobres propósitos de onde foi retirado (15).
Para
evitar essas possíveis consequências a curto, médio e longo prazo, alguns
requisitos merecem ser aqui colocados e enfatizados. O próprio terapeuta
deveria estudar e compreender as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Óctuplo
Caminho. O próprio terapeuta deveria ser um assíduo meditante, em práticas
formais, informais e retiros de várias durações, isto independente de se sentir
budista ou não. Pode ser conveniente o terapeuta-instrutor abrir gradualmente
ao paciente, para opção dele paciente, sobre o amplo contexto original das
raízes desse treinamento, e a perspectiva última do treinamento de Mindfulness:
o Despertar, a libertação total do sofrimento, do qual os transtornos físicos e
mentais, em seus variados graus, são as sintomáticas manifestas de causas mais
profundas, e na maioria das vezes ocultas à consciência dos pacientes, e porquê
não dizer, da maioria dos seres humanos.
Notas
(1) Pali-english
Dictionary. Davids, T. e Stede. W. (Eds.). New Delhi, Índia: Munshiram Manoharlal Publishers Pvt, Ltd,
1921/2001.
(2) Mindfulness based interventions in context: Past,
present and future. Kabat-Zinn, J. , Clinical
Psychology: Science and Practice, 10(2), 144-156, 2003.
(3) Neurobiología del Mindfulness. Treadway,
Michael T., e Lazar, Sara W. , Manual
Clínico de Mindfulness, p. 117-138.
(4) Differential engagement of anterior cingulated and
adjacent medial frontal cortex in adept meditators and non-meditators. Holzel, B.K,
Ott, U., Hempel, H., Hackl, A., Wolf, K., Stark, R., et al. Neuroscience Letters, 421 (1), 16-21,
2007.
(5) Treadway,
Michael T., e Lazar, Sara W. , op.cit., p. 130.
(6) Treadway, Michael
T., e Lazar, Sara W. , op.cit., p. 130.
(7) Shaker, Arthur. Mindfulness (Meditação da Consciência
Atenta), Neurociências e Saúde. Conhecimento e Prática. Coleção: Visões
Rumo ao Dhamma, SP, 2014.
(8) Germer, C., Siegel, R. e Fulton, P. (Eds). Mindfulness and psychotherapy. New York:
Guilford Press, 2005.
(9) Langer, E. Mindfulness.
Cambridge, MA: Da Capo Press, 1989.
(10) Boyatzis, R. e
McKee, A. Liderazgo emocional.
Barcelona: Deusto, 2006.
(11) Nyanatiloka, Dicionário Budista, p. 106 , www.casadedharmaorg.org.
(12) Ñanaponika Thera. The Power of Mindfulness, Kandy: BPS, 1986 b (1968), p.2; citado
por Analayo, Satipatthana, The Direct
Path to Realization, p. 59. Windshore Publications, Cambridge, 2008.
(13) S Buddhadasa Bhikkhu. Anapanasati,
Mindfulness with Breathing, p. 160.
(14) Analayo – Satipatthana, pgs. 44-66. (150
(15) Sobre esses riscos, veja também Beyond McMindfulness, em
(15) Sobre esses riscos, veja também Beyond McMindfulness, em
Referências
Analayo – Satipatthana.
The Direct Path to Realization. Windshore Publications, Cambridge, 2008.
Bhikkhu Ñanamoli and Bhikkhu Bodhi - The Middle Length Discourses of the Buddha. A new Translation of
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Meditação da Plena Atenção, Neurociências e Saúde
13
Para morrer bem
Arthur Shaker Fauzi Eid
Todos nós morreremos. Esta é uma lei que ninguém escapa.
Sendo inevitável, é mais sábio estarmos atentos e nos preparar para isto.
A grande maioria dos seres viventes teme a morte.
Evitamos pensar e nos colocar de modo realista e maduro diante deste fato;
estamos sempre fugindo para distrações que nos façam sentir seguros,
confortáveis e felizes. Toda nossa cultura moderna fabrica mecanismos para nos
tirar desse confronto: viagens, receitas de saúde, novas descobertas
científicas, projetos de terceira idade. Está bem, nada errado em criar
interesses que nos mantenham ativos. O problema é quando essas ofertas
pretendem, e quase sempre conseguem, nos tirar desse confronto. Mas é um
deslocamento apenas superficial. No fundo de nossa mente, sabemos que
morreremos, e isto gera tensões, medo, angústia, desespero.
Muitas vezes criamos ideias ardilosas, nos dizendo: “a
vida é cheia de prazeres... é melhor não pensarmos nesse assunto da nossa
morte... pensar sobre ela é desprezar a vida... isto só leva a mente à tristeza
e à fuga dos desafios de criar novos projetos de vida... na hora de nossa morte
pensaremos nisto e pronto”. Observemos como a mente cria pensamentos
artimanhosos para nos manter enganados. E não poucas vezes, nossos parentes,
amigos e a cultura reforçam nossas ilusões e mecanismos de fuga. Mas lá no
nosso íntimo experienciamos o medo, que pode chegar até o terror. Quando nos
deparamos com a morte de alguma pessoa querida, por breves momentos sobe à
nossa consciência o fato da inevitabilidade do morrer. Mas logo a mente
esquece, e volta ao cenário da vida ilusória, a de que não morreremos nunca.
Reflitamos: qual o máximo de duração atual da vida humana: oitenta, cem anos?
A questão da consciência da nossa morte não está apenas
em nos dizer que sabemos que morreremos. Todos nós sabemos disso. Mas esse “eu
sei disso” são apenas palavras, uma vaga ideia na mente, um superficial senso
de aceitação, resignação, postergando de fato tudo para um pseudo futuro
longínquo. É apenas um saber teórico e ralo. No fundo, não sabemos de fato
quase nada realmente. Negamos, evitamos, tememos, fugimos. É compreensível, a
morte assusta. Diante dos fatos e situações que nos ameaçam, temos três opções:
enfrentar, fugir ou imobilizar-se. Sendo a morte, e mais especificamente, a
nossa morte o fato mais crucial e impactante de nossa vida, tendemos a escolher
a fuga ou o imobilismo.
Como lidarmos com nossa morte de modo realista e maduro?
Comecemos refletindo que não desenvolver uma sabedoria e intimidade com nossa
própria morte traz dois problemas sérios.
O primeiro: não ter maturidade mental diante de nossa
morte determina um modo de vida na maioria das vezes baseado em ações
não-saudáveis, não-éticas: ferimos os seres, tomamos o que não nos pertence,
abusamos dos sentidos, nos viciamos em falas impróprias e intoxicantes físicos
e mentais. Criamos um modo de vida dirigido pela ilusão de uma felicidade
passageira, cuja base é o apego: apego aos prazeres sensuais, apego aos bens
materiais, apego às pessoas, apego às sensações agradáveis, conforto, apego às
nossas percepções, ideias, apego ao corpo. E, de modo correlato, aversão a tudo
que afasta e impede a satisfação de nossos desejos e apegos. Ignoramos que esta
individualidade “eu-meu-mim”, com o que nos identificamos – corpo, sensação,
percepção, formações mentais e consciência - são agregados impermanentes,
fadados a desaparecer. E ignoramos que nossas ações volitivas são karmas que
gerarão frutos, mais cedo ou mais tarde. Experienciaremos esses frutos, amargos
se as ações que as geraram forem não-saudáveis, baseadas na raiva, ódio,
cobiça, crueldade, ignorância, ou venturosos se as ações forem saudáveis,
baseadas na amorosidade, compaixão, generosidade, renúncia, sabedoria. Esta
frutificação poderá ser nesta vida, ou nas próximas, não sabemos. Karma e
renascimento estão imbricados um no outro, em uma mútua interdependência de
causalidade-efeito. Morreremos e renasceremos de acordo com o modo como vivemos
a cada momento, no corpo, sensação, percepção, pensamento e consciência.
Maturar a consciência de nossa morte inevitável determinará desde agora nossas
prioridades de conduta corporal, da fala e da mente, que por sua vez determinarão
nosso modo de vida atual e no futuro: colhemos e colheremos o que plantamos
momento a momento.
O segundo problema: é uma ilusão pensarmos que daremos
conta de nossa mente se deixarmos para pensar em nossa morte apenas quando
estivermos próximos da hora da morte. Primeiro, porque não sabemos sobre essa
hora. Ela pode ser durante a próxima respiração. Segundo, se estivermos
despreparados, é bem provável que o que aconteça é que na proximidade de nossa
morte, poderá subir à nossa consciência temores incontroláveis, talvez memórias
de ações terríveis que fizemos ou sofremos, e nos veremos incapazes de
pacificar a mente. É como pensarmos ilusoriamente que, não tendo nunca treinado
tocar violino, daríamos conta de uma performance brilhante se de súbito formos
colocados para tocar no palco de uma grande estréia da orquestra sinfônica do
Teatro Municipal. Considere também o fato importante de que a qualidade mental
do momento de nossa morte tem certa determinação no nosso renascimento. Todas
as tradições espirituais afirmam a transcendência e a continuidade após a
falência deste corpo que nos mantém neste mundo. A tradição espiritual em que
cada um crê e pratica é uma escolha de foro íntimo.
Assim sendo, é mais sábio começar a treinar aqui e agora,
momento a momento, sempre que possível. Plena atenção e discernimento são
qualidades mentais de grande valia. Bons amigos espirituais são importantes. Um
bom testamento dos bens materiais evita conflitos, disputas e sobretarefas
jurídicas e contábeis para os responsáveis. E na base fundamental está a visão
correta que norteia a sabedoria, o maestro de nossa prática. Na perspectiva
budista, a total libertação da mente das impurezas da cobiça, ódio e delusão,
realizando Nibbana, a felicidade
duradoura, é a meta suprema. Mas se não conseguirmos nesta vida essa meta
plena, podemos alcançar renascimentos melhores, de onde prosseguiremos nossa
prática de purificação e libertação da mente, até a realização final. E se não
tivermos confiança alguma na verdade do renascimento, ao menos podemos tornar
essa vida mais saudável.
Apresentaremos em seguida um guia prático de meditação
conduzida, com vários ângulos e objetos, escolha aqueles que sentir serem mais
propícios para a sua personalidade e fase. Você poderá também variar essas
escolhas. Ao final desse texto, apresentaremos sugestões de leitura, muitas das
quais inspiraram essa prática. Sugerimos que você grave (ou peça para alguém
que você goste, que grave) num CD, num tom amistoso, calmo e pausado, essa
orientação aqui apresentada na forma de texto escrito. E sentado(a) numa
posição ereta e confortável (numa almofada no chão, ou cadeira ou banquinho),
respirando natural e calmamente, ouça essa orientação guiada como apoio à sua
prática silenciosa, sempre que achar conveniente. Algumas vezes ofereceremos
temas para sua reflexão, outras vezes objetos meditativos para sua contemplação
direta.
Meditação
guiada
Já se aproxima a hora de minha morte. Pode ser nos
próximos momentos, nas próximas horas, nos próximos dias, nos próximos meses.
Deixe-me rever quais foram meus atos intencionais ou não intencionais, do
corpo, fala e mente, que possam ter causado algum sofrimento para alguma
pessoa. Poso procurar essa(s) pessoa(s) e pedir que me perdoe(m) pelo
sofrimento que lhe(s) causei? E que ela(s) me diga(m) o que ainda poderei fazer
para reparar esse sofrimento? Se não for possível revê-las pessoalmente, então
peço em meu íntimo que me perdoe(m), assim como perdôo a todos aqueles que
pelos seus atos intencionais ou não intencionais, do corpo, fala e mente,
possam ter me causado algum sofrimento.
Quais prioridades estabelecerei para o tempo que ainda me
resta nesta vida? Devo refletir que essas ações intencionais gerarão frutos
kármicos talvez ainda nesta vida ou nas próximas. Ações de amorosidade,
compaixão, generosidade, renúncia e sabedoria geram frutos saudáveis. Que eu
possa colocá-las em prática, mesmo que por um segundo. E sem apego a esses
frutos.
Estados mentais de cobiça, ódio e delusão geram frutos
não saudáveis, ainda nesta vida ou nas próximas. Por isso, o Buddha nos ensina
a nos perguntar (1): Tenho eu quaisquer qualidades não-saudáveis que eu ainda
não tenha abandonado, que poderão se tornar um obstáculo para mim? Como alguém
que tivesse sua roupa ou cabelo pegando fogo, colocaria extraordinária vontade,
esforço, zelo, entusiasmo, infatigabilidade, plena atenção e clara compreensão
para extinguir esse fogo, assim também eu, caso veja que ainda tenha qualidades
não-saudáveis, devo colocar extraordinária vontade, esforço, zelo, entusiasmo,
infatigabilidade, plena atenção e clara compreensão para abandonar essas
qualidades não-saudáveis. E alegrar-me e treinar constantemente nas qualidades
saudáveis.
Reflita: a vida é curta, limitada e efêmera, carregada de
sofrimentos e desolação. A vida humana é como uma gota de orvalho numa folha,
rapidamente se esvanece ao surgir do sol. É como uma bolha, fugaz. É como uma
linha riscada com um graveto na água, instável como uma corrente de água
descendo a montanha, uma cuspida, um boi condenado ao matadouro. Ninguém que
tenha nascido consegue escapar da morte. Em tempos muito antigos, a duração da
vida era muito longa, e ainda assim efêmera, que diria hoje, onde a vida não
passa dos cem anos? Curta e incerta é a vida, por isso devo fazer o que é
saudável e levar uma vida espiritual.
Examino com o máximo de imparcialidade: no quê estou
apegado? Nos prazeres sensoriais? Em meus bens materiais? Meu carro,
computador, apartamento, propriedades, conta bancária? Na minha família, esposa,
marido, parceiros, filhos? Parentes, amigos? Carreira profissional? Fama,
sucesso? Projetos de futuro? Tudo isto me será tirado. Um dos fortes apegos é
para com o corpo. É compreensível. É através do corpo que me sinto vivo neste
mundo, é através do corpo que posso experienciar esta vida. Estou cuidando bem
do corpo? Mas com que propósito? Para me manter apego à esta vida?
O que é realmente o corpo? É apenas uma forma material,
uma parte da materialidade-base desse mundo. Forma material, sensação, percepção,
formações mentais e consciência são agregados impermanentes, por isso
destinados a se decomporem, terem um fim. Reflito: tudo que surge, está
destinado a desaparecer. Nenhum dos agregados tem uma essência imutável. Do que
é feito este corpo, com o qual tanto me identifico e me apego, que temo perder
com a morte?
O corpo é nada mais que um agregado composto dos
elementos terra, água, fogo, ar e espaço. O que é o elemento terra do corpo? É
o que é sólido, solidificado, transmitindo uma sensação de firmeza, dureza, e
que nos apegamos: cabelos, pelos, unhas, dentes, pele, carne, tendões, ossos,
medula, rins, coração, fígado, diafragma, baço, pulmões, intestino grosso,
intestino delgado, conteúdos do estomago, fezes. Contemple como essas partes
sólidas do corpo, que procuram tornar o corpo vivo – e como processos quase
sempre independentes de nossa vontade, e inconscientes - são ao mesmo tempo
instáveis, como suas mudanças afetam nossas sensações, percepções, pensamentos
e consciência, gerando temor, insegurança, sofrimento. E externamente, o
elemento terra constitui as plantas, animais, campos, montanhas, o planeta
Terra, os planetas, os astros. E vem um tempo em que o elemento água se
perturba e com isso o elemento terra externo desaparecerá. O que parecia sólido
e imutável se desmancha. Quando mesmo o elemento terra externo, imenso como é,
está fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e
mudança, o que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o
qual me identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento
terra, e deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é
meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos
tornamos desencantados com o elemento terra e a mente perde a paixão pelo
elemento terra que forma o corpo.
Desenvolva a meditação que é como a terra, que mesmo
recebendo sobre ela coisas limpas e sujas, excremento, urina, cuspe, pus e
sangue, não se horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se
inabalável. Do mesmo modo, tenha uma mente firme, vasta e imparcial como a
terra, assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis
não invadirão sua mente e nela não permanecerão.
O que é o elemento água do corpo? É o que é líquido:
bílis, catarro, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas, linfa, saliva, muco,
gordura das juntas e urina. Contemple como essas partes líquidas fluem pelo
corpo, num constante esforço para nutrir, regular, equilibrar as necessidades
do corpo, e ao mesmo tempo são instáveis, afetadas por condições internas e
externas; como suas mudanças mexem com nossas sensações, percepções,
pensamentos e consciência, gerando temor, insegurança, sofrimento. E
externamente, todas as formas líquidas: fontes de águas (para abastecer as
cidades, e as necessidades humanas de banhar, cozinhar, lavar, limpar,
alimentar os animais), e os córregos, rios, lagos, chuvas, umidade, oceanos,
processos líquidos também instáveis, ameaçadores, ora com secas, ora com
inundações, tsunamis, dilúvios. E vem um tempo em que o elemento externo água
se perturba, e arrasa vilas, cidades, países. Vem um tempo em que as águas dos
grandes oceanos se afastam léguas e léguas das orlas. Vem um tempo em que as
águas dos grandes oceanos secam até serem insuficientes até para molharem a
junta de um dedo. Quando mesmo o elemento água externo, imenso como é, está
fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o
que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me
identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento água, e
deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto
não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos
desencantados com o elemento água e a mente perde a paixão pelo elemento água
que forma o corpo.
Desenvolva a meditação que é como a água, que contorna os
obstáculos e prossegue, e que mesmo sendo nela lavadas coisas limpas e sujas, e
recebendo excremento, urina, cuspe, pus e sangue, não se horroriza, não se
humilha e nem se ressente, mantendo-se pura, tolerante e imparcial. Do mesmo
modo, tenha uma mente maleável, flexível, adaptável e imparcial como a água,
assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não
invadirão sua mente e nela não permanecerão.
O que é o elemento fogo do corpo? É o que é temperatura,
através do que há o aquecimento, o envelhecimento, o consumir, a digestão do
que é comido, bebido, degustado, a temperatura do corpo, a febre, as combustões
do oxigênio pelas células. Contemple o esforço constante do corpo para regular
a temperatura interna, dos processos digestivos, do equilíbrio entre a
temperatura interna e externa, a pequena faixa de cerca de 2º C de tolerância
interna da temperatura do corpo, entre 37º e 39º C; abaixo de 36º C sentimos
frio, acima de 38º C sentimos febre, ameaçadora, no limite dos 40º C.
Contemplemos os esforços às vezes inviáveis para a adaptação humana às regiões
geladas ou extremamente quentes desérticas. Contemple esse constante esforço de
equilíbrio térmico, instável, afetado por condições internas e externas; como
essas variações térmicas afetam nossas sensações, percepções, pensamentos e
consciência, gerando temor, insegurança, sofrimento. E externamente, o sol,
todas as potências calóricas, o fogo da queima de todos os tipos de
combustíveis necessários para mover máquinas, gerar calor para os sistemas de
aquecimento no inverno, processos instáveis e ameaçadores. E vem um tempo em
que o elemento externo fogo se perturba, e incendeia florestas, vilas, cidades,
países. Ou desaparece pela falta de combustível, e se tenta fazer fogo até com
penas de pássaros. Quando mesmo o elemento fogo externo, imenso como é, está
fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o
que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me
identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento fogo, e
deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto
não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos
desencantados com o elemento fogo e a mente perde a paixão pelo elemento fogo
que forma o corpo.
Desenvolva a meditação que é como o fogo, no qual são
queimadas coisas limpas e sujas, e recebendo excremento, urina, cuspe, pus e
sangue, não se horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se puro e
imparcial. Do mesmo modo, tenha uma mente ardente, energética que queima as
impurezas e impulsiona os esforços rumo à libertação. Assim os contatos,
sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e
nela não permanecerão.
O que é o elemento ar do corpo? É tudo que é aéreo, os
ventos que sobem e descem pelo corpo, ventos no estomago, nos intestinos,
gases, ventos que fluem pelos membros, a inspiração, a expiração. Contemple
esses esforços incessantes do corpo para equilibrar os ventos internos, que
movimentam os nutrientes sólidos, líquidos, gasosos por dentro do corpo, e como
esses ventos internos são instáveis, gerando temor, insegurança, sofrimento. E
externamente, os ventos ora amenos, ora violentos. E vem um tempo em que o
elemento externo ar se perturba, e com suas tormentas e furacões arrasa vilas,
cidades, países. E vem um tempo em que a falta de ar é tanta que nenhum
ventilador refresca. Quando mesmo o elemento ar externo, imenso como é, está
fadado a ser impermanente, sujeito à destruição, desaparecimento e mudança, o
que dizer deste corpo, pequeno, frágil, que dura tão pouco, com o qual me
identifico, e ao qual me apego pelo desejo sensual? É apenas o elemento ar, e
deve ser visto como realmente é, com uma visão correta: “Isto não é meu, isto
não sou eu, isto não é meu eu”. Vendo isto com visão correta, nos tornamos
desencantados com o elemento ar e a mente perde a paixão pelo elemento ar que
forma o corpo.
Desenvolva a meditação que é como o ar, que sopra sobre
coisas limpas e sujas, excremento, urina, cuspe, pus e sangue, e não se
horroriza, não se humilha e nem se ressente, mantendo-se puro e imparcial. Do
mesmo modo, tenha uma mente arejada, fluida, que sopra e limpa as impurezas.
Assim os contatos, sensações e pensamentos agradáveis e desagradáveis não
invadirão sua mente e nela não permanecerão.
O que é o elemento espaço do corpo? Internamente, são os
buracos dos ouvidos, narinas, a entrada da boca, pela qual os alimentos são
ingeridos, e os buracos de saída por onde são excretados. E externamente, o
espaço, aberto, dentro do qual as formas materiais se distribuem, se movimentam,
onde os corpos se limitam, gerando o senso de separatividade, de distinções
ameaçadoras, as disputas pela posse dos recursos de sobrevivência das
individualidades, das espécies, o senso de pertencimento a grupos, raças,
identidades delusórias e propícias às guerras, conflitos, violências. E também
o espaço alusivo da abertura para a transcendência, a superação da limitação
opressiva, da prisão sufocante da forma material corpo, a vida da mente
liberta, vasta, os reinos celestes imateriais e, acima de todos os reinos
condicionados, reina Nibbana, a
plenitude da felicidade duradoura, imortal. E vem um tempo em que o elemento
externo espaço se perturba, e o mundo se contrái e se fecha. Quando mesmo o
elemento externo espaço, imenso como é, está fadado a ser impermanente, sujeito
à destruição, desaparecimento e mudança, o que dizer deste corpo, pequeno,
frágil, que dura tão pouco, com o qual me identifico, e ao qual me apego pelo
desejo sensual? É apenas o elemento espaço, e deve ser visto como realmente é,
com uma visão correta: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”.
Vendo isto com visão correta, nos tornamos desencantados com o elemento espaço
e a mente perde a paixão pelo elemento espaço que forma o corpo.
Desenvolva a meditação que é como o espaço, que não está
estabelecido em lugar nenhum. Do mesmo modo, tenha uma mente aberta, vasta e
imparcial como o espaço, onde nada se adere. Assim os contatos, sensações e
pensamentos agradáveis e desagradáveis não invadirão sua mente e nela não
permanecerão.
Com a mente preenchida de compaixão, amorosidade e
tolerância, perceba a chegada dos últimos momentos da sua vida neste mundo.
Talvez seja possível morrer em casa, rodeado de pessoas amigas. Peça que não
haja choros, lamentações, feições de desespero e temor. Embora sejam
manifestações humanas naturais e compreensivas diante da eminência da perda de
alguém que está partindo, dificultam a passagem. Diga a elas que paz e
amorosidade serena, na medida do possível, são mais propícias. Recomenda-se que
se suspenda alimentos, a fim de evitar esforços digestivos ao corpo e manter a
mente lúcida. Seria propício, se possível, estar o mais consciente possível.
Esta é uma decisão delicada, que depende de condicionantes médicos, ponderações
familiares e opção individual.
Mantenha-se calmo e atento. Abra mão, abandone, deixe
para trás o apego a bens materiais, a pessoas, a lembranças do passado, nada
disso mais importa. Vá fechando as portas dos sentidos que dão para o mundo de
fora. Traga a atenção da mente para dentro, para o íntimo de seu coração. Fique
atento e tranquilo. Sensações corporais desagradáveis, dores e incômodos podem
estar emergindo. A respiração se torna curta, talvez você sinta certo sufoco,
falta de ar, diminuição do batimento cardíaco, tremores. A energia vital está
se esvaindo. Mantenha o corpo relaxado, a mente atenta, evitando na medida do
possível reatividades aversivas. Abandone qualquer identificação com este
corpo, ele não é nada mais que um agregado dos elementos terra, água, fogo, ar
e espaço, seguindo seu processo natural de desagregação. Traga para a mente a
clara compreensão e discernimento: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é
meu eu”. Formações mentais de medo, insegurança pavor, memórias passadas podem
emergir, algumas terríveis. Aceite, não alimente, não se identifique com elas.
Relembre-se: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Este mundo
condicionado corporal e mental não é meu verdadeiro lar. A mente luminosa,
pura, liberta e infinita é a felicidade duradoura, imortal. Mantenha-se com o
máximo de atenção, tranquilidade e equanimidade. Contemple cada segundo da
percepção do corpo e das formações mentais com clara compreensão e abertura
sábia: “Isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”.
Aproxima-se o momento final. Único. O grande salto.
Notas
e sugestões de leitura
(1) Os comentários e
orientações da meditação guiada são compilações advindas de palestras de monges
e dos seguintes suttas budistas:
- Meditação sobre a morte. Anguttara Nikaya AN 6.19-20; 8.73-74.
- Maharahulovada Sutta – O Grande Sermão do Conselho (do Buddha) para
(seu filho e monge) Rahula, Majjhima Nikaya MN 62.
- Mahahatthipadopama Sutta - O Grande Sermão do Símile da Pegada do
Elefante (ensinado pelo Venerável Sariputta, um dos principais monges
assessores do Buddha), Majjhima Nikaya MN 28, www.acessoaoinsight.net
- Araka. Anguttara Nikaya AN 7.74.,
- Meditação sobre a morte. Anguttara Nikaya AN; 8.73-74, em The Numerical DIscourses of the Buddha – A
Translation of the Anguttara Nikaya- by Bhikkhu Bodhi, pgs. 1096-1098;
1219-1223. .Boston, Wisdom, 2012.
Veja também:
Bhante Henepola
Gunaratana. Os Quatro Fundamentos da
Plena Atenção – Maha Satipatthana Sutta. São Paulo: Edições Casa de Dharma,
2012.
_________________________A Plena Atenção à Morte. São Paulo:
Edições Casa de Dharma, 2013.
Kapleau, Philip. A Roda da Vida e da Morte – Guia
Prático e Espiritual. São Paulo:
Cultrix, 1997.
Kubler-Ross, Elizabeth.
Morte: Estágio Final da Evolução. Rio
de Janeiro: Record, 1975.
___________________ Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo:
Martins Fontes, 1981.
___________________ A Morte: um Amanhecer. São Paulo:
Martins Fontes, 1981.
Phra Ajaan Chah. Nosso Verdadeiro Lar. www.acessoaoinsight.net
Pierre, Clarice. A Arte de Viver e Morrer. Cotia:
Ateliê Editorial, 1999.
Sogyal Rinpoche. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. São Paulo: Talento: Palas Athena,
1999.
Meditação da Plena Atenção, Neurociências e
Saúde
12
Cérebro, Mente e Neuroimagens:
funcionalidade e limites
Arthur
Shaker Fauzi Eid
O
diálogo entre as Neurociências e o método e prática da Meditação da Plena
Atenção tem se beneficiado pelo avanço das técnicas eletromecânicas de
registros das atividades do cérebro.
O
estudo das oscilações elétricas do cérebro trouxe o electroencefalograma (as
ondas alfa, beta, gama, delta); a microestimulação elétrica do cérebro
possibilitou identificar correlações entre áreas e funções cerebrais e a
relevância do córtex cerebral e da formação reticular do mesencéfalo nos
processos mentais humanos. Técnicas de visualização buscaram apreender a
relação entre as atividades cerebrais e o seu metabolismo, através da medição
do consumo de oxigênio e glicose pelos neurônios em vários processos de
atividade cerebral, como no repouso ou em cálculos mentais complexos. O
surgimento da tomografia por emissão de pósitrons, que iria permitir perceber
concentrações de glicose radioativa em áreas mais ativas do cérebro, e
posteriormente a técnica das imagens funcionais por ressonância magnética,
abriu dados para novas percepções sobre certas relações entre áreas cerebrais e
funções cognitivas.
Inúmeras
pesquisas científicas têm surgido a partir do uso dessas técnicas de registro,
procurando investigar como cérebro funciona, e se transforma, quando sob a
atividade meditativa. A compreensão dos padrões de funcionamento e
transformação do cérebro pode trazer benefícios para o conhecimento científico
e para o lide com doenças como o mal de Alzheimer, câncer, síndrome de pânico,
Transtorno Obsessivo Compulsivo, ansiedade, estresse, depressão, fibromialgia,
entre outras. Pacientes, monges e praticantes têm tido seus cérebros escaneados,
plugados, e esses registros interpretados sob vários ângulos. Se por um lado
esses registros dariam base para proposições científicas sobre o funcionamento
do cérebro, por outro lado colocam questões: qual o grau de confiabilidade
nesses registros? Com quais fundamentos e métodos lemos esses registros? Quais
os limites e riscos de interpretação que esses registros colocam?
Tomo
como ponto de partida as observações de David Dobbs (Mente e Cérebro, no.19,
p.65-71) sobre a precisão e a utilidade dos resultados da ressonância magnética
funcional (fMRI), questionando a suposta equivalência entre mente e cérebro.
O
debate envolve aspectos técnicos e filosóficos, e se refere, por um lado, à
precisão do fMRI (pois mede indiretamente a atividade neuronal, pelo aumento no
fluxo sanguíneo vinculado à atividade); por outro, sobre a pertinência em
correlacionar funções mentais complexas à regiões do cérebro.
Um
primeiro ponto do debate diz respeito à leitura sobre a resposta hemodinâmica
(fluxo sanguíneo):
“Para
começar, a ação neuronal leva milionésimos de segundos, enquanto o afluxo de
sangue continua por dois a seis segundos; o aumento detectado no fluxo
sanguíneo, portanto, pode estar ‘alimentando’ mais de uma operação”.
“Além
disso, uma vez que cada voxel (termo que une ‘volume’ e ‘pixel’) encerra
milhares de neurônios, pode ser necessário a ativação de milhares ou mesmo
milhões deles para acender uma região; é como se a seção inteira de um estádio
tivesse de gritar para ser ouvida”.
“Ao
mesmo tempo, é possível que em alguns casos um pequeno grupo de neurônios
puxando pouco sangue, ou um circuito fino de neurônios conectado a regiões mais
amplas, possam executar funções tão cruciais quanto um grupo maior em outro
lugar, mas tanto passar desapercebidos quanto aparecer como uma atividade
menor. Do mesmo, alguns neurônios talvez funcionem de maneira mais eficiente
que outros, consumindo menos sangue. Todos esses fatores podem significar que
uma imagem de fMRI representa erroneamente a neurodinamica real.
Processar
os gigabytes de dados brutos do scan para que se tornem imagens requer
outros cuidados. Os pesquisadores devem selecionar e ajustar os diversos
algoritmos para extrair uma imagem precisa, compensando no meio do caminho as
variações na configuração do crânio e do cérebro, o movimento dos pacientes
dentro do aparelho, ruído na informação e assim por diante. Essa ‘cadeia de
interferências’, chamada assim em artigo recente da Nature Neuroscience, oferece
muita oportunidade para erro.
Por
fim, a maior parte dos estudos com fMRI utiliza um processamento univariável
que modifica a natureza distributiva da neurodinâmica, segundo aqueles que
questionam a técnica. As críticas aumentam porque os algoritmos univariáveis
(literalmente ‘uma variável’) consideram os dados que entram de cada voxel
durante um scan como uma soma, tornando impossível saber como a
atividade em um voxel particular ocorreu (de uma vez só, por exemplo, ou em
vários pulsos) ou como se relacionou sequencialmente com a atividade em outros
voxels. O processamento univariado vê todas as partes funcionando – portanto,
as múltiplas áreas ressaltadas na maioria das imagens-, mas não de modo a
mostrar como um a região segue ou responde a outra. Essa situação faz da
observação de uma imagem de fMRI algo como ouvir um quarteto de cordas,
escutando (condensado em único som depois da música ter terminado) apenas a
quantidade total de som produzido por cada instrumento durante a execução, em
vez de escutar como os músicos tocam juntos e respondem uns aos outros. Métodos
estatísticos conhecidos como análise multivariada podem separar a atividade de
cada voxel e analisar os intercâmbios entre as regiões do cérebro, mas a
complexidade de tais análises até agora limitou seu uso” (p.67-68).
Prosseguindo:
“Alguns
críticos (incluindo Faux (Steven Faux, chefe do Depto. de Psicologia da
Universidade Drake), e o psicólogo William R. Hurt, professor emérito da
Universidade de Michigan em Ann Harbor, argumentam que muitas das funções
cognitivas estudadas com o trabalho de fMRI são tão abstratas e vagas que
descrevem pouco mais que um sistema nervoso conceitual. No topo da lista de
dúvidas de Faux está a chamada função executiva do cérebro. ‘Esse é um dos
procedimentos favoritos’, diz ele, ‘medir o executivo central’. Mas o que é
isso?’
Muitos
psiquiatras e neurologistas concordam que a função executiva seja a faculdade
real, e a produção de imagens e os estudos físicos indicam que ela provém de um
circuito no córtex pré-frontal e no córtex cingulado anterior (uma área pequena
entre os dois lobos frontais). A função executiva organiza os pensamentos e dá
às pessoas a habilidade de planejar e levar a termo suas resoluções. Mas
especialistas em cérebro têm suspeitas sobre a alta frequência com que a função
executiva é citada nos testes com fMRI, as regiões envolvidas ‘acendem’
constantemente. Diversos pesquisadores poderão concluir com muita rapidez que a
função executiva é, portanto, responsável, quando na verdade as regiões podem
estar acendendo simplesmente porque a função executiva está na base de tantas
atividades cerebrais que pode muito bem permanecer ‘ligada’ ”(p.69).
Não
desconsiderando a utilidade do fMRI, coloca-se a necessidade da cautela na
leitura desses dados, pois envolve a controvérsia sobre questões conceituais e
tangíveis:
“Essa
dualidade é inerente às tentativas dos cientistas de conectar a mente, efêmera,
ao cérebro corpóreo. Uma preocupação básica é de que a fMRI seja um novo
capítulo da velha tentativa de relacionar processos mentais específicos a
regiões particulares do cérebro.
Poucos
pesquisadores acreditam seriamente que as funções do cérebro sejam tão
compartimentadas. Como diz Raichel (Marcus E. Raichle, neurologista da
Universidade de Washington): ‘Nenhuma pessoa racional sugeriria que há um único
lugar da ‘emoção’ por exemplo. Mesmo assim, a maioria dos estudos de fMRI
colocou seu foco em como determinado processo mental ativa certas áreas. Isso
provocou a acusação mordaz de que os estudos com fMRI constituem uma nova
‘frenologia’, uma versão moderna da prática do século XIX de interpretar a
estrutura do crânio de uma pessoa como um mapa da inteligência e do caráter
dele ou dela” (p.70).Ou, como cientistas alertam sobre os limites do
eletroencefalograma, este “revela pouco sobre a intrincadíssima atividade do
encéfalo. Segundo eles, seria como se tentássemos analisar todos os lances de
uma partida de futebol apenas ouvindo as reações da torcida presente no
estádio”. (Amabis & Martho, p. 472)
Dobbs
conclui pela esperança positiva de que o avanço da tecnologia do fMRI atual,
protocolos de processamento mais padronizado e revisão de pares, e melhora dos
algoritmos multivariados (para revelação de interações entre as regiões do
cérebro) reduzam os equívocos metodológicos, permitindo que algum dia o fMRI
possa mostrar a verdadeira natureza do cérebro, qual uma orquestra, “com
diferentes seções.tocando em diversos momentos, volumes e timbres, dependendo
do efeito necessário, interagindo em combinações infindáveis para criar uma
variedade infinita de música” (p.71).
Reencontramos novamente o problema de
identificação dos CNC, a relação mente-cérebro. Numa outra linha de análise
crítica, Jane O’Grady toma como ponto de partida analítico um artigo publicado
na revista Times (fev. 2009): “Can a machine change your mind?” (Uma
máquina pode mudar sua mente?”) Uma quantidade enorme de artigos tem surgido
com a proposição de que seria “apenas uma questão de tempo” para a superação da
lacuna entre o conteúdo físico do cérebro e a consciência, que se tornará
apenas uma questão científica, e não mais filosófica. Já na década de 50 do
século passado, filósofos como JJC Smart advogavam que em breve estados
específicos da consciência poderiam ser traduzidos como idênticos a estados
cerebrais.
Esta
perspectiva do reducionismo científico (que Ramachandram considera um “recurso
necessário” de investigação científica) não deixa fora algo importante?
Wittgenstein imaginou um cenário onde cientistas abrem o cérebro de alguém,
enquanto eles e esta pessoa ao mesmo tempo observam os registros neurológicos
(disparos dos neurônios, sinapses, etc.). Mas essa pessoa, diferente dos
cientistas, está observando (ou experienciando) duas coisas, ao invés de uma:
pode observar que quando ele sente ou pensa sobre algo, certas atividades
cerebrais ocorrem. Ela experiencia ou pensa de certos modos e experiencia o
observar do seu cérebro de certo modo. Os cientistas experienciam apenas o
cérebro funcionando. E que se esta pessoa observasse no futuro esse vídeo
gravado, ela estaria na mesma situação atual dos cientistas (salvo se ela
tivesse memória perfeita ou se a experiência fosse muito breve): ela teria de
deduzir o que ela estaria pensando sobre, ou sentindo naquela ocasião.
Quando
identificamos a mente com o cérebro, os estados mentais como estados cerebrais,
e conferimos a este cérebro um estatuto de objeto material, terminamos por
considerar que não faria diferença qual cérebro está sendo observado, e por
quem, mas isto faz toda a diferença. E “ler” o cérebro implica que o observador
tem de “deduzir” o que está ocorrendo mentalmente na mente do observado, e essa
atividade de “dedução” cognitiva é bastante problemática, pois depende das
condições de conhecimento do observador. Este teria de inferir correlações
cérebro/estado mental, se apoiando nos relatos do possuidor do cérebro, e em
induções de cérebros em contextos similares, etc. É certo que sem os processos
cerebrais a consciência não ocorreria, mas o que seja a consciência e seus
conteúdos, é apenas aquilo que está no cérebro, pergunta a autora?
Talvez as Neurociências possam no
limite obter correlações ou causações, mas não identidade entre processos
cerebrais e estados mentais. E, segundo a autora, correlações são mais
factíveis para os estados mentais relacionados ao corpo, mas quando se trata
dos conteúdos intencionais dos estados mentais, as inferências se complicam,
pois envolvem dimensões sutis do universo mental da pessoa. É perfeitamente
aceitável que cientificamente água é H2O, relâmpago é uma descarga elétrica, calor
é movimento molecular, independente do ponto de vista de determinado
observador, mas “não podemos subtrair o sujeito quando lidamos com a
consciência. Consciência é inevitavelmente subjetivo, e também sobre como
coisas parecem ser para a consciência da pessoa” (p.6). Certo que há
correlações com propriedades cerebrais, “mas o que a pessoa experiência vai
além dessas propriedades cerebrais. Uma descrição científica do quê acontece no
cérebro quando alguém tem certo pensamento ou experiência parece deixar de lado
inevitavelmente do que se trata o pensamento ou a experiência. Mais uma vez,
algo é deixado fora, algo que, se a pessoa estivesse observando seus próprios
estados cerebrais, iria além de disparos neurais e movimentos sinápticos”. E,
segundo autora, o que é mais preocupante sobre os proponentes de uma ciência
que pretende reduzir o mental ao neural, e o ser humano a um objeto meramente
físico, é que “força a consciência a ser apenas uma equivalência com disparos
eletro-químicos cerebrais, e que o que as pessoas leigas entendem sobre suas
sensações, memórias e crenças seriam apenas uma ‘psicologia ignorante e
ultrapassada’, a ser abandonada e substituída por uma ‘nomenclatura científica
correta’ ”.
Concluindo,
segundo a autora, “as novas ciências neuro-sociais são a mais recente das
muitas tentativas de naturalizar o homem, de tornar todos os aspectos de
nossas vidas compreensíveis meramente como objetos de explanação
científica”, confinando a um mundo de átomos, perdendo-se a qualidade
fundamental das significações. E “nosso mundo seria progressivamente
esvaziado de significado, moralidade, dignidade e liberdade, e se rejeitarmos
nossa ‘psicologia ignorante’ em favor de uma terminologia científica sobre
estados cerebrais, não apenas conheceríamos menos (e não mais) sobre nós
mesmos; teríamos menos sobre o quê saber, porque seríamos menos” (p.8).
O
cerne da questão está em não perdermos a primazia da experiência em primeira
pessoa. Talvez se possa, e se deva, buscar conjugar (e não opor) as
observações e contribuições trazidas pelas pesquisas das Neurociências, com as significações
(e relatos) vindos das experiências da própria pessoa. Claro que esses relatos
tendem a ser nublados pelos níveis de distorção com que a pessoas “vê” sua
própria experiência de estados mentais. Essa distorção perceptiva é a raiz do
sofrimento humano, segundo os ensinamentos do Buddha. Relatos mentais trazidos
por meditantes experientes podem qualificar melhor esses relatos, e é isso que
tem norteado algumas pesquisas das Neurociências, comparando relatos e
evidências de meditantes e não-meditantes. Se é plausível a colocação de
Ramachandram de que relatos científicos e experiências da própria pessoa são
duas linguagens de tradução de um fenômeno, e que pode ser benéfico trabalhar
com as duas, ressalva seja feita de que a experiência da mente vivida pela
própria pessoa é algo incomensuravelmente mais profundo e denso de
significações do que os registros mecânicos do cérebro. Isso porque, em última
instância, apenas a mente pode conhecer a mente. E esse é o propósito do
treinamento da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), e de todo o
ensinamento do Buddha. Mente é cognição, e conhecendo nossa própria mente pela
contemplação direta dos agregados do corpo, sensações, percepção, formações
mentais e consciência momento a momento, aprendemos a liberar a mente das
raízes não-saudáveis da cobiça, ódio e delusão. Purificando a mente dessas
tendências condicionadas, experienciamos progressivamente níveis mais profundos
de felicidade, bem estar e saúde, rumo a Nibbana, a mente pura e iluminada.
Atentos aos limites e perigos, acompanhando a evolução
das pesquisas neurocientíficas, podemos conjugar os benefícios das
Neurociências e da Meditação da Plena Atenção, na construção do caminho de
Saúde Integral. Não conseguiremos, devido à lei da impermanência, evitar a
decadência do corpo e a morte, mas aprendemos a habilidade de atravessar esta
vida com sabedoria e a harmonia possível, tendo como guia a Estrela-Norte de
Nibbana.
Referências
Amabis, José M.,
Martho, Gilberto R. Biologia dos
organismos 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Dobbs, David. Limites da imagem. Desvendando o cérebro. Mente e Cérebro, edição especial, no. 19,
pags. 65-71. SP: Duetto Editorial.
Logothetis, Nikos K. e Wandell, Brian A. Interpreting the BOLD signal, em Annual Review of Physiology, vol. 66, pags 735- 769, março de 2004.
Mayhew, John E. W. A measured look
at neuronal oxygen consumption. Em Science,
vol 229, pags. 1023-1024, 14 fevereiro de 2003.
Uttal, William R. The new
phrenology. MIT Press, 2003.
*******
Meditação da Plena Atenção, Neurociências e
Saúde
11
A Consciência e o Eu
Arthur
Shaker Fauzi Eid
Quando
as emoções e estados mentais aflitivos constrangem nosso coração e mente com
certo grau de sofrimento, nos sentimos compelidos a buscar superá-los, e a
meditação surge como uma via útil.
Durante
muitas fases de nossa prática da plena atenção, nos sentimos motivados por esse
senso de “eu estou meditando, eu estou conseguindo diminuir o sofrimento
através de um manejo mais saudável do meu corpo, das minhas sensações das
minhas emoções, e dos meus pensamentos”. Ganhamos mais confiança e habilidade
para percebermos e intervirmos em nosso corpo, sensações, percepções, emoções e
pensamentos, em um caminho de saúde mais equilibrado. Então nos deparamos com
um dos grandes e inesperados obstáculos, quando somos convidados a contemplar
nossa consciência: quem sou eu? Sou este sujeito-consciência que contempla os
objetos corpo-sensação-percepção-pensamento?
Agregado
da consciência é o mais difícil de lidar não só porque muda muito rapidamente,
criando essa sensação (ilusória) de continuidade e permanência, mas
principalmente porque é pela atividade da consciência que criamos esse senso de
um “eu-sujeito”. Criamos um senso de identidade “eu mesmo permanente” colado na
consciência. Mas se esta consciência está sempre surgindo e desaparecendo,
impermanente, qual desses “eus” sou “eu”? O “eu” quando “eu tinha 5 anos? Vinte
anos? Hoje?” E mesmo quando aceitamos que em nosso percurso de vida, estamos
mudando desde que nascemos, ainda assim acreditamos que são mudanças de
conteúdos dentro de uma mesma substância fixa, do “meu eu” que tem nome e
personalidade com os quais nos identificamos como sendo “eu mesmo”, “minha
alma”, “meu espírito”. Somos capazes de aceitar que nossa casa feita de corpo,
sensações, percepções e formações mentais está precisando de reformas e
limpezas, mas nos identificamos com o senso de “eu-casa”. Temos medo de perder
o apoio e a segurança de um “eu-chão”. Pressionados pelo sofrimento e percepção
da fragilidade e fugacidade da vida, buscamos alternativas espirituais para
conseguir um “eu espiritualizado”, um “eu evoluído”, largar o “pequeno eu” e
desenvolver o “grande Eu”.
Um
dos importantes diferenciais, senão o maior, dos ensinamentos do Buddha é a
realização da natureza ilusória de um suposto “eu-ego” como entidade
permanente. O “eu-ego” é uma construção ilusória da mente. É preciso que
investiguemos essa ilusão, vermos que os fenômenos mentais são impessoais,
“não-eu”, anatta. Há consciência, mas nenhum sujeito por detrás da
consciência. Apenas processos corporais e mentais, em constante fluxo de
mudanças. É isto que progressivamente a treinamento da Meditação da Plena
Atenção quer nos convidar a investigar por nós mesmos. Pelo insight, vermos que
a raiz mais profunda de todo nosso sofrimento é o apego a esse senso de
“eu-ego”. Mas o quê as Neurociências têm a dizer sobre esse senso de
individualidade? Teria uma base no cérebro?
Tomaremos
como ponto de partida as instigantes proposições de Ramachandram, renomado
neurocientista e pesquisador. Suas observações são desafiadoras, por isso
usarei de citações relativamente longas, de seu livro “Fantasmas do Cérebro”,
de modo a tentar ser o mais fiel à sua linha de argumentação. Pedimos ao leitor
certa paciência para acompanhar esse percurso às vezes exigente em demasia. No
cap. 12, que considero o mais pertinente ao nosso tema, o autor assim inicia:
“Na
primeira metade do século XXI, a ciência enfrentará seu maior desafio tentando
responder a uma pergunta impregnada de misticismo e metafísica durante
milênios: Qual é a natureza do eu, da individualidade? Como alguém que nasceu
na Índia e se criou na tradição hindu, ensinaram-me que o conceito de indivíduo
– o “eu” dentro de mim que é separado do universo e se empenha numa altaneira
inspeção do mundo em torno de mim – é uma ilusão, um véu chamado maya. A
busca de esclarecimento, diziam-me, consiste em levantar esse véu e perceber
que você é realmente “Um com o cosmos”. Ironicamente, após extenso aprendizado
em medicina ocidental e mais de 15 anos de pesquisas sobre pacientes
neurológicos e ilusões visuais, cheguei ao entendimento de que há muita verdade
nisso - que a idéia de uma única individualidade unificada “que habita” o
cérebro pode ser de fato uma ilusão” (Ramachandram, 2004, p.287)
Prosseguindo:
“Tudo
que tenho aprendido no estudo intensivo de pessoas normais e pacientes que
tiveram lesões em várias partes de seus cérebros aponta para uma ideia
empolgante: que você cria sua própria “realidade” a partir de fragmentos de
informações, que o que você “vê” é uma representação confiável – mas nem sempre
acurada – do que existe no mundo, que você é completamente inconsciente da
grande maioria dos fatos que se desenrolam em seu cérebro. Na verdade, a maior
parte de suas ações é realizada por uma hoste de zumbis inconscientes que
existem em pacífica harmonia com você (a “pessoa”) dentro do seu corpo!”
(Ramachandram, 2004, p.288)
Ramachandam
interpreta as atividades cerebrais como feitos por zumbis (no sentido de serem
inconscientes). Não vejo porque personalizar funções fisiológicas. Na
perspectiva budista, não encontramos a noção de “inconsciente”: a mente
impessoal rege o corpo em todos os seus níveis, ainda que não percebamos isto
com clareza, devido à ignorância e baixa concentração.
Prosseguindo:
“Contudo,
muitas pessoas acham inquietante que toda a riqueza de nossa vida mental –
todos os nossos pensamentos, sentimentos, emoções, até mesmo o que consideramos
nossos eus íntimos – nasça inteiramente da atividade de pequenos feixes de
protoplasma no cérebro. Como é possível isto? Como poderia algo tão
profundamente misterioso como a consciência surgir de um naco de carne dentro
do crânio? O problema de mente e matéria, substância e espírito, ilusão e
realidade, tem sido uma grande preocupação da filosofia oriental e ocidental há
milênios, mas pouca coisa de valor duradouro tem surgido. (…) Não vou fingir
ter resolvido estes mistérios, mas penso realmente que há uma nova forma de
estudar a consciência, tratando-a não como uma questão filosófica, lógica ou
conceitual, mas como um problema empírico”. (Ramachandram, 2004, p.288)
Reencontramos
aqui a suposição recorrente da consciência como apenas uma emanação cerebral,
um epifenômeno gerado por um fluxo de íons e correntes elétricas da rede
neural, concepção que já analizamos em capítulos anteriores. De qualquer modo,
como o autor pretende tratar a consciência como problema empírico?
Em
primeiro lugar, sugerindo que “a consciência nasce não do cérebro inteiro, mas
de certos circuitos cerebrais especializados que realizam um estilo particular
de computação. Para ilustrar a natureza desses circuitos e as computações
especiais que realizam, recorrerei aos muitos exemplos de psicologia perceptiva
e neurologia que já examinamos neste livro. Estes exemplos mostrarão que o
conjunto de circuitos que corporifica a nítida qualidade subjetiva da
consciência reside principalmente em partes dos lobos temporais (como a
amígdala, o septo, o hipotálamo e o córtex insular) e numa única zona de
projeção nos lobos frontais - o giro cingulado. E a atividade destas estruturas
deve preencher três critérios importantes, que chamo as três leis das qualia
(“qualia” significa simplesmente a impressão crua e tosca de sensações
como a qualidade subjetiva de “dor” ou de “vermelho” ou de “nhoque com
trufas”). Meu objetivo em identificar estas três leis e as estruturas
especializadas que as corporifiquem é estimular mais investigações sobre a
origem biológica da consciência” (Ramachandram, 2004, p.288-289).
O
autor usa dois exemplos para ilustrar o chamado enigma dos qualia. Um
cientista daltônico pode analizar, compreender e fazer um relato detalhado
sobre uma cor vermelha, mas não terá a experiência real e inefável da cor vermelha;
pode fazer o mesmo para com o estudo de um peixe elétrico, mas nunca saberá
qual a sensação de eletricidade que o peixe sente. São dois relatos diferentes,
embora complementares: relatos em terceira e primeira pessoa. Não haveria
barreira epistemológica entre cérebro e mente, apenas diferenças de traduções
de uma linguagem para outra. Estendendo esse raciocínio ao cérebro e ao
estudo da consciência, seriam duas linguagens mutuamente ininteligíveis: a
linguagem dos impulsos nervosos (a linguagem científica em terceira pessoa) e a
linguagem falada (a experiência em primeira pessoa). No diálogo entre as duas
linguagens (a do cientista e da pessoa que experiência), “a inefável
‘experiência’ em si perde-se na tradução”. Mas se ao invés da linguagem falada,
se conectasse um cabo de vias neurais no cérebro do cientista daltônico? Ele
teria a mesma experiência que a pessoa que vê a cor vermelha: “Esta hipótese
destrói a afirmação dos filósofos de que existe uma barreira lógica
intransponível para entender as qualia. Em princípio, você pode experimentar
as qualia de outra criatura, mesmo do peixe elétrico. Se você pudesse
descobrir que a parte eletrorreceptora do cérebro do peixe está fazendo e de
alguma forma pudesse enxertá-la nas partes pertinentes de seu cérebro com todas
as devidas conexões associadas, então começaria a experimentar as qualia do
peixe elétrico. (…) A ideia-chave aqui é que o problema das qualia não é
o único no problema corpo-mente. Não é diferente em espécie dos problemas que
nascem de qualquer tradução, e assim não há necessidade de invocar uma
grande divisão na natureza entre o mundo dos qualia e o mundo material.
Existe apenas um mundo com muitas barreiras de tradução. Se você puder
superá-las, o problema desaparece” (Ramachandram, 2004, p.292-3).
Neste
raciocínio intrigante, na busca de explicações biológicas para as qualia,
o dilema ainda se mantém: existe um estilo particular de processamento de
informações, ou tipos de neurônios exclusivamente associados com as qualia?
Algumas sugestões de cientistas surgiram: “as qualia surgem de um
conjunto de neurônios nas camadas inferiores das áreas sensoriais primárias,
porque estas são as que se projetam para os lobos frontais onde muitas das
chamadas funções superiores são executadas”. Ou que “as formas reais de
impulsos nervosos (picos) procedentes de regiões do cérebro amplamente
separadas ficam “sincronizadas” quando você presta atenção a alguma coisa e
toma consciência dela. Em outras palavras, é a própria sincronização que leva à
percepção consciente” (Ramachandram, 2004, p.294-295).
O
debate está aí posto. De todo modo, as qualia necessitariam preencher
três leis importantes, e a investigação sobre a suposta origem biológica da
consciência teria de correlacioná-los com as estruturas neurais especializadas
que os corporificam. Seriam as características funcionais dos qualia:
•
irrevocabilidade no lado das informações (a percepção carregada de qualia não
é revogável, é resistente à adulteração pelos centros superiores do cérebro –
por ex., amarelo é amarelo);
•
flexibilidade no lado do resultado (quando experimentamos qualias amarelos,
poderíamos dizer amarelo, ou pensar em bananas amarelas, etc.);
•
e a terceira: “Para tomar decisões com base em uma representação carregada de qualia,
a representação precisa existir por tempo suficiente para você trabalhar com
ela. Seu cérebro precisa segurar a representação num acumulador intermediário
ou na chamada memória imediata” (Ramachandram, 2004, p.300-301).
A
noção das qualia, enquanto modos perceptivos do cérebro, avança muito na
compreensão da consciência? Não seriam apenas percepções diferenciais, e
parciais, sujeitas às delusões da mente condicionada (a do cientista, a
terceira pessoa que busca traduzir de um modo “objetivo” dados empíricos do
cérebro, e a do sujeito, a primeira pessoa, que experiencia a realidade através
do contato com os objetos)? E tudo isso alivia em algo o sofrimento da mente
deludida? Este é um aspecto marcante da perspectiva da ciência budista da
mente: a compreensão e superação do sofrimento na mente.
Ainda
assim, Ramachandram se pergunta se essas proposições forneceriam pistas sobre
em que partes do cérebro poderiam estar as qualia. Parece que esta
pergunta traz novamente a busca dos chamados Correlatos Neurais da Consciência
(CNC). E eis uma sua proposição intrigante:
“É
surpreendente que muitas pessoas pensem que a sede da consciência está nos
lobos frontais, porque nada de dramático acontece às qualia ou consciência per se,
se você danifica os lobos frontais – embora a personalidade do paciente possa
ser profundamente alterada (e ele possa ter dificuldade em desviar a atenção).
Eu sugeriria que em vez disso a maior parte da ação está nos lobos temporais
para ver o significado das coisas, e seguramente esta é uma parte vital da
experiência consciente. Sem essa estrutura você é um zumbi (…), capaz somente
de dar um único resultado correto em resposta a uma demanda, mas sem nenhuma
capacidade de sentir o significado do que está fazendo ou dizendo”.(Ramachandram,
2004, p.306-7)
Qualia e
consciência estariam associados com os estágios intermediários de
processamento, acontecendo principalmente “no lobo temporal e nas estruturas
límbicas associadas, e nesse sentido, os lobos temporais são a interface entre
percepção e ação. A prova disto vem da neurologia; lesões cerebrais que
produzem profundos distúrbios de consciência são aquelas que geram processos
nos lobos temporais, enquanto lesões em ouras partes do cérebro produzem apenas
distúrbios menores em matéria de consciência. Quando os cirurgiões estimulam
eletricamente os lobos temporais de epilépticos, os pacientes têm nítidas
experiências conscientes. Estimular a amígdala é o meio seguro de ‘repassar’
toda uma experiência, como uma memória autobiográfica ou uma nítida
alucinação. Acessos nos lobos temporais são muitas vezes associados não só com
alterações de consciência no sentido de identidade pessoal, destino pessoal e
personalidade, mas também com nítidas qualia - alucinações como odores e sons. (...)
Os odores, dores, paladares e sentimentos – todos gerados nos lobos temporais –
sugerem que esta região do cérebro está intimamente envolvida com qualia e percepção consciente. Outra
razão para escolher os lobos temporais – especialmente o esquerdo – é que nele
que grande parte da linguagem é representada”.
(Ramachandram , 2004, p.307)
Como
os qualia (“a essencial particulariedade e incomunicabilidade de estados
mentais”, a “impressão crua” das sensações) não existem soltas no ar,
Ramachandram evoca o outro lado necessário da mesma moeda: a individualidade, o
“eu” dentro do sujeito que experimenta. Me pergunto se a noção de qualia não
seria apenas outra forma de traduzir a noção budista dos agregados da sensação,
percepção e formações mentais. De todo modo, reencontramos a questão da
individualidade, cujas características elencadas por Ramachandram seriam as
seguintes (para as quais, segundo o autor, se deveria depois buscar as
estruturas cerebrais que estariam envolvidas em cada um desses aspectos):
• A individualidade corporificada
(envolve a imagem corporal, maleável; a “propriedade” do corpo seria uma
ilusão)
• A individualidade arrebatada
(capacidade de experienciar emoções, pelo sistema límbico e amígdala)
• A individualidade executiva
(monitorada pelas interações cerebrais das representações que fazemos do mundo,
dos objetos e de nós mesmos, cuja estrutura neural envolvida seria a
circunvolução do giro cingulado anterior)
• A individualidade mnemônica
(autobiografia e memórias que buscam ser organizadas e reorganizadas
constantemente numa história coerente para permitir a auto-construção do
indivíduo e uma visão coerente do mundo, envolvendo hipocampo e amígdala)
• A individualidade unificada (impondo
coerência à consciência, preenchimento e confabulação – processos de controle,
envolvendo a amígdala e o giro cingulado anterior)
• A individualidade vigilante
• A individualidade conceitual e a
individualidade social (o conceito abstrato que se faz de si mesmo, através das
percepções do próprio corpo, da informação autobiográfica: a necessidade de
impor estabilidade, coerência interna e coerência com o comportamento; nossa
auto-representação como unificados, buscando objetivos sociais e ser
inteligível aos outros, capazes de reconhecer nossa identidade passada e
futura, nos capacitando a ser vistos como parte da sociedade (Ramachandram,
2004, p.309-317).
Todas
essas características com as quais compomos (e buscamos proteger) nosso senso
de “eu” seriam supostamente reais. Reencontramos essas observações nas
Neurociências e nas vertentes da Psicologia ocidental, a respeito do “eu”. Se é
verdade que também reaparecem nos comentários budistas, mas na ciência budista
da mente há uma ênfase determinante: são reais apenas no sentido de que existem
como fenômenos criados pela mente condicionada, mas são apenas relativamente
reais. De fato, são delusões do ego. Ramachandram também termina por concluir
algo semelhante: “a individualidade, que quase por definição é inteiramente
privada, é em grau significativo uma construção social – uma história que você
compõe para os outros. (…) A ciência – a cosmologia, a evolução e especialmente
as ciências do cérebro – está nos dizendo que não temos nenhuma posição
privilegiada no universo e que nossa sensação de ter um espírito, uma alma
imaterial particular “observando o mundo”, é realmente uma ilusão (como há
muito tempo tem sido enfatizado por tradições místicas orientais como o
hinduismo e o zen-budismo). Uma vez que você compreenda que, longe de ser um
espectador, você é parte do eterno fluxo e refluxo de acontecimentos no cosmo,
esta percepção é muito libertadora”. (Ramachandram, 2004, p.318-20).
O
senso de um eu-ego já está na consciência desde o momento da concepção
embrionária, como um ressurgir das tendências anteriores de apego e delusão.
Conforme o bebê vai crescendo, o senso inicial de uma “mente oceânica” vai se
diferenciando, o bebê começa a perceber distinções entre ela e o mundo
(inicialmente em relação ao mundo dos pais); ela recebe um nome e percebe que
se associa um nome a “mim”, e nesse gradual processo o senso de “eu-corpo-desejo”
coagula uma ideia de individualidade-personalidade distinta, que precisa ser
alimentada e defendida (Bhante Rahula, 2011).
É
apenas através do cultivo da plena atenção sobre nossos processos corporais e
mentais que podemos gradualmente desconstruir a ilusão do ego. Muitas vezes é o
sofrimento agudo que nos impele a buscar sair do circuito de geração e
experienciação de estados mentais dolorosos. Concentração e plena atenção nos
nossos processos corporais e mentais irão abrindo o olho da sabedoria e do
insight (vipassana) de que as experiências dos cinco agregados (corpo,
sensação, percepção, pensamentos-emoções e a própria consciência) são apenas
fenômenos impermanentes, insatisfatórios e sem substância fixa. A meditação nos
permite ver, momento a momento, a ausência de substancialidade dos cinco
agregados com que até então nos identificávamos como sendo eu-meu-mim;
eu-meu-corpo, eu-meu-sensações, eu-meu-percepção, eu-meu-pensamentos, eu-meu-consciência.
Este é o profundo ensinamento do Buddha sobre o não-eu (anatta) (1).
O
neurocientista Francisco Varela, em suas pesquisas neurofisiológicas, conclui
na mesma direção, de que não há no cérebro nenhuma instância de base de um
ego-self. A transitoriedade também é a do próprio cérebro; o que temos são
apenas agregados de experiências, e que essas experiências não podem ser
definidas de forma exata. O ego-self é apenas um constructo mental criado pelo
apego-desejo:
“Poderia
parecer que, em nossa busca de um self nos
agregados, saímos de mãos vazias. Tudo o que tentamos agarrar parecia
escorregar por entre nossos dedos, deixando-nos com a sensação de que não há
nada a que nos apoiarmos. Neste ponto, é importante fazer uma pausa, e outra
vez lembrar o que era exatamente eu não conseguíamos encontrar. Não deixamos de
encontrar o corpo físico, embora tenhamos tido que admitir que sua designação
como meu corpo depende muito de como
escolhemos ver as coisas. Nem deixamos de localizar nossos sentimentos e
sensações, e também encontramos nossas variadas percepções. Encontramos
disposições, desejos, motivações – em resumo, tudo o que forma nossa
personalidade e o sentido emocional do self.
Descobrimos também todas as variadas formas pelas quais podemos estar
conscientes: consciência de ver e ouvir, sentir cheios, ter paladar, tocar,
mesmo a consciência de nossos processos de pensamento. Assim, a única coisa que
não descobrimos foi um sel ou ego
realmente existente. Mas observe que encontramos a experiência, e simplesmente
não pudemos discernir ali nenhum self,
nenhum “eu”.
Por que então nos sentimos de mãos vazias? Nós nos
sentimos dessa forma por termos tentado agarrar algo que, em primeiro lugar,
nunca este lá. Esta tentativa de agarrar continua o tempo todo – é exatamente a
resposta emocional profundamente enraizada que condiciona todo nosso
comportamento e molda todas as situações nas quais vivemos. É por esta razão
que os cinco agregados são descritos como os “agregados do apego” (upadanaskandha ). Nós – ou seja, nossa
personalidade que em grande medida pode ser vista como formações disposicionais
– nos apegamos aos agregados como se eles fossem o self, quando de fato, eles são destituídos (sunya) de um self” (Varella, 2003, p.91-92).
Nessa mesma linha, encontramos as observações dos
neurocientistas Rich Hanson (neuropsicólogo) e Richard Mendius
(neurofisiologista). Resumidamente:
“O self-como-sujeito
é o senso elementar de ser um experienciador de experiências. A conscientização
(awarenes) tem uma inerente subjetividade, uma localização em uma perspectiva
particular (por ex., ao meu corpo, não ao seu). Esta localização é embasada num
engajamento do corpo com o mundo. Por exemplo, quando você gira a cabeça para
escanear um quarto, o que você vê está especificamente relacionado com seus
próprios movimentos. O cérebro indexa através de inúmeras experiências para
encontrar o dado comum: com o experienciar delas em um particular corpo. De
fato, a subjetividade surge da distinção inerente entre este corpo e aquele mundo;
num sentido mais amplo, subjetividade é gerada não apenas no cérebro, mas nas
fluídas interações que o corpo tem com o mundo.
Então o cérebro indexa momentos de subjetividade para
criar um aparente sujeito que – ao longo do desenvolvimento, da infância à
maturidade – é elaborado e enraizado através da maturação do cérebro,
notavelmente no córtex pré-frontal. Mas não há um sujeito inerente na subjetividade; nas práticas avançadas de
meditação, encontramos uma conscientização desnuda (bare awareness) sem um
sujeito. A conscientização (awareness) requer subjetividade, mas não requer um
sujeito.
Em suma, do ponto de vista neurológico, a sensação
cotidiana de ser um self unificado é uma ilusão: o aparentemente coerente e
sólido “Eu” é de fato construído por muitos subsistemas e sub-subsistemas no
curso do desenvolvimento, sem um centro fixo, e a sensação fundamental de que
há um sujeito da experiência é fabricada por miríades de momentos disparados de
subjetividade”. (Hanson, Mendius, 2009, p.210-211)
Quando
nos colocamos na prática da plena atenção, de modo a ver com clareza que o que
chamamos de “eu” é apenas uma ilusão, nos defrontamos com uma aparente
contradição com as proposições da Psicologia ocidental, que advoga a
necessidade de construirmos um ego saudável e estruturado. Joseph Goldstein nos
abre importantes perspectivas sobre esse tema. “Ego” e “eu” são palavras que se
usa de modos diferentes, o que pode criar confusão:
“No sentido psicológico ocidental, “ego” ou “eu” são referentes
a um determinado tipo de equilíbrio e de força da mente. Nesse sentido, ter um
ego fortemente desenvolvido é essencial para nosso bem estar. Precisamos ter
esse equilíbrio para funcionar no mundo como seres humanos em equilíbrio.
Pessoas com um senso pouco desenvolvido do eu não conseguem ter um bom
desempenho no mundo, nem são capazes de encontrar paz em si mesmas.
O uso budista da palavra eu é diferente desse conceito de equilíbrio ou de maturidade
mental-emocional. Quando o Buda se refere ao “eu”, ele está falando de uma ideia
ou de um conceito que temos de uma essência imutável que está passando por uma
experiência. Portanto, quando ele fala da ausência do eu, ou de anatta, no idioma Páli, eles diz que é
preciso compreender que a experiência não se refere a qualquer pessoa – essa é
a compreensão crucial e transformadora que se torna tão profunda em nossa
prática.
A introvisão significa ver de modo claro e profundo que
tudo na mente e no corpo está num processo de transformação, e que não existe
ninguém por trás disso, ninguém a quem isso esteja acontecendo. O pensamento é o pensador; não existe pensador
separado do pensamento. É a raiva que
tem raiva e é o sentimento que sente. Tudo é apenas o que é e unicamente o eu é. A experiência não pertence a ninguém. É
justamente esse processo adicional e errado de referência a alguém, a alguma
ideia de um âmago do ser, que acaba criando o que o Buda chamou de ego ou “eu”.
Nós sobrepomos uma ideia de ego ou de eu a uma realidade que, na verdade, não
tem ego nem eu.
O processo de
desenvolver uma forte estrutura de ego e de ver a natureza destituída de um eu
da experiência são bastante complementares, apesar de as palavras parecerem
contraditórias. Um saudável senso do eu se desenvolve quando aprendemos a ver
claramente e a aceitar todas as diferentes partes do que somos; compreender o
vazio do eu advém de não acrescentar a estas partes o fardo da identificação.
(...)
Um eu saudável e um eu vazio não são contraditórios; eles
apenas nas parecem sê-lo porque usamos a mesma linguagem para descrever duas
coisas totalmente diferentes. Todo o caminho da meditação trata da compreensão
de que o eu como entidade imutável é uma ficção, uma ilusória construção
mental. Mas para perceber essa verdade, precisamos do tipo de equilíbrio a que
a psicologia ocidental se refere quando fala de um ego forte. Sem qualidades de
equilíbrio e força mental, é impossível ver que não existe um eu único e
imutável que é o sujeito da experiência. Portanto, podemos afirmar, usando os dois
significados da palavra, que para abrir mão do ego primeiro é preciso
desenvolvê-lo”. (Goldstein, 1999, p.111-113)
Do ponto de vista da prática da meditação, iniciamos
nosso treinamento com o propósito de superar o sofrimento, com o senso de “eu
estou vendo melhor a realidade do meu corpo e mente”, “eu estou me
desenvolvendo”, etc. Não é útil, ao menos para a maioria de nós, começarmos
querendo “destruir” o eu, o ego; ao contrário, buscamos tornar nosso senso de
ego menos ignorante, menos reativo e menos apegado; e à medida que esse senso
de “eu” se torna mais equilibrado, usamos desse equilíbrio e da sabedoria para
investigar esse “eu” e vermos que não precisamos dele, que é uma delusão. É
como uma criança que começando a andar, usa de um andador com que se
identifica; aos poucos, conseguindo andar por si, vê que o andador é só um
apoio, agora desnecessário e não é o seu “eu”.
E se o senso de “eu” é uma delusão, de onde vem? Como a
mente cria essa noção condicionada e deludida de um “eu”? Vimos que, de acordo
com os ensinamentos do Abhidhamma, a mente é cognição, a faculdade do
saber, conhecer. A mente é intrinsicamente pura, luminosa, sábia e
invisível. É a mente que conhece todos os agregados do corpo, sensação,
percepção, formações mentais e consciência. Neurocientistas como Ramachandram,
Varela, nos lembram que a consciência é o mistério mais profundo da condição
humana. Mas se a mente é luminosa, por que a ignorância geradora de sofrimento?
Sucede que, conforme vimos, a cognição da mente vem acompanhada, momento a
momento, de fatores mentais como a raiva, a cobiça, a amorosidade, etc. Esses
fatores mentais tingem a coloração com tons saudáveis ou não saudáveis. E há um
fator que cria e nos mantém presos à noção convencional do “eu”:
“Trata-se do fator da percepção, cuja função é a de
reconhecer as aparências fixando-se nas suas características distintivas e,
depois, armazenando-as na memória através do uso de conceitos. Mulher, homem, árvore, automóvel, cidade,
oceano são alguns poucos exemplos das inúmeras coisas que reconhecemos
através da percepção.
Quando a percepção surge juntamente com a atenção total
(a plena atenção), o reconhecimento superficial serve como moldura para o
aparecimento de uma observação mais profunda e cuidadosa. Mas quando a
percepção funciona sem a atenção total, reconhecemos e lembramos apenas da
aparência das coisas” (Goldstein, 1999, p.128)
“(...) Enquanto continuarmos presos a essa ilusão, não
conseguiremos ver claramente ou compreender a natureza impermanente e insubstancial
dos fenômenos momentâneos. Apesar de podermos conhecer a verdade da mudança
intelectualmente, para que ela transforme nossa compreensão é preciso
vivenciá-la em nós mesmos”. (Goldstein, 1999, p.129) (2)
Se com plena atenção, conscientizamos pela meditação que
não há um eu, se há apenas agregados fenomênicos de
corpo-sensação-percepção-pensamento-consciência, o que resta de “nós”? Esse
temor de aniquilamento, do nada, surge em nossa mente. Queremos
algo fixo, algum chão sólido para nos apoiar, que fosse uma “alma”, um
“espírito”, ou algo similar. Este temor pode chegar a se transformar no
Síndrome de Pânico. É possível que esse distúrbio psíquico, frequente em nossa
civilização moderna, tenha certa relação com essa percepção, não claramente elaborada,
da insubstancialidade da realidade fenomênica, disparando como que sem causa
aparente, o medo de algo difuso, que pode chegar a avolumar-se até a sensação
de terror, de um pânico, uma ansiedade descontrolada.
Em um nível menos dramático, é frequente que em retiros
mais longos, praticantes experienciem certo temor diante da percepção de anatta, não-eu. Alguns mestres contam
histórias curiosas sobre praticantes que, de súbito, agarram um abajur e
começam a bradar em voz alta: “Eu sou fulano de tal, moro em tal lugar” e assim
por diante, ou que peçam desesperadamente um jornal para lerem e se sentirem
“reconectados com o mundo de fora”, tal é a força do apego à noção de um “eu”
como “chão fixo”.
Outro lado do risco em uma conscientização equivocada sobre
o não-eu é o de cairmos no outro extremo, o do nihilismo. O neurocientista
Francisco Varela, após o exame neurofisiológico do caráter momentâneo,
descontínuo, não-unificado e transitório do próprio cérebro, dialoga com as
Ciências Cognitivas a respeito da ausência de fundações fixas no mundo
fenomênico (3). Reconhecendo empiricamente a impossibilidade de encontrarmos
“fundações fixas” no Universo, muitos representantes da Ciência e Filosofia
ocidental terminam por concluir pelo nihilismo, pela negação das proposições
das religiões e pelo conformismo, desconhecendo os aportes das tradições
orientais a esse respeito.
Chão fixo ou nihilismo aniquilacionista? Nem um, nem
outro. Há outra alternativa, o caminho do Meio. O processo cognitivo da mente
tem três termos: o sujeito que conhece, o objeto conhecido, e o processo
cognitivo. Em nossos processos mentais, quando desatentos, tendemos a oscilar
entre o foco nos objetos e o foco no sujeito-ego. Tendemos ora a grudar nos
objetos (tentando nos apegar aos objetos que consideramos agradáveis e rejeitar
aqueles que consideramos desagradáveis), ora a pular nossa atenção para o
“sujeito-eu” que conhece: “vejo isto, penso aquilo”, etc. Estamos condicionados
a focar e experienciar esses dois termos. Mas quase não percebemos o importante
termo do meio: o processo do conhecendo, a pura conscientização (awareness). É
aí exatamente que se abre o espaço da mente para o insight sobre o não-eu:
apenas cognição, conhecendo, sem sujeito.
O treinamento da Plena Atenção nos permite escapar da
prisão focada no eu-sujeito/objeto, vendo-os como apenas nuvens passageiras no
espaço aberto e vazio. A própria conscientização é percebida como um processo
cambiante; a faculdade do saber, como todos os agregados, surge e desaparece
continuamente, no espaço vazio da mente, nenhum “chão-coisa fixa”. Segundo um
símile proposto por Goldstein:
“Quando percebemos que o próprio processo de
conscientização é impermanente, sempre mudando, podemos nos sentir abalados,
pois nos identificamos com
a faculdade do saber como sendo o nosso eu: “Imagine que você
saltou de um avião e caiu em queda livre durante os primeiros minutos. Imagine
a sensação de liberdade, de excitação. Mas depois você percebe que não tem
pára-quedas e entra em pânico enquanto continua caindo. Caindo, caindo, caindo,
apavorado pelo fato de não ter pára-quedas...até que chega um momento que
você percebe que não existe chão! Nesse
instante da compreensão, você simplesmente sente o prazer da experiência.
Frequentemente, passamos por uma seqüência emocional
semelhante na prática da meditação. À medida que a nossa identificação com as
coisas diminui, e que vemos como as coisas mudam rapidamente, a princípio pode
ocorrer uma verdadeira excitação, um sentido maior de amplitude. No entanto,
sentimentos de pânico podem surgir quando percebemos que nada existe a que
possamos nos agarrar. Tanto os objetos da consciência como a faculdade de
conhecê-los estão continuamente caindo, feito a água de uma cachoeira.
Compreendemos agora, num nível mais profundo, que nada a que nos agarramos em
busca de segurança realmente nos proporcionam o que buscamos. Mas, continuando
com a prática, surge a iluminação: não existe chão onde cair nem alguém que possa cair sobre ele – apenas
fenômenos que se sucedem continuamente. Sentimos, então, o grande alívio do nos
soltar, a profunda sensação de equanimidade e a alegria do bem
estar”.[Goldstein, 1999, p. 134-135)
Quando a mente se purifica das impurezas da cobiça, ódio
e delusão-ignorância, realizando a natureza impermanente e insubstancial dos
fenômenos do corpo e da mente, se alcança o estado liberto, Nibbana, o Vazio (suññata). Para além da dualidade, e
mesmo da unidade: seria o Zero. Mas o vazio, embora não seja nenhum “chão-coisa
fixa”, nada a se apegar, não significa o nada, ausência de realidade. Ao
contrário, é a Realidade Última, Suprema, Incondicionada:
“Existe um não-nascido, um não-tornado-a-ser, um
não-feito, um não-composto; se fosse por este não-nascido, não-tornado-a-ser,
não-feito, não-composto, não seria possível neste mundo nenhuma evasão do
nascimento, do porvir, do fazer, da composição. Mas porque existe este
não-nascido, não-tornado-a-ser, não-feito, não-composto, é possível que haja
uma evasão do nascimento, do porvir, do fazer, da composição”. (Udana, 80)
De forma sintética e direta, Buddha expõe o treinamento
para libertarmos a mente do emaranhado da identificação com os agregados
corpo-mente:
“Então, Bahiya, você deve treinar assim: Com relação ao
que é visto, haverá apenas o visto. Com relação ao que é ouvido, haverá apenas
o ouvido. Com relação ao que é sentido, haverá apenas o sentido. Com relação ao
que é conscientizado, haverá apenas o conscientizado. Assim é como você deve
treinar. Quando com relação ao que é visto houver apenas o visto, ao que é
ouvido houver apenas o ouvido, ao que é sentido houver apenas o sentido, ao que
é conscientizado houver apenas o conscientizado, então, Bahiya, você não estará
‘com aquilo.’ Quando você não estiver ‘com aquilo,’ então você não estará ‘naquilo.’
Quando você não estiver ‘naquilo,’ então você não estará aqui, nem além e
tampouco entre os dois. Isso em si mesmo é o fim do sofrimento.” (Bahiya Sutta,
Udana I.10, em www.acessoaoinsight.net).
Nesse ensinamento direto, Buddha orienta para a prática
de focalizar nossa atenção sempre apenas no processo do conhecendo, e “você não
estará ‘com aquilo’”, “você não estará ‘naquilo’”, as proliferações e formações
mentais, as “novelas “que a mente cria, que nos aprisionam nos objetos ou na
noção ilusória de um “sujeito que conhece”, pois dessas formações mentais
contaminadas surge o desejo, e o apego/aversão, acoplados a um senso de um “eu”
que gosta ou desgosta, e o gostar/desgostar realimenta o desejo, o apego/aversão,
que condiciona o prosseguimento do vir-a-ser, com toda a massa de sofrimento, e
ficamos enredados nessa cadeia da originação dependente, o samsara, com seus
incessantes ciclos de nascer e morrer.
“Não havendo nenhum desejo de ter, nem de ser um alguém,
a mente se dissolve dentro de suññata (o
vazio, que é nibbana). (...) Em
conclusão, gostaria de dizer novamente que este tema único do vazio cobre tudo
do Budismo, pois o Buddha respirava com suññata.
O vazio é a teoria, a prática, e o fruto da prática. Se alguém estuda, deve
estudar suññata; se alguém pratica,
deve ser para o fruto de suññata; e
se alguém recebe qualquer fruto, deve ser este suññata, de modo que finalmente se atinge o que é o supremamente
desejável. Não há nada além do vazio. Quando isso é realizado, todos os
problemas cessam” (Buddhadasa Bhikkhu, 2000, p. 105 e 114).
Suññata, o Vazio, é a qualidade intrínseca de tudo, é a
mente livre de apego, cobiça, ódio, delusão. É Nibbana, a Realidade-Mente
Incondicionada. A conclusão da jornada. A Felicidade Plena.
O que precisamos para realizar Nibbana? Praticar,
praticar, praticar.
Notas
(1)
Sobre a noção do “não-eu” nos ensinamentos budistas, veja: Anattalakkhana Sutta, Samyutta Nikaya (SN) XX11, 59, www.acessoaoinsight.net
(2) Sobre a noção da
“personalidade”, veja em Goldstein, Joseph.
Personalidade e Transformação, Cap. 4, em Meditação e Visão
Interior. Aprendendo a ser livre. São Paulo: Pensamento,
1999]
(3) Varela, Francisco;
Thompson, Evan; Rosch, Eleanor. Mundos
sem Fundação, cap. V, A Mente Corpórea: Ciências cognitivas e Experiência
Humana. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 2003.
Referências
Bhante Rahula. Superando a ilusão do Eu. São Paulo:
Casa de Dharma, 2011, www.casadedharmaorg.org
Buddhadasa Bhikkhu. Heartwood of
the Bodhi Tree. The Buddha’s
Teaching of Voidness. Boston:
Wisdom, 2000.
Goldstein, Joseph. Meditação e Visão Interior. Aprendendo a ser livre. São
Paulo: Pensamento, 1999.
Hanson, Rick, Mendius
Richard. The practical neuroscience of
Buddha’s Brain. Happiness, love & wisdom. USA: New Harbinger
Publications, 2009.
Ramachandram, V.S., Blakeslee, Sandra. Fantasmas no Cérebro:
uma investigação dos mistérios da mente humana. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2004.
Varela, Francisco;
Thompson, Evan; Rosch, Eleanor. A Mente
Corpórea: Ciências cognitivas e Experiência Humana. Lisboa: Ed. Instituto
Piaget, 2003.
*******
Meditação da Plena Atenção, Neurociências e Saúde
10
A
Consciência, as formações mentais e o Sistema Nervoso:
O processo
cognitivo e a formação dos karmas
Momento a momento, a
consciência surge e desaparece, junto com os fatores mentais que tingem nossa
experiência mental, dependente dos fatores saudáveis ou não saudáveis. Havendo
consciência dos objetos, há o contato.
Não é difícil
percebermos a momentariedade impermanente dos processos corporais, ou das
sensações e percepções. Mas por que é difícil percebermos a impermanencia da consciência?
Nossa percepção tende a considerar que a consciência é uma realidade contínua e
permanente, e que o que apenas mudaria seriam os conteúdos da consciência. Não
vemos com clareza a impermanência da consciência, em parte devido à nossa baixa
concentração e plena atenção, mas também porque a velocidade da mudança da
consciência é extremamente rápida, por isso a sensação de estabilidade e fixidez
da consciência. Buddha dizia que num piscar de olhos há milhões de momentos de
consciência, surgindo e desaparecendo. Imagine as pás de um ventilador: quando
paradas, podemos vê-las como objetos distintos, mas quando em movimento
percebemos apenas como uma circunferência difusa. Com a consciência seria algo
semelhante.
Quais tipos de
fatores mentais acompanham momento a momento a consciência? Os fatores mentais
(cetasika) são como que o séquito que
sempre vêm junto com o rei. Auxiliam a consciência como funções específicas na
cognição operada pela consciência. Esses fatores aparecem de modo mais
detalhado nos tratados do Abhidhamma (1). São elencados cinquenta e dois fatores mentais:
·
7 Universais (presentes em todo momento de
consciência):
1.
Contato
2.
Sensação
3.
Percepção
4.
Volição
5.
Unicidade
num único ponto
6.
Faculdade
vital
7.
Atenção
·
6
Ocasionais
1.
Pensamento
aplicado
2.
Pensamento
sustentado
3.
Decisão
4.
Energia
5.
Extase
6.
Aspiração
·
14
Não saudáveis
1.
Delusão
2.
Ausência
de vergonha moral
3.
Destemor
moral
4.
Inquietação
5.
Cobiça
6.
Entendimento
Incorreto
7.
Presunção
8.
Raiva
9.
Inveja
10.
Avareza
11.
Preocupação
12.
Preguiça
13.
Torpor
14.
Dúvida
·
25
Saudáveis e Belos
1.
Convicção
2.
Atenção
Plena
3.
Vergonha
moral
4.
Temor
moral
5.
Não-cobiça
6.
Não-raiva
7.
Neutralidade
mental
8.
Tranquilidade
no corpo mental
9.
Tranquilidade
na consciência
10.
Leveza do corpo mental
11.
Leveza da consciência
12.
Maleabilidade do corpo mental
13.
Maleabilidade da consciência
14.
Manuseabilidade do corpo mental
15.
Manuseabilidade da consciência
16.
Proficiência do corpo mental
17.
Proficiência da consciência
18.
Retidão do corpo mental
19.
Retidão da consciência
20.
Linguagem correta
21.
Ação correta
22.
Modo de vida correto
23.
Compaixão
24.
Alegria altruísta
25.
Faculdade da sabedoria (2)
Um dos importantes fatores mentais é a
volição, intenção (cetana). É a
intenção da ação (física, verbal ou mental) que confere a qualidade saudável ou
não-saudável da ação. É um fator importante porque é a ação volitiva que é o
karma, e experienciaremos mais cedo ou mais tarde os frutos da ação kármica (vipakacitta). Karma (kamma) é um tema complexo e relativamente mal compreendido,
equivocadamente interpretado como uma espécie de fardo, maldição, um “destino
implacável, cruel e inexorável”. Compreender corretamente o karma é
compreendê-lo como ação volitiva, cuja intenção (saudável ou não saudável) gera
frutos saudáveis ou não saudáveis, a serem experienciados como estados mentais de
sofrimento (akusala vipakacitta) ou
felicidade (kusala vipakacitta).
Como se dá o processo
cognitivo da mente, em cada momento de consciência? Segundo o Abhidhamma, em
cada momento de consciência há 17 sub-momentos, cada qual realizando certa
função no processo cognitivo mental. Resumidamente, quando um objeto (visual,
sonoro, olfativo, gustativo, tátil ou mental) contata o órgão sensorial
correspondente e há a atenção da consciência naquele momento, surge a
consciência momentânea correspondente. E dependendo de quais dos fatores
mentais estejam presentes nesses sub-momentos do processo cognitivo, experienciamos
estados mentais saudáveis ou não-saudáveis, sofrimento ou felicidade. E como
podemos aplicar essa compreensão conceitual em nosso treinamento da Meditação
da Plena Atenção? Treinando a concentração e plena atenção inicialmente em
objetos mais perceptíveis, como o corpo e as sensações, ganhamos
progressivamente mais habilidade para contemplarmos o que ocorre em nosso corpo
e mente em cada momento, observando silenciosamente: isto que surge, é
saudável? Não-saudável? Devo alimentar? Abandonar? Iremos ganhando clareza em
níveis mais sutis, refinados de nossa realidade física e mental, uma maior
compreensão pela visão direta de nossos pensamentos, intenções sutis que brotam
de camadas subconscientes. Assim, podemos aceitar o que surge, e decidirmos se
queremos reforçar ou abandonar aquele padrão de pensamento e emoção. Ao invés
de reagirmos automaticamente, podemos responder com sabedoria e amorosidade, e
com isso trabalhamos progressivamente pelo enfraquecimento de padrões kármicos
não-saudáveis, e fortalecemos aqueles padrões saudáveis, que irão produzindo
estados mentais de maior felicidade, libertando a mente do sofrimento.
Nesse processo de
refinamento e aprofundamento no conhecimento, desenvolvemos sabedoria e
desapego. Compreendemos que o apego gera sofrimento, ansiedade, medo, tensões
no corpo e na mente. Mas atenção: nesse processo de treinamento, enfrentamos
muitas dificuldades, devido à presença de raízes não-saudáveis na mente. Os
anticorpos da saúde mental enfrentam inicialmente os vírus mais grosseiros e
comuns, os cinco obstáculos (nivarana):
torpor e preguiça, dúvida, animosidade aversiva (a má vontade, ou vontade
doentia, raivosa, ressentida), agitação e preocupação e desejo sensual, que
impedem temporariamente a concentração. Segundo o Maha Satipatthana Sutta:
CONTEMPLAÇÃO DOS DHAMMAS
E como, bhikkhus, um bhikkhu permanece
contemplando o Dhamma nos dhammas (3)?
Os Cinco Obstáculos
Aqui, bhikkhus, um
bhikkhu permanece contemplando o
Dhamma nos dhammas nos cinco obstáculos. Como, bhikkhus, um bhikkhu permanece
contemplando o Dhamma nos dhammas dos cinco obstáculos?
Aqui, bhikkhus, quando
um desejo sensual está presente nele, o bhikkhu reconhece: “Existe em mim
desejo sensual”; ou quando o desejo sensual está ausente nel, ele reconhece:
“Não existe em mim desejo sensual”. Ele também compreende como é despertado o
desejo sensual que ainda não despertou, ele conhece a razão que leva ao abandono
de desejos sensuais despertos, e ele também conhece a razão que desejos
sensuais abandonados não despertem no futuro.
Quando a má-vontade
está presente ele reconhece: “Existe em mim má-vontade”; ou quando a má-vontade
está ausente, ele reconhece: “Não existe em mim má-vontade”. Ele também
compreende como é despertada a má-vontade que ainda não despertou, como
acontece o abandono da má-vontade despertada, e como acontece que a má-vontade
abandonada não desperte no futuro.
Quando a preguiça e
torpor estão presentes ele reconhece: “Existe em mim preguiça e torpor”; ou
quando a preguiça e o torpor estão ausentes, ele reconhece: “Não existe em mim
preguiça e torpor”. Ele também compreende como são despertados a preguiça e o
torpor que ainda não despertaram, como acontece o abandono da preguiça e torpor
despertados, e como acontece que a preguiça e torpor abandonados não despertem
no futuro.
Quando a inquietação e
o remorso estão presentes ele reconhece: “Existe em mim inquietação e remorso”;
ou quando inquietação e remorso estão ausentes, ele reconhece: “Não existem em
mim inquietação e remorso”. Ele também compreende como são despertados a
inquietação e o remorso que ainda não despertaram, como acontece o abandono da
inquietação e do remorso despertados, e como acontece que a inquietação e
remorso abandonados não despertem no futuro.
Quando a dúvida está
presente ele reconhece: “Existe dúvida em mim”; ou quando a dúvida está
ausente, ele reconhece: “Não existe dúvida em mim”. Ele também
compreende como é despertada a dúvida que ainda não despertou, como acontece o
abandono da dúvida despertada, e como acontece que a dúvida abandonada não
desperte no futuro.
Assim ele permanece
contemplando o Dhamma nos dhammas internamente, ou permanece contemplando o Dhamma
nos objetos mentais externamente, ou permanece contemplando o Dhamma nos
objetos mentais tanto internamente como externamente.
Permanece contemplando
os fatores de originação nos dhammas, ou permanece contemplando os fatores de
dissolução nos dhammas, ou permanece contemplando tanto os fatores de
originação como os de dissolução nos dhammas.
A plena atenção de que
“existem apenas dhammas” se estabelece. A plena atenção se estabelece com a
extensão necessária para se aprofundar o conhecimento e a plena atenção.
Ele permanece não
dependente em (ou apegado a) nada que diz respeito ao desejo e à visão errada.
Nem ele se apega a
nada do mundo dos cinco agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece
contemplando o Dhamma nos dhammas dos cinco obstáculos.
Como praticar?
“Ao
sentar para meditar, à medida que o corpo e a mente relaxam, sente-se
naturalmente sonolência. Quando isso acontecer, deve-se usar um dos métodos
para vencê-la. Uma vez vencida a sonolência, deve-se focalizar a mente no objeto
da meditação, digamos, a respiração. Ao focalizar a mente na respiração,
conforme o obstáculo da sonolência se desfaz, a mente alcança aquilo que é
chamado “momento inicial da focalização da mente na respiração sem sonolência”.
Isso traz confiança, porque se vê algum resultado da prática.
A confiança ou fé manifesta-se quando se
vê, sabe ou compreende algo que está acontecendo. Quando a confiança surge, a
dúvida com relação à obtenção da plena atenção desaparece e então a mente
permanece fixa no objeto por mais tempo, que é o que nos chamamos de “aplicação
da mente”.
Também é possível que surja a inquietação
e a preocupação. Deve-se usar então o método para eliminar ambas. Especialmente
quando a mente está cheia de confiança e permanece fixa no objeto, a
inquietação e a preocupação desaparecem. Quando elas desaparecem, surge a
alegria, porque neste ponto a mente está assentada e relativamente calma.
Então, a mente ainda focalizada na respiração apresenta o fator da alegria.
Quando a alegria se instala, se desenvolve e cresce, qualquer ressentimento,
raiva ou desapontamento que se possa ter desaparecerá. Quando o ressentimento
se vai, ficamos felizes. Quando surge a felicidade, isso significa se está
alcançando um nível no qual corpo e mente encontram-se mais calmos, mais
tranqüilos e assentados. Como resultado, a cobiça, o apego e o desejo se
dissolvem.
Lembrem-se de que a
felicidade que experimentamos neste ponto é a plenitude, o contentamento e que,
dessa forma, a mente fica plena de contentamento e não precisa de mais nada a
que agarrar, desejar ou prender-se. Nesse momento, a mente está completamente
focalizada na respiração”. (4)
Em um nível mais
profundo, estão os grilhões, mais enraizados, com os quais temos de trabalhar
progressivamente, para sua erradicação:
“O
meditador plenamente atento deve prestar atenção a como esses sentidos e
objetos sensoriais se encontram e como surgem os grilhões. Quando surgem os
grilhões, o meditador plenamente atento sabe: “Surgiu esse grilhão em
especial”; quando esse grilhão desaparece, ele sabe: “Esse grilhão
desapareceu”; quando este grilhão não retorna mais, ele sabe: “Esse grilhão se
foi e não tornará a retornar”. E quais são os grilhões? Os grilhões são aqueles
estados mentais que nos prendem à repetição do nascimento e morte. Eles são
mais fortes e duradouros que os obstáculos e são em número de dez:
1.
Crença na existência de um eu
2.
Dúvida cética
3.
Apego a regras e rituais
4.
Forte desejo sensual
5.
Raiva
6.
Forte desejo pela existência material (rupa-raga)
7.
Forte desejo pela existência imaterial (arupa-raga)
8.
Orgulho
9.
Inquietação
10. Ignorância
Alguns desses grilhões e obstáculos
se sobrepõem e fundem-se, misturam-se uns aos outros porque alguns grilhões
também são obstáculos. Por exemplo: o prazer sensual, a dúvida, a raiva e a
inquietação misturam-se. Os obstáculos são apenas cinco, enquanto os grilhões
são dez.
Como
vocês sabem, os obstáculos atrapalham temporariamente, impedindo o progresso na
obtenção de concentração. É por isso que são chamados obstáculos. Alguns desses
obstáculos tornam-se grilhões; eles se tornam muito fortes, muito poderosos,
como aço e pedra, prendendo-nos a este ciclo de nascimento e morte chamado samsara. Quando os obstáculos se
transformam em grilhões tornam-se muito fortes e unem-se a outros grilhões para
manter-nos fortemente atados ao samsara”.(5)
Treinando a plena
atenção e a concentração, contemplando os danos do sofrimento que esses
grilhões criam para a saúde e libertação da mente, erradicamos pouco a pouco
também esses grilhões; a erradicação progressiva desses grilhões permite que
alcancemos estados mentais cada vez mais sublimes, até alcançarmos o estado
mais elevado de arahant, aqueles perfeitamente libertados do samsara, para o qual não há mais
retorno.
Notas
(1) O Abhidhamma Pitaka, com sete volumes, é uma das três Coleções,
Cestas (Pitaka), que junto com o
Vinaya Pitaka (Compendio de cinco ou seis volumes, das regras da disciplina
para monges, monjas e leigos) e o Sutta Pitaka (Compêndio de cerca de trinta e
três volumes dos ensinamentos do Buddha na forma de palestras/sermões (suttas), formam o Cânone budista
Theravada (Tipitaka), na lingua Páli.
Durante os 45 anos de ensinamentos, Buddha proferiu 84 mil sermões, o que daria
cerca de 5 sermões em média por dia, entre sermões curtos, médios e longos.
Sobre este tratado, veja: Bhikkhu Bodhi (ed). A Comprehensive Manual of Abhidhamma. The Abhidhammatha Sangaha of
Acariya Anuruddha. Kandy , Sri Lanka : BPS, 1993.
(2) Para mais detalhes do significado de cada fator mental, veja Um Ensaio do Abhidhamma, II. Compendio dos
Fatores Mentais. www.acessoaoinsight.net
(3) O termo dhammas,
neste contexto, é traduzido por mestres budistas como objetos mentais ou
atividades mentais. Optamos por manter a palavra dhamma (em páli), conforme o texto original do autor.
(4) Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção.
pg. 211-212. São Paulo: Edições Casa de Dharma, 2012.
(5) Henepola Gunaratana, Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção.
pg. 151-152. Para mais detalhes sobre esses dez grilhões e sua superação, veja pgs.
152-161. São Paulo: Edições Casa de Dharma, 2012.
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
9
Consciência
e funções cerebrais:
Diálogos
a
Ciência da mente, na perspectiva budista e as
Neurociências
Neurociências
Arthur Shaker Fauzi Eid
Vimos
que o avanço das técnicas científicas modernas de observação
(electroencefalograma, a microestimulação elétrica do cérebro, tomografia por
emissão de pósitrons, imagens funcionais por ressonância magnética) trouxe
dados importantes para proposições de “mapas do cérebro”, interrelações entre
áreas cerebrais e funções cognitivas. Localizacionismo e holismo parecem não
ser visões excludentes, mas talvez complementares. Ainda assim, o tema da
distribuição de funções cerebrais parece estar ainda em aberto.
Resumidamente:
segundo Varela, durante os primeiros anos da cibernética, ocorreu prolongada
discussão sobe a questão de que “nos cérebros reais não parece existir
quaisquer tipos de regras, nem processadores lógicos centrais, nem a informação
parece estar armazenada em localizações precisas. Ao contrário, os cérebros
podem ser melhor vistos como operando com base em conexões massivas e
distribuídas de maneira que as conexões efetivas entre grupos de neurônios
mudam como resultado da experiência. (...) é preciso estudar os neurônios como
partes de grandes conjuntos que desaparecem e surgem constantemente através de
suas interações cooperativas, e nas quais cada neurônio tem respostas múltiplas
e variáveis dependendo do contexto. (...) O cérebro é, assim, um sistema
altamente cooperativo: as densas conexões entre seus componentes implicam no
fato de que, eventualmente, tudo o que acontece será uma função do todos os
componentes estão fazendo. Esse tipo de cooperação ocorre tanto local quanto
globalmente: ela funciona dentro de subsistemas do cérebro, e também no nível
das conexões entre esses subsistemas. Pode-se tomar o cérebro como um todo e
dividi-lo em subseções, de acordo com os tipos de células a áreas, como o
tálamo, o hipocampo, o giro cortical, etc. Essas subseções são formadas por
redes complexas de células, mas também são inter-relacionadas em um sistema de
rede. Como resultado, todo o sistema adquire uma coerência interna em padrões
imbricados, mesmo que não possamos dizer exatamente como isso ocorre”. [Varela,
Francisco J.; Thompson, Evan; Rosch, Eleanor, 2003, pgs. 99, 106-7]
A
questão da arquitetura do cérebro, bem como sua relação com a mente, é um tema
de grande complexidade. E dentro dessa tessitura cérebro-mente, qual o lugar da
consciência na condição humana? A consciência estaria vinculada a uma área de
função cerebral específica? (1)
A
proposição de que a consciência seria apenas emanações subjetivas dos processos
neurais tem merecido reflexões críticas a serem consideradas:
“Muitos estudos
científicos indicam que os fenômenos mentais – tais como desejos, pensamentos,
emoções e memórias experienciados subjetivamente – influenciam o funcionamento
e comportamento do cérebro. Em resposta a essa evidência empírica, um número
crescente de cientistas cognitivos conclui que os fenômenos mentais são reais,
mas insiste que, a fim de interagir de modo causal com o cérebro, a mente deve
ser física. Entretanto, os fenômenos mentais experienciados de forma subjetiva
carecem de quaisquer características físicas e não podem ser detectados com
nenhum dos instrumentos físicos de tecnologia, ainda que se tenha identificado
que muitas funções cerebrais específicas contribuem causalmente para geração do
processo mental.
Alguns
cientistas e filósofos da mente imaginam as funções cerebrais como dotadas de
uma identidade dual, tanto como processos físicos objetivos quanto como eventos
mentais subjetivos. Mas não oferecem explicação sobre aquilo que no cérebro
capacita-o a gerar, ou mesmo influenciar, eventos mentais, que dirá sobre o que
permite processos neurais específicos assumirem essa identidade dual. Esse é o
chamado “problema difícil”, que não foi resolvido desde que os cientistas
começaram a estudar a mente. Os fenômenos mentais permanecem um enigma para os
cientistas cognitivos tanto quanto o observador para os físicos modernos”.
[Wallace, 2009, p.8-9]
Neste
mesmo campo, na investigação do problema mente-corpo, a Neurobiologia tenta
descobrir os chamados correlatos neurais da consciência (CNCs). Pontos críticos
estão envolvidos nessa perspectiva:
“O
fato de um conjunto de processos neurais ser necessário para a geração de uma
experiência mental específica não exclui a possibilidade de que outros fatores
não-neurais sejam precisos para a geração daquela experiência. Além disso, a
identificação dos CNCs que são causas necessárias para uma experiência
consciente específica em humanos não implica que também sejam necessárias ou
suficientes para a geração de um evento mental similar em todos os outros
primatas, que dirá em animais mais primitivos ou até mesmo plantas. A
descoberta do CNC para um evento consciente específico pode ser relativamente
direta quando o evento é expresso em comportamento ou relatado verbalmente. Mas
determinar o CNC é altamente problemático quando não é esse o caso, como sucede
com um embrião humano ou com uma pessoa em estado vegetativo. Além do mais,
embora às vezes se diga que uma pessoa adormecida está inconsciente, temos
ciência do conteúdo de nossos sonhos (e possivelmente do fato de que estamos
sonhando), e até no sono sem sonhos existe um baixo nível de consciência e
mesmo capacidade subliminal de discernir diferentes tipos de estimulação
sensorial do ambiente físico”. [Wallace, 2009, p.38]
A
perspectiva “naturalista” de tentar contornar as questões da consciência,
propondo uma visão dual físico-objetiva e sensação subjetiva não-física para os
processos neurais, esbarra com outro impasse:
“(...)
Ninguém foi capaz de explicar o que em certos processos neurais (ainda não
identificados) permite-lhes assumir essa misteriosa natureza dual – objetiva e
subjetiva – e assim “realizar” fenômenos mentais. Isso é simplesmente uma
reformulação do chamado problema difícil, para o qual não se divisou nenhuma
solução convincente”. [Chalmers, 1996, citado em Wallace, 2009, p.40]
A
hipótese da redução da consciência a uma atividade física-neural ainda é
bastante dominante nas ciências cognitivas contemporâneas: “A despeito de
muitas questões não resolvidas no que concerne à natureza e às origens da
consciência, a grande maioria dos cientistas cognitivos e filósofos de hoje
expressam confiança em que exista uma solução simples para o problema
mente-corpo, e que ela esteve disponível a qualquer pessoa instruída desde que
teve inicio a pesquisa séria sobre o cérebro há quase um século: os fenômenos
mentais são causados por processos neurofisiológicos no cérebro e eles mesmos
são características do cérebro (Searle, 1994, citado em Wallace, 2009, p.42).
Mas,
antes que essa solução hipotética possa ser legitimamente validada, os
correlatos neurais da consciência devem ser identificados, e devem se realizar
testes para determinar se os CNCs são tanto necessários quanto suficientes para
a experiência da consciência. Para estabelecer que eles são causalmente
necessários, os cientistas têm que descobrir se um sujeito que tem os pretensos
CNCs removidos perde a consciência em consequência disso. Para estabelecer que
eles são causalmente suficientes, os cientistas têm que descobrir se um objeto
de outro modo inconsciente pode ser trazido à consciência pela indução do
pretenso CNC. Ninguém conseguiu ainda dar o primeiro passo, identificar o CNC”.
[Searle, 2002, em Wallace, 2009, p.42].
Mantendo
a mente aberta às novas pesquisas e dados sobre as áreas e possíveis correlatos
neurais de processos mentais no cérebro, a questão é saber: esses dados vão
corresponder a um conhecimento profundo da natureza da mente-consciência? Sobre
o que é a mente? O que é a mente? O que é uma mente saudável? O que é saúde?
A
perspectiva budista se encaminha para uma outra direção: se é verdade que a
mente necessita do cérebro para se manifestar e operacionalizar funções, não
significa que a mente seja equivalente ou sinônimo de cérebro. A mente é a
fonte energética-luminosa que transmite-experiencia a luz-cognitividadade pela
rede de fiação neural do cérebro (segundo processos complexos de uma rede de
neuroplasticidade que permite ora aparecer distribuída em áreas localizadas,
ora num campo fluido mutável não rigidamente localizável): sem o
“transmissor-tradutor” cerebral, a mente não existiria como estado humano (e o
inverso também é igualmente verdadeiro: sem a mente, o cérebro não existiria),
mas a ressonância dos processos mentais nas redes neurais não torna o cérebro
idêntico à mente.
As pesquisas
neurofisiológicas têm trazido importantes contribuições para o entendimento do
cérebro, e isto deve ser valorizado; mas ao mesmo tempo é preciso que se aponte
os limites, distinções e dificuldades. O campo está aberto para a investigação
científica, que inclua o valor de um dado central: a nossa experiência indica
que o fundamento mais importante é a própria mente, como o instrumento
mais poderoso para investigar a natureza da mente e da consciência.
Neurocientistas e pesquisadores (F. Varela, A. Wallace, e outros) têm
enfatizado um ponto fundamental: a importância de retrazer o lugar fundamental
da perspectiva da mente a partir da experiência em primeira pessoa. (2)
A
própria definição do que seja a consciência aparece segundo várias definições
no campo da história da Filosofia, da Psicologia e das ciências cognitivas de
modo geral. Na perspectiva da Ciência budista da mente, a consciência não é
vista como um “algo” fixo, cuja variação seria apenas o de possuir maior ou
menos densidade cognitiva. Constitui-se em um dos cinco agregados (pañcakhandha)
que formam a condição humana; a forma material (rupa), e os agregados
mentais (nama), estes por sua vez compostos de: sensação (vedana),
percepção (sañña), formações mentais (sankhara) e consciência (citta).
Por outro ângulo, a mente seria a consciência e seus fatores mentais, estes
englobando os outros agregados mentais (sensação, percepção e formações
mentais).
É
importante compreendermos a noção de agregado (khandha). Nenhum deles
possui uma essência fixa e imutável; são apenas processos em constante fluxo de
transformação, processos impermanentes (anicca). O que chamamos (e nos
referimos a nós mesmos) de “pessoa, homem, mulher” são denominações
convencionais; de fato, teríamos apenas processos de condicionalidade, surgindo
e desaparecendo incessantemente, segundo causas e condições. O corpo, as
sensações, a percepção as formações mentais e a consciência estão em constante
mudança. A consciência não é ima qualidade abstrata e fixa, ela também surge e
desaparece momento a momento. Podemos dizer que a consciência é aquilo que
conhece, ou percebe um objeto. É processo de cognição, conhecimento
de um objeto.
Quando
um órgão sensorial (ou melhor, a sensitividade ligada ao órgão sensorial)
focaliza, através da atenção, o objeto sensorial correspondente, surge a
consciência sensorial correspondente, e aí surge o contato. Órgão sensorial,
objeto sensorial e consciência são os três fatores necessários para o contato e
o surgimento da experiência cognitiva. Quando a visão focaliza um objeto visual,
surge a consciência visual; da audição com o objeto sonoro surge a consciência
auditiva e o contato; do olfato com o objeto olfativo surge a consciência
olfativa e o contato; do gustativo com o objeto gustativo surge a consciência e
o contato; do objeto tátil com o corpo surge a consciência tátil. A mente é
considerada um sexto sentido: do contato da mente com os objetos mentais, surge
a consciência mental.
A
consciência surge momento a momento. Mas o quê experienciamos em cada momento
da consciência? Experienciamos estados mentais carregados de conteúdo. Quais
conteúdos? Conteúdos de acordo com os fatores mentais que surgem junto com os
momentos de consciência. A consciência nunca surge pura, sem nenhum fator
mental. É como tomar um chá ou um refrigerante. O chá é formado de água pura
(consciência) e os conteúdos do chá (fatores mentais). O refrigerante é formado
de água pura (consciência) e os corantes e açúcares (fatores mentais). Se os
fatores mentais forem saudáveis, experienciamos estados mentais saudáveis; se
forem não-saudáveis, experienciamos estados mentais não-saudáveis. E o quê são
fatores saudáveis ou não-saudáveis? São os fatores destituídos (ou carregados)
de cobiça, ódio e ignorância. E o que é ignorância (avijja)? É
desconhecermos as três características (tilakhana) de todos os fenômenos
do corpo e da mente: sua impermanência (anicca), insatisfatoriedade que leva
ao sofrimento (dukkha), e a ausência de uma substância-essência imutável
(anatta). Por não vermos essas três características, o desejo (tanhã)
da nossa mente não treinada tenta se apegar nos objetos, pessoas, experiências
agradáveis e rejeitar aversivamente os objetos, pessoas, experiências
desagradáveis. Nublada pela ignorância sobre a verdade dessas três
características, a mente vê de modo distorcido a realidade, e se envolve em
ações não-saudáveis (ações do corpo, da fala e da mente), que trazem mais
sofrimento, frustração, tristeza, lamentação, depressão, raiva. E continuamos
indefinidamente nesse ciclo de nascer e morrer (samsara). Foram esses
processos de originação do sofrimento físico e mental que o Buddha compreendeu
pelo seu próprio treinamento de contemplação de sua própria mente. E
purificando a mente em um longo processo de muitas vidas, alcançou a libertação
e o cessamento do sofrimento e dos ciclos de renascimentos, alcançando e estado
supremo de libertação e felicidade duradoura, Nibbana.
A
compreensão das causas de nosso sofrimento físico e mental não requer
acreditarmos (ou não) na figura do Buddha, nem nos exige qualquer vínculo
religioso. Trata-se de analisar objetivamente as proposições sobre essas
verdades e compararmos com nossa experiência pessoal. Por compaixão aos seres,
o Buddha Gotama traduziu essa sabedoria profunda nas Quatro Nobres Verdades: a
existência do sofrimento-insatisfatoriedade existencial (a Primeira Nobre
Verdade); a causa do sofrimento (o desejo (tanhã) em suas três formas:
desejo sensorial (kamatanhã), o desejo de ser-existir (bhavatanhã)
e o desejo de não-existir (abhavatanhã), desejos estes que se manifestam
na forma dos três venenos da cobiça, ódio e delusão (a Segunda Nobre Verdade);
a possibilidade da extinção do sofrimento (Nibbana, a Terceira Nobre Verdade);
e o caminho-método de treinamento para a superação do sofrimento (a Quarta
Nobre Verdade – O Nobre Óctuplo Caminho).
Condicionados
por esses três vírus mentais, percebemos de modo ignorante, ou superficial, a
realidade pelo contato da mente com as seis portas dos sentidos, e reagimos de
modo ignorante. E com isso prosseguimos reforçando, como a roda de uma carroça
que vai acentuando os sulcos na estrada de terra; assim, os circuitos mentais
de processos condicionados repetitivos e não saudáveis prosseguem trazendo
novos sofrimentos.
Pesquisas
científicas têm evidenciado essas tendências nos processos neurais: nossos
modos de pensamento, fala e ação corporal repetitivos condicionam (de modo
saudável ou não saudável) os padrões dos circuitos neurais do nosso cérebro
(FSP, Folha de São Paulo: Saúde, C12, 30/01/2011; Begley, Sharon, 2008,
entre outros).
E
como podemos transformar nossos padrões ignorantes de agir, falar e pensar?
Treinando a mente a ver e responder de modo progressivamente mais saudável,
mais relaxado, mais sábio e compassivo. Cultivando momento a momento, minuto a
minuto, dia a dia, uma mente de generosidade, de amorosidade, compaixão e
sabedoria para conosco e os outros.
E
como treinar a mente e o corpo nessa direção curativa? Pela prática do cultivo
dos oito meios hábeis e saudáveis do Nobre Óctuplo Caminho: cultivamos uma
ética saudável (sila) – fala correta, ação correta e modo de vida
correto; com base em uma ética correta, criamos condições para tranqüilizar a
mente, e isto apóia o cultivo da concentração saudável (samadhi) – o
esforço correto, a plena atenção correta e concentração correta. Isto apóia e é
apoiado pelo cultivo da sabedoria (pañña) – compreensão correta e
pensamento correto. São como oito raios de uma roda, umas apoiando as outras, e
girando no sentido oposto ao do sofrimento, girando no sentido da roda da
libertação e felicidade duradoura, caminho rumo a Nibbana.
Treinando
a mente e o corpo. Praticar, praticar, praticar. Esta é a função do treinamento
da Meditação da Plena Atenção (mindfulness): o cultivo da concentração,
(trazendo tranquilização e capacidade de unifocamento no corpo e mente, aquilo
que experienciamos momento a momento); o cultivo da plena atenção (que lembra e
traz a mente de volta ao foco quando a mente se distrái e vagueia), e o cultivo
da sabedoria, (que investiga e libera a mente do apego, aversão e delusão sobre
a verdade das três características da impermanência, insatisfatoriedade e
insubstancialidade dos fenômenos existências do corpo e mente).
Como
aplicar isto? Começando pela plena atenção ao agregado mais perceptível, o
nosso corpo. Podemos usar a respiração, as posturas corporais, os elementos
materiais, as partes do corpo, a contemplação dos mortos. Passamos aos
agregados mentais: plena atenção às sensações (se são agradáveis, desagradáveis
ou neutras). Este já é um nível mais sutil de investigação. Meditando, ficamos
atentos às nossas percepções e preferências. E conseguindo certa base de
concentração e plena atenção, podemos passar para a contemplação dos nossos
pensamentos, crenças e estados de consciência momento a momento:
CONTEMPLAÇÃO
DA CONSCIÊNCIA
Bhikkhus, como um bhikkhu permanece
contemplando a consciência na consciência?
Aqui, um bhikkhu reconhece a
consciência com ganância como consciência com ganância; a consciência sem
ganância como consciência sem ganância; a consciência com raiva como
consciência com raiva, a consciência sem raiva como consciência sem raiva; a
consciência com delusão como consciência com delusão; a consciência sem delusão
como consciência sem delusão. Reconhece a consciência contraída como
consciência contraída e a consciência distraída como consciência distraída.
Reconhece a consciência transcendente como consciência transcendente e a
consciência não-transcendente como consciência não-transcendente. Reconhece a
consciência superável como consciência superável e a consciência insuperável
como consciência insuperável. Reconhece a consciência concentrada como
consciência concentrada e a consciência não-concentrada como consciência
não-concentrada. Reconhece a consciência livre como consciência livre e a
consciência não-livre como consciência não-livre.
Assim ele permanece contemplando a
consciência na consciência internamente, ou permanece contemplando a
consciência na consciência externamente, ou permanece contemplando a consciência
na consciência tanto internamente como externamente.
Permanece contemplando na consciência
os seus fatores de aparecimento, ou permanece contemplando na consciência os
seus fatores de dissolução, ou permanece contemplando na consciência tanto os
fatores de aparecimento como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas
consciência” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a
abrangência necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena
atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz
respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco
agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece
contemplando a consciência na consciência.
(Baseado no texto do Venerável U Silananda, The
Four Foundations of Mindfulness, Boston, Wisdom, 2002).
Notas
(1) Shaker, Arthur - “A
Consciência, as Neurociências e a Saúde – Contribuições da Meditação da
Plena Atenção (Mindfulness)”, pgs. 32-36.
Referências
Begley, Sharon. Treine
a mente, mude o cérebro. RJ: Objetiva, 2008.
Chalmers, David J. Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory.
Nova York: Oxford
University Press, 1996.
FSP, Folha de São
Paulo: Saúde, C12, 30/01/2011.
Searle, John R. The Rediscovery of the Mind. Cambridge, MA: MIT
Press, 1994.
_____________ Consciousness and Language. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston:
Wisdom Publications, 2002.
Varela, Francisco J.; Thompson, Evan; Rosch, Eleanor. A mente Incorporada.
Ciências Cognitivas e
Experiências Humana. Porto Alegre: Artmed Editora 2003.
Wallace, Alan. Dimensões
Escondidas. A unificação da Física e Consciência. SP: Peirópolis, 2009.
Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
8
Cérebro
e Mente
Arthur Shaker Fauzi Eid
Um
rico campo da área científica contemporânea tem se aberto a partir das chamadas
Neurociências, que englobam várias sub-áreas do estudo do cérebro e
comportamento: a Neuroanatomia (estudo da anatomia do sistema nervoso), Neurobiologia
(biologia do sistema nervoso ou suas partes), Neuroendocrinologia (interação
sistema nervoso-glândulas endócrinas), Neurofarmacologia (ação das
drogas no sistema nervoso), Neurofisiologia (funções do sistema
nervoso), Neurogenética (fatores genéticos nos distúrbios neurológicos),
Neurologia (ciência médica do sistema nervoso e seus distúrbios), Neuropatologia
(doenças do sistema nervoso), Neuropsicologia (sistema nervoso e
funções cerebrais ou mentais), Neuropsiquiatria (distúrbios neurológicos
e psiquiátricos), Neuroquímica (composição química e dos processos do
sistema nervoso e efeitos de substancias químicas sobre ele), Neuroradiologia
(uso de raios X no diagnóstico e tratamento de distúrbios do sistema
nervoso) [Herculano-Houzel, 2008, p.3].
Há
uma longa história do desenvolvimento das proposições sobre o funcionamento do
cérebro: dos egípcios, com a dissecação de cadáveres, passando pelo médico
romano Galeno (séc. III d.C.), o médico persa Avicena (séc.XI d.C.), Vesalius,
René Descartes, Thomas Willis, Franz Gall, Pierre Flourens, Paul Broca,
chegando até o histologista Santiago Ramón y Cajal (séc. XIX-XX d.C.),
encontramos sucessivos passos de investigações e teorias, girando em torno de
uma polaridade entre uma visão holista (o sistema nervoso como uma teia
única de células nervosas - a chamada “teoria reticular”) e uma visão
localizacionista (o cérebro como um conjunto de unidades celulares
discretas, especializadas segundo a região cerebral).
O
avanço de técnicas de observação abriu novas proposições: o estudo das
oscilações elétricas do cérebro trouxe o electroencefalograma (as ondas alfa,
beta, gama, delta); a microestimulação elétrica do cérebro possibilitou
identificar correlações entre áreas e funções cerebrais e a relevância do
córtex cerebral e da formação reticular do mesencéfalo nos processos mentais
humanos. Técnicas de visualização buscaram apreender a relação entre as
atividades cerebrais e o seu metabolismo, através da medição do consumo de
oxigênio e glicose pelos neurônios em vários processos de atividade cerebral,
como no repouso ou em cálculos mentais complexos. O surgimento da tomografia
por emissão de pósitrons, que iria permitir perceber concentrações de glicose
radioativa em áreas mais ativas do cérebro, e posteriormente a técnica das
imagens funcionais por ressonância magnética, abriu dados para novas percepções
sobre certas relações entre áreas cerebrais e funções cognitivas, o que reforçaria
a visão localizacionista, mas também a interconexão de várias áreas do córtex
operando em conjunto, o que apontaria para uma visão holística do funcionamento
do cérebro. [Herculano-Houzel, 2008, p.15].
O
que se denominou comumente de “cérebro” envolve, de fato, uma realidade mais
ampla e complexa, o Sistema Nervoso: de modo sintético e simplificado, o
Sistema Nervoso pode ser assim descrito:
I.
Sistema Nervoso Central (SNC), composto de:
1.
Encéfalo, por sua vez composto de: 1.1. Cérebro: parte mais
desenvolvida, centro de inteligência e aprendizado, mapeada em 40 funções-áreas
diferentes, em seus hemisférios unidos por um corpo caloso. No córtex cerebral
(pensamento e planejamento), os 4 lobos tendo por funções:
Lobo
Frontal: funções motoras, expressão lingüística, memória,
planejamento-comportamento.
Lobo
Occipital: visão.
Lobo
Parietal: imagem, sensibilidade corporal e espacialidade.
Lobo
Temporal: audição, visão elaborada.
1.2.
Sistema Límbico (cérebro emocional)
Hipocampo
– armazenamento de memórias
Hipotálamo
– modulador e mediador entre o Sistema Nervoso e o Sistema Endócrino.
Amígdala
– “portão” para o emocional.
Tálamo
– retransmissor das informações sensoriais até o manto cortical.
1.3. Tronco Encefálico
Cerebelo
– coordenação de movimentos e postura corporal.
Ponte
– área de entroncamento.
Medula
Oblonga (Bulbo) – regulação de funções críticas (pressão sanguínea, batimento
cardíaco e respiratório).
2.
Medula Espinal – atos reflexos.
II.
Sistema Nervoso Periférico (SNP)
Transmite
informações entre o Encéfalo e o corpo.
1.
Sistema Nervoso Periférico Voluntário (SNPV) – reação aos estímulos do
meio externo.
2.
Sistema Nervoso Periférico Autônomo (SNPA) – regula o ambiente interno.
•
Simpático – mobiliza energias.
•
Parassimpático – atividades relaxantes.
[Amabis
& Martho, 1998; Ramachandram, 2004; O Livro do Cérebro, 1, 2009]
A
questão científica central é: o órgão físico “cérebro” é sinônimo da “mente”?
Não há um consenso sobre isso. Esta questão se desdobra em várias: como a mente
se relaciona com o cérebro? É possível, através de aparelhos de registros,
detectar essas relações? E como isto se traduziria em aplicações benéficas aos
seres humanos? O problema não é apenas terminológico, mas tem a ver com as perspectivas
com que se entende essa realidade humana fundamental, pois se trata do “centro
nervoso” de funcionamento do corpo e das atividades psíquicas, e mais
fundamental, das atividades que se referem ao caminho de libertação espiritual
humana. De acordo com qual perspectiva cognitiva se tome, decorrem proposições
e terapêuticas, com consequências em todas as áreas existenciais dos seres
humanos. E intimamente ligada à questão cérebro-mente, está a questão da
consciência.
Muitas
das interpretações das Neurociências tendem a considerar a mente (ou a
consciência) como emanações subjetivas dos processos neurais. Assim, apóiam-se
na suposição de que o progresso das pesquisas científicas esclarecerá os
correlatos neurais da consciência, absorvendo as ciências da mente como
capítulos específicos do estudo do cérebro.
Esta
proposição de “naturalizar” toda realidade existencial como campos de atividade
da “matéria” não é nova; ela acompanha o processo de construção das chamadas
Ciências Modernas, onde a Física e a Biologia ocupam lugar de destaque. A
questão é saber se os ganhos materiais desse processo não acarretaram
reducionismos, perdas cognitivas e perdas de horizontes para a humanidade.
A
própria noção de “matéria” como instância “objetiva” última que explicaria a
realidade existencial tem merecido revisões e críticas pela Física Quântica:
“Nossa
realidade apresenta uma natureza dualística: a matéria que compõe o que
experienciamos existe tanto como onda, ou não-materialidade, quanto como
partícula, ou materialidade. Essa forma de ondas que as partículas exibem não
tem uma localização definida no espaço-tempo, ela só pode ser entendida como
estando em todos os lugares ao mesmo tempo, espalhada por todo o Universo.
(...) Ao mesmo tempo, como partícula, um “objeto” existe num local definido no
espaço-tempo.
E
como algo que parece ter uma localização definida no espaço-tempo, também é
capaz de existir espalhado por uma grande região espacial? Por mais
surpreendente que isso possa parecer, o experimento que confirma isso foi
repetido milhares de vezes com o mesmo resultado, e o que surgiu primeiro como
um choque entre os físicos, inevitavelmente tornou-se um fato bem conhecido e
aceito.
A
coisa que determina se as partículas se comportam como onda ou partícula acabou
sendo descoberta como a própria coisa que observa este fenômeno: a consciência
humana. A qualidade de uma partícula não é predeterminada, mas definida pela
própria mente que a percebe. Então, o que parece ser realidade sólida é na
verdade apenas um lado de dois aspectos da realidade nublados entre si: aquele
da onda e aquele da partícula”. Em suma: “A realidade não existe sem a mente
que a define. Sem a mente, a realidade existe apenas como potencial infinito”.
[Gerald P, 1983] (1)
Notas
(1) Conforme texto mais
amplo, Arthur Shaker: “A Consciência, as Neurociências e a Saúde –
Contribuições da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)”, apresentado no II
Simpósio Internacional sobre Consciência, 2011, e publicado em A Consciência
– A incógnita da equação humana, pgs. 25-42. Salvador: Organização
Científica de Estudos Materiais, Naturais e Espirituais, 2011, www.ocidemnte.com.br
Referências
Amabis, J. Mariano;
Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora
Moderna, 1998.
Gerald P. Onde a
Ciência e o Budismo se encontram. Legendado por Joe the Eagle. www.youtube.com/watch?=MqtxbwUrnvI&feature=related
Herculano-Houzel,
Suzana. Uma Breve História da relação entre o Cérebro e a mente. em
Neurociência da Mente e do Comportamento, Lent, Roberto. (coord). RJ: Guanabara
Koogan, 2008.
O Livro do Cérebro, 1, Funções e anatomia, SP: Duetto, 2009
Ramachandram, V.S., Blakeslee, Sandra. Fantasmas
no Cérebro: uma investigação dos mistérios da mente humana. Rio de Janeiro:
Ed. Record, 2004
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
7
A Plena Atenção, a Percepção Sensorial
e as Sensações
Arthur
Shaker Fauzi Eid
.
Como
se dá o processo sensorial através do qual percebemos a realidade? Quais suas
bases neurofisiológicas? Como são produzidas as sensações? Como as sensações
condicionam nossas reações a elas? E como o treinamento da Plena Atenção pode
intervir de modo propício nesses processos?
Do
ponto de vista das bases neurofisiológicas da percepção sensorial, temos quatro
tipos principais de receptores sensoriais, segundo o estímulo captado: os
quimioreceptores (captadores de substancias químicas no nariz e língua); os
termoreceptores (para estímulos térmicos, pela pele); mecanoreceptores
(estímulos mecânicos, como a compressão ou estiramentos – sob a forma de
fonoreceptores, detectores de variações de pressão no ar, e estatoreceptores,
detectores da posição do corpo na força da gravidade, como o exemplo do
ouvido); e os fotoreceptores (captadores de estímulos luminosos). [Amabis &
Martho, p. 487-88]
O
processo perceptivo inicia-se pela captação de um estímulo: “um estímulo altera
a permeabilidade da membrana plasmática da célula sensorial, nela gerando
potenciais de ação, que se transmitem na forma de impulsos nervosos” [Amabis
& Martho, p. 488]. Estes impulsos são transmitidos às áreas cerebrais
afins, que interpretam os impulsos. Em outras palavras, no encontro dos objetos
sensoriais com os órgãos dos sentidos, surge a consciência. Devido ao encontro
entre o órgão sensorial e consciência, surge o contato (phassa) e a
consciência correspondente: objeto visual/consciência visual; objeto
sonoro/consciência auditiva; objeto olfativo/consciência olfativa; objeto
gustativo/consciência gustativa; objeto tátil/consciência corporal. E ainda
inclui-se, nos ensinamentos budistas, os objetos mentais (pensamentos,
memórias, imagens)/consciência mental, pois a mente é considerada um sexto
sentido.
O
processo cognitivo de um objeto passa por várias etapas: por exemplo, se o objeto
sensorial é uma árvore, em uma série de momentos de consciência a mente compõe
uma imagem progressiva com a totalidade de dados visíveis, e o que vemos é
apenas um objeto-dado visível (conceito coisa). Em seguida, a consciência busca
na memória do passado referências de similitude com os dados visíveis, para
depois nomeá-la: árvore (conceito nome). Segundo o Ven. Silananda, para
dizermos “vejo uma árvore”, uma série de processos cognitivos são necessários,
cada um deles pode surgir talvez milhares de vezes (Ven. Silananda, 2003, p.
231). Veremos mais adiante que a consciência sensorial surge e desaparece
momento a momento, junto com o surgimento e desaparecimento do contato com o
objeto sensorial correspondente. Neste ponto, podemos levantar uma questão
científica importante: são as áreas específicas do cérebro que interpretam e
significam os impulsos nervosos, ou é a mente que, através dos suportes das
áreas específicas do cérebro, percebe e significa os dados sensíveis? Esta
questão específica se situa, de fato, dentro das atuais investigações
neurocientíficas das relações cérebro-mente. Questão em aberto.
De
todo modo, fato é que no momento do contato, vibrações surgem e são conduzidas
pelos nervos até o Sistema Nervoso Central, onde estes sinais serão
interpretados: “a percepção (sañña) é que torna essa vibração um objeto
individual, como os pontos individuais de um desenho infantil. A percepção é
que liga os pontos para formar uma imagem, uma figura. Quando os pontos se
ligam, a figura fica colocada na página e damos o nome. Embora o nome não seja
necessário, quando o objeto fica separado dos outros em sua volta, isso é a
percepção, que faz a diferenciação das formas/figuras em realidades
individuais. Se não houvesse percepção na mente, veríamos um labirinto de
várias cores de uma dimensão”. (Bhante Rahula, 11/03/2011, retiro 2011, Casa de
Dharma. Anotações).
Aqui
tende a surgir novos problemas. Sucede que a percepção, como um dos cinco
agregados (khandhas), é condicionada por múltiplos fatores: estresse,
passado/futuro, emoções, pensamentos e reatividades. Percepções condicionadas
criam opiniões, e reagimos de acordo com nossas opiniões formadas, carregadas
de apego ou aversão: “Desde que nascemos, formamos percepções na mente.
Dependendo de nossa formação, criamos nossa opinião sobre essas percepções. A
percepção apenas surge como reação a uma sensação (vedana). Se a
sensação do objeto é desagradável, o objeto da percepção será visto como
desagradável (o mesmo valendo, inversamente, para o objeto prazeroso). Padrões
reativos se fixam na mente, mesmo que as coisas não sejam ruins em si. As
percepções podem ter sido criadas em vidas passadas. Pensamos que queremos (ou
não queremos) um objeto, mas o que queremos é a sensação que o objeto nos traz.
O objeto não é tão importante, o que queremos/não queremos é a sensação
prazerosa (ou rejeitar a sensação desprazerosa). Pois se o objeto parar de
produzir aquela sensação prazerosa, não queremos mais aquele objeto (ou aquela
pessoa). Devido à impermanência das sensações, mudamos nossas preferências”
(Bhante Rahula, 2011).
As
sensações fazem parte dos quatro agregados mentais (nama): sensação (vedana),
percepção (sañña), formações mentais (sankhara, que inclui
pensamentos, emoções, memórias, reações) e consciência (viññana). Junto
com o agregado do corpo (rupa), formam os cinco agregados (pañcakkhandha),
que convencionalmente chamamos de “pessoa”. Toda a questão do sofrimento advém
de nossa identificação com os cinco agregados, e por isso se tornam os Cinco Agregados
do Apego. Identificamo-nos com eles, como sendo “meu corpo”, “minhas
sensações”, “minha percepção”, “meus pensamentos”, “minha consciência”. E
geramos um senso de “eu”, nos identificamos com esse senso de identidade, nos
apegamos a essa noção, e reagimos com aversão a tudo que ameaça a pseudo
estabilidade e segurança desse “eu”. E sofremos. Por quê? Porque nos
identificamos com esses cinco agregados que são insatisfatórios. E por que são
insatisfatórios? Porque são impermanentes. Nossos desejos de permanência se
conflitam incessantemente com a lei da impermanência, que segue na direção
oposta de nossos desejos.
Todo o treinamento da
Plena Atenção é investigarmos o funcionamento desses cinco agregados em nossa
vida diária: como nos relacionamos com nosso corpo? Com apego? Com aversão? Com
indiferença? Como nos relacionamos com nossas sensações, percepção,
pensamentos, consciência? Compreendendo, cuidando e não se identificando com
eles, liberamos gradualmente a mente do apego a eles. E como isso se dá, do
ponto de vista prático, com as sensações, que se ligam às nossas percepções, na
maioria das vezes distorcidas?
Temos
três tipos de sensações: agradável corporal (sukha) – agradável mental (somanassa);
desagradável corporal (dukkha) – desagradável mental (domanassa);
e indiferente ou neutra (upekkha). De acordo a cada sentido, teremos
seis tipos de sensações a eles associadas, ou surgidas através deles.
Examinemos
primeiramente a sensação da dor. A dor é uma sensação desagradável, diante da
qual nossos padrões mentais condicionados se esforçam por rejeitá-la com
aversão. Não queremos a experiência da dor, queremos afastá-la de nós.
Como
se processa a Neurofisiologia? Através das fibras nervosas transmissoras,
estímulos são conduzidos pela medula até o Bulbo. Aqui, reações corporais quase
automáticas são produzidas pelo Sistema Nervoso Autônomo: aumento da pressão
arterial, dos batimentos cardíacos, mudanças na respiração, sudorese. Os
estímulos prosseguem para a região central do Tálamo, a estação retransmissora
para a área da Amígdala, o portão para o Sistema Límbico, responsável pelas
emoções.
Do
Tálamo são enviadas para áreas superiores do córtex cerebral, envolvidas na
atenção e significação, onde esses estímulos serão interpretados como sensações.
O córtex somatossensorial e o córtex insular (a dobra profunda que divide os
lobos temporal e frontal) permitem ao cérebro saber em qual parte do corpo a
dor se origina; a parte anterior do córtex cingulado (ACC) gera o significado
emocional da dor e a gravidade da lesão. Outras áreas também estariam ligadas a
este processo: os córtices motor e motor suplementar (responsáveis pelo
planejamento e execução do movimento; no caso, escapar dos estímulos
dolorosos); o córtex parietal (volta a atenção para a ameaça), e o córtex
frontal (significado da dor e o que fazer com isso) [‘O Livro do Cérebro’, 2,
p. 112-115].
Este
processamento, entretanto, não é rígido. Certos fatores mentais podem intervir
na modulação da sensação, na percepção e resposta a esses estímulos dolorosos.
De acordo com as observações científicas, as áreas cerebrais superiores podem
enviar sinais nervosos que diminuam ou interrompam os sinais da dor, reduzindo
a extensão da sensação dolorosa (“Meditação e a Dor”, em A Meditação e a
Ciência, www.acessoaoinsight.net).
Aqui
está presente um fator importante: a atenção. O córtex cingulado está
envolvido no quanto de atenção é dada ao estímulo nervoso. Segundo as
referências científicas acima citadas, há formas diversas, com efeitos opostos,
no lidar com a dor, o chamado efeito placebo e nocebo. Trazendo a Plena Atenção
e a Sabedoria diante da sensação dolorosa, diminuindo a resistência e barreira
entre o “eu” e “a dor”, permitimos que ela se manifeste, não nos identificamos
como sendo a “minha dor”, mas apenas como uma sensação desagradável, que
tenderá a passar, por ser impermanente. Evitamos que a mente crie
conceitualizações e cenários mentais trágicos, que desencadeiam reações
emocionais aflitivas, pensamentos negativos, ansiedade, pois estes ativam o
sistema de reatividade na Amígdala, que por sua vez incita o cérebro de modo
semelhante à experiência da dor. Resultado: intensificação da dor, sofrimento.
[“O Livro do Cérebro” 2, p. 112-115; Bhante Gunaratana, 2002, p. 102-105]. A
dor é dada, o sofrimento é opcional. Ou, segundo a didática fórmula apresentada
pelo monge Bhante Rahula, S = d x r (Sofrimento é igual à dor vezes a
resistência a ela). Se a dor é 5 e a reatividade é 10, experienciamos 50 de
sofrimento. Se a dor é 100 e a reatividade é zero, o sofrimento é zero. Ou
seja, sofrimento não é sinônimo de dor. Sofrimento é a reação à dor (dada).
Podemos evitar até certo ponto condições que criem a dor, mas não podemos
eliminá-la: tendo corpo há dor, em graus e circunstâncias variáveis. Mas o
sofrimento, podemos superá-lo, com a Plena Atenção e a Sabedoria. Vendo a dor
apenas como sensação, apenas como simples energia, vibração, ainda que
desagradável, mas como impermanência (anicca), insatisfatoriedade (dukkha)
e impessoalidade (anatta). Nenhum sujeito, apenas os cinco agregados,
sem nenhum “eu-meu-mim”.
O
controle consciente pela Plena Atenção não significa repressão a este processo
sensorial, nem desviar a atenção ou distraí-la através de uma realidade
virtual. Não é que a atenção desviada ou distraída (experiência pela qual se
procura deixar menos atenção para o processamento cerebral dos sinais
dolorosos) seja negativa em si, muitas vezes até podemos fazer uso desse
expediente. Mas como hábito tem eficácia circunstancial, pois os padrões
mentais de reatividade permanecem inalterados. A Plena Atenção e a Sabedoria
atuam pelo relaxamento, aceitação, investigação e não-identificação, que com
isso atuam mais profundamente nos padrões de processamento do córtex,
diminuindo os estímulos nessa área, aumentando a tolerância e resistência à
dor, e abrindo portas para a compreensão da natureza frágil da existência
condicionada e a libertação da mente. Mas lembremos: são processos de
treinamento gradual e o bom senso e adequação progressiva aos nossos limites
são fundamentais.
A
experiência do prazer é o outro lado da moeda sensorial: queremos os prazeres
sensoriais, investimos muito esforço para conseguí-los; quando conseguimos nos
apegamos e não queremos que terminem. Como se processa nossa relação entre
desejo e recompensa? Para muitos de nós, a felicidade é vista (e buscada) como
sinônimo de maximização das experiências prazerosas, agradáveis. E há toda uma
ideologia atual para induzir em nossa mente esse modelo: compre, consuma, sacie
seus desejos, isto é felicidade, realização. Há profissionais altamente
treinados em vender desejos.
Do ponto de vista neurofisiológico, tudo começa com o
estímulo. O desejo é visto segundo dois ângulos: o querer (seria uma
necessidade real) e o gostar (obtenção do prazer). Já neste início podemos ver,
nesta dupla face do desejo, que “necessidade” não obrigatoriamente é sinônimo
de “prazer”, mas também que “necessidade” não precisa obrigatoriamente rejeitar
o prazer decorrente. A questão é: com qual critério de prioridade nos
relacionamos com os objetos? Veja que essa pergunta importante já é um
treinamento de Plena Atenção, e tem na sua base outra pergunta fundamental:
qual é o modelo de felicidade que temos? Esse modelo é baseado na ignorância
sobre a natureza impermanente das coisas, e que nos trará sofrimento, ou é
baseado na sabedoria que conduz à felicidade duradoura?
O
estímulo pode ser provocado por vários fatores: uma necessidade real (por ex. a
necessidade de se alimentar gera estímulo cerebral para a busca de alimentos),
ou um desejo provocado por contato com um objeto agradável que nos traga
prazer, ou por queda de glicose, carência afetiva, buscas de compensação diante
de perdas, frustrações, etc. O estímulo envolve uma antecipação, uma
expectativa de recompensa; esta por sua vez é condicionada pelo tipo de
aprendizado e memória que temos sobre experiências anteriores. E aprendizado e
memória por sua vez são condicionados pelo grau de ignorância (moha) ou
sabedoria enraizada em nossa mente. Tendemos a não ter uma visão clara dos elos
desse processo que se move muito rápido em nosso corpo e mente.
O
estímulo desencadeia a necessidade, o desejo, que é notificado pelo sistema
límbico. O desejo é registrado como desejo consciente no córtex cerebral, que
orienta o corpo a agir para a realização do desejo. Sob orientação do córtex
cerebral, ações corporais são desencadeadas, e as ações retornam sinais ao
sistema límbico, que libera neurotransmissores semelhantes a opióides: “A
expectativa de recompensa aumenta o fluxo de sangue cerebral na amígdala e no
córtex órbito-frontal, indicando atividade no núcleo accumbens (que libera
dopamina) e no hipotálamo (rico em receptores de dopamina)...
neurotransmissores elevam os níveis de dopamina em circulação, gerando sensação
de satisfação” (“O Livro do Cérebro”, 2, p. 136).
Se
a questão da busca do prazer ficasse apenas nesse nível, qual o problema,
poderíamos nos perguntar? Tenho necessidade, conjugo com o prazer, vou em busca,
consigo, experiencio satisfação, fico feliz. Mas o problema não pára aí. Pelo
fato das sensações serem impermanentes, a sensação prazerosa é seguida pela
experiência da sensação desagradável, a falta, a insatisfatoriedade. Ao apego
segue-se a aversão e seus irritantes psíquicos. A questão do
desejo-recompensa-felicidade é o cerne dos ensinamentos do Buddha, pois é em
torno do desejo que está o problema da existência. Nossa mente condicionada não
vê, e não quer ver, as duas faces da correlação entre desejo sensorial e
felicidade. Só vemos o lado gratificante (assada). Qualquer coisa que
tente interferir em nosso modelo desejo=felicidade, é vista e rejeitada como
moralismo, repressão, obscurantismo, invasão dos nossos direitos à felicidade =
prazeres maximizados. Corremos atrás dos desejos sensoriais, algumas vezes
conseguimos experienciar alguns prazeres, mas eles se vão, e nos vemos
novamente diante dessa sede insaciável, tanhã. Não vemos esse lado
ardiloso (adinava) que nos aprisiona, o anzol escondido na isca. Por
isso o Buddha associa essa sede com o fogo, uma queimação na mente. O fogo
queima, consome, transforma tudo em cinzas, e busca novos combustíveis, nos
empurrando atrás de novos objetos e pessoas que nos sejam fontes dessa
experiência. Como o burro que corre atrás da cana de açúcar amarrada à sua
frente e nunca alcança, e no final cai morto de exaustão e fome.
Em
um importante sutta chamado Magandiya Sutta, do Majjhima Nikaya (MN 75),
Buddha dialoga com o filósofo Magandiya, defensor do hedonismo, filosofia que
pensa o significado da vida como busca do prazer. Nesse sutta, Buddha procura
mostrar para Magandiya que a questão não é os prazeres sensuais em si, mas a
ânsia e o apego a eles, mantendo a mente prisioneira dessa forma de satisfação,
qual uma febre, uma drogadicção, com todos os sofrimentos decorrentes dessas
dependências, não apenas mentais, mas também químicas, corporais. Buddha usa
didàticamente símiles drásticos, com o da aflição da lepra, para trazer o
conhecimento sobre a natureza ilusória desses apegos. Não é que o Buddha
ignorasse a satisfação que os prazeres sensuais trazem, pois se não trouxesse
alguma satisfação, quem empenharia esforços em consegui-los? A questão é que
são impermanentes, e por isso mantêm a insaciedade intacta em seu nível mais
profundo, e reforçam o padrão de apego e sofrimento.
Quando
tocamos nesse ponto, é frequente surgir na mente a pergunta: mas sem a busca do
prazer sensorial, que sentido restaria para a vida? Como é possível viver sem
desejos? A vida não seria com isso insossa, deprimida? Por debaixo desse
receio, compreensível até certo ponto, está outra visão equivocada, gerada pelo
apego e ignorância: até hoje, tudo que entendemos como felicidade é isso:
felicidade é sinônimo de busca de prazer sensual. Portanto, só existiria isto.
É como se passássemos nossa vida num deserto, comendo cactus, e achando isso a
fina iguaria. Então alguém chega e nos diz:
Êi!
Há um oásis ali diante, com água cristalina, sombra e frutas sublimes. Vá lá,
veja por si mesmo!
Buddha
mostra que há outros níveis mais sutis de deleite que podem ser alcançados, em
direção à felicidade duradoura, Nibbana:
“Suponha,
Magandiya, que houvesse um leproso, com feridas e bolhas no seu corpo, sendo
devorado por vermes, coçando com as unhas as crostas abertas de suas feridas,
cauterizando seu corpo com pedaços de carvão em brasa. Então seus amigos e
companheiros, e seus parentes, trouxessem um médico para lhe tratar. E médico
faria um remédio para ele, e através disso o homem ficaria curado da lepra, e
ficaria bem e feliz, independente, mestre de si mesmo, podendo ir aonde
quisesse. Então ele visse outro leproso com feridas e bolhas nos seu corpo,
sendo devorado por vermes, coçando com as unhas as crostas abertas de suas
feridas, cauterizando seu corpo com pedaços de carvão em brasa. O que você
pensa, Magandiya? Aquele homem teria inveja daquele leproso pelo uso do carvão
em brasa ou de seu remédio?
Não,
Mestre Gotama. Porque isto? Por que quando há doença, um remédio precisa ser
feito, e quando não há doença, o remédio não precisa ser feito”.
Buddha
mostra que ele também, quando ainda vivia a vida familiar, deleitava-se nos
prazeres sensuais, mas que depois, tendo compreendido como realmente era a
origem, o desaparecimento, a gratificação, o perigo e a possibilidade do escape
dos prazeres sensoriais, abandona essa ânsia por eles, conseguindo a paz
interior. E que ele não invejava aqueles que ardiam na busca desses prazeres
sensoriais, pois que ele encontrara um deleite que está para além desses
prazeres, para além desses estados não saudáveis, que ultrapassa inclusive os
deleites celestes (MN 75, 11-13, 2004, p. 610-611).
As
sensações prazerosas materiais têm subjacente a tendência do apego, as
desagradáveis materiais têm subjacente a tendência à aversão, e as
neutras-indiferentes têm subjacente a tendência à confusão ou cobiça sutil. Mas
há também as sensações não materiais, espirituais. Assim, as sensações
espirituais prazerosas podem provir do deleite (piti), alegria (sukha),
paz (khanti), trazidas pela concentração ou devoção. As sensações
espirituais desagradáveis podem provir de percepções de que nossa prática ainda
enfrenta certos obstáculos em seu progresso, exigindo de nós revermos a prática
e perseverar. As sensações espirituais neutras se referem aos estados de
equanimidade mental (upekkha), o que é bem diferente da indiferença,
expressão da ignorância e insensibilidade fria diante da realidade e do
sofrimento dos outros. A equanimidade, pelo contrário, é um estado de equilíbrio,
uma das mais altas virtudes, pela qual nos sensibilizamos com o sofrimento;
podemos agir com compaixão e sabedoria, mas sem sermos arrastados no
sofrimento, nosso ou dos outros. Seria como a atitude equilibrada do
guarda-vidas, atento aos descuidos dos banhistas, orientando-os, alertando-os,
socorrendo-os quando necessário, mas sem se afundar no debater-se daqueles que
ele socorre.
Trazendo
agora para o nível prático: colocamos a Plena Atenção no foco de nossa
respiração, e procuramos perceber em nosso corpo e mente quando surge alguma
sensação, se é agradável, desagradável ou neutra, que estados mentais
acompanham essas sensações: Apego? Aversão? Indiferença? Com plena atenção e
sabedoria percebemos o surgimento na mente dessa busca de experienciação das
sensações agradáveis, e o que fazem em nosso corpo e mente. Com plena atenção e
sabedoria percebemos o seu desaparecimento, e o que acontece em nosso corpo e
mente em seguida. Uma das formas de treinamento para lidar e superar o forte
apego aos prazeres sensuais é a contemplação das impurezas do corpo, através da
contemplação das partes do corpo, ensinada pelo Buddha no Satipatthana sutta,
em que aprendemos a visualizar e contemplar cada uma das partes do corpo, em
sua forma, cor, localização e sua natureza impermanente:
Reflexão sobre as Impurezas do Corpo
“Novamente, bhikkhus, um bhikkhu reflete
sobre esse mesmo corpo de baixo para cima a partir da sola dos pés, e de cima
para baixo a partir do topo da cabeça, limitado pela pele e repleto de diversas
impurezas assim:
Existe neste corpo:
Cabelo, pêlo do corpo, unhas, dentes e pele;
Carne, tendões, ossos, medula e rins;
Coração, fígado, diafragma, baço e pulmões;
Estômago, intestino, peritônio, fezes e
cérebro;
Bile, catarro, pus, sangue, suor e gordura;
Lágrima, linfa, saliva, muco, gordura das
juntas e urina.
Como
se houvesse um saco com abertura dupla, cheio de vários tipos de grãos, tais
como arroz, arroz com terra, arroz com casca, palha de arroz, ervilha,
gergelim, e um homem com boa visão o abrisse e examinasse e dissesse: “Isto é
arroz, isto é arroz com terra, isto é arroz com casca, isto é palha de arroz,
isto é ervilha, isto é gergelim”. Da mesma forma, bhikkhus, um bhikkhu
reflete sobre seu corpo, de baixo para cima a partir da sola dos pés, de
cima para baixo a partir do topo da cabeça, limitado pela pele e repleto de
diversas impurezas: “Existem nesse corpo cabelo, pêlo do corpo, unhas, dentes e
pele; carne, tendões, ossos, medula e rins; coração, fígado, diafragma, baço e
pulmões; estômago, intestino, peritônio, fezes e cérebro; bile, catarro, pus,
sangue, suor e gordura; lágrima, linfa, saliva, muco, gordura das juntas e
urina.
Assim ele permanece contemplando o corpo no
corpo internamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo externamente, ou
permanece contemplando o corpo no corpo tanto internamente como externamente.
Permanece contemplando no corpo os seus
fatores de aparecimento, ou permanece contemplando no corpo os seus fatores de
dissolução, ou permanece contemplando no corpo tanto os fatores de aparecimento
como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas o
corpo” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência
necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz
respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco
agregados do apego.
Assim
é como um bhikkhu permanece contemplando o corpo no corpo”.
(Baseado no texto do Venerável U Silananda,
The Four Foundations of Mindfulness, Boston, Wisdom, 2002).
Investigamos
quais sensações e desejos são inábeis, quais nos prendem ao ciclo do samsara e
do sofrimento; ao invés de negar ou tentar rigidamente suprimir a
experienciação dos prazeres sensoriais, procuramos substituir progressivamente
por deleites mais sutis, desejos mais sábios. E o que seriam desejos sábios? As
aspirações não contaminadas pela cobiça, ódio e ignorância; aspirações que
provêm de relações mais amorosas consigo e com o mundo, deleites mais refinados
que emergem dos estados mais profundos da mente, propiciados pela concentração
e cultivo das qualidades saudáveis inatas da mente, como a amizade amorosa, a
compaixão, a alegria pelo sucesso dos outros, a equanimidade, a sabedoria, a
restrição vigiada dos sentidos e suas portas, através das quais os contatos se
dão, com o surgimento das sensações e do desejo inábil.
Mesmo os deleites mais sutis, ainda são deleites. A longo
prazo, trata-se de desapegarmos totalmente de qualquer expectativa de deleite.
Em um nível mais confrontante de treinamento para o desapego ao sensualismo e o
corpo, Buddha recomenda a contemplação da morte, da decomposição do corpo como
a verdade sobre a impermanência do corpo, de modo a contrabalancearmos a versão
unilateral das “vantagens” (assada) do desejo sensual e apego ao corpo,
com a visão das “desvantagens” (adinava) do corpo material, reveladas
pela contemplação do corpo em decomposição:
“As Nove Contemplações do Cemitério
Novamente, bhikkhus, quando um bhikkhu
vê no cemitério um corpo morto depois de um, dois ou três dias após a
morte, inchado, lívido, jogado em uma vala, compara seu próprio corpo a esse:
“Na verdade, este corpo também tem a mesma natureza, se tornará igual a esse
outro, não está isento desse destino”.
Assim ele permanece contemplando o corpo no
corpo internamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo externamente, ou
permanece contemplando o corpo no corpo tanto externamente como internamente.
Permanece contemplando no corpo os seus
fatores de aparecimento, ou permanece contemplando no corpo os seus fatores de
dissolução, ou permanece contemplando no corpo tanto os fatores de aparecimento
como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas o
corpo” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência
necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz
respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco
agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece
contemplando o corpo no corpo...”
(Baseado no texto do Venerável U Silananda, The Four Foundations of
Mindfulness, Boston, Wisdom, 2002).
Como
esse processo é bastante exigente, procuramos caminhar gradualmente.
Contemplamos o corpo, e as sensações, não para criarmos uma aversão ao corpo.
Continuamos a cuidar dele com zelo, para que seja saudável, porém trazendo a
visão realista sobre sua impermanência, bem como a das sensações que surgem na
mente a partir do contato com os objetos sensoriais. Do mesmo modo que em
relação com ao lide com a dor, o lide com as experiências sensoriais prazerosas
e agradáveis é um processo de treinamento gradual. Experimente e veja.
Relembrando, sempre mantendo o bom senso e a adequação progressiva às nossas
possibilidades e limites. Escala, escada, rumo a Nibbana, a felicidade
duradoura.
Referências
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Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP:
Editora Moderna, 1998.
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Windhorse Publications, 2008.
Bhante Rahula. Anotações
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2011, Casa de Dharma.
Bhikkhu Ñanamoli,
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Translation of the Majjhima Nikaya. Boston: Wisdom
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Henepola Gunaratana,
Bhante. Os Quatro Fundamentos da Plena Atenção. São Paulo:
Casa de Dharma, 2012.
_______________ Mindfulness in Plain English. Boston: Wisdom
Publications, 2002.
Meditação e a Dor, em A Meditação e a Ciência, www.acessoaoinsight.net
O Livro do Cérebro. Sentidos e emoções. Vol
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U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.
_____________ La
Matéria (Rupa). Notas
de Clase # 7. Curso Introductorio de Abhidhamma. Mexico: Publicaciones Fondo
Dhamma Dana. Centro Mexicano del Buddhismo Theravada A.C, 2003
Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
6
A Plena Atenção e
o Sistema Endócrino-Imunológico
Arthur
Shaker
Como o treinamento da
Plena Atenção pode fortalecer nosso sistema endócrino-imunológico, prevenindo o
surgimento de certas doenças e apoiando a superação, quando enfermos? O que a
ciência médica tem apresentado em suas proposições e pesquisas sobre esse tema?
Iniciemos com uma
apresentação sucinta sobre alguns processos básicos de funcionamento desses
sistemas e as possíveis intervenções benéficas da mente atenta sobre esses
processos. Digo “possíveis” como hipóteses a serem verificadas por pesquisas
médicas. Uma apresentação sucinta permitirá ao leitor uma aproximação e
familiaridade geral sobre a fisiologia desses sistemas (Amabis & Martho,
1988) e suas ligações com nosso sistema nervoso, como base para proposições das
ações da mente.
Formado pelas
glândulas endócrinas (do grego endos,
“dentro”, e krynos, “secreção”), o
sistema endócrino produz hormônios (de hormon, “por em movimento, estimular”) que
são lançados no sangue ou na hemolinfa (líquido circulante que entra em contato
direto com as células, alimentando-as e captando suas excreções). Os hormônios
estimulam várias funções e processos corporais das respectivas células-alvo,
através de um mecanismo do tipo chave-fechadura com seus receptores hormonais
(proteínas que se combinam com o hormônio).
A quantidade de
hormônio liberada é controlada por um mecanismo chamado feed-back negativo: a
partir de certa concentração no sangue, ocorre uma inibição da atividade da
glândula, e uma diminuição aciona a produção e liberação do hormônio pela
glândula.
Já neste aspecto,
podemos perguntar: como a glândula “sabe” nessa regulação? A resposta pareceria
óbvia: o princípio de sobrevivência atua nessa regulação para manter o
equilíbrio relativo do corpo vivo. Seria uma espécie de sapiência biológica.
Mas em se tratando de uma sapiência, portanto sabedoria cognitiva, poderíamos
reduzir a cognitividade sapiencial a um processo mecânico? Quando se trata de
cognitividade, há uma consciência atuante. E onde se aloja essa consciência? No
cérebro? Este é um ponto complexo sobre as relações corpo-mente. Na perspectiva
da ciência budista da mente, a consciência é um atributo da mente, ou até
poderíamos dizer que a mente é consciência, no sentido de cognição, surgindo e
desaparecendo momento a momento. A mente é que controla o equilíbrio da vida,
embora possamos não perceber (e na maioria das vezes não percebemos) claramente
esses processos, devido às suas sutilezas, acessíveis apenas pela concentração
e plena atenção aguçadas, advindas de treinamento metódico.
Mente e corpo atuam
segundo processos nos quais as tendências kármicas condicionam a vida da
mente-corpo. Entendendo karma (kamma, em páli) como ação qualificada
pela intenção (cetana) na ação, a
vida é momento a momento condicionada por, e condicionante das tendências
kármicas. Os seres vêm à vida como fruto do desejo (tanhã), em suas formas de desejo sensorial (kamma-tanhã), desejo de ser-existir (bhava-tanhã) ou de não existir (abhava-tanhã).
A vida fenomênica surge como fruto da cobiça mental, a sede de experimentar
sensações e formações mentais volitivas. Para sustentar essa cobiça volitiva,
os processos mentais desencadeiam incessantes esforços para equilibrar os
processos corporais internos e suas relações com o meio externo. A “sapiência”
do sistema endócrino, e do corpo de modo geral, ganha outra luz quando olhada
por esse ângulo. Certamente que a dinâmica mente-corpo é bastante complexa e
multi-condicionada, mas esses apontamentos são importantes, pois abrem um campo
para intervenção da Meditação da Plena Atenção: cultivando a mente atenta e
sábia, podemos redirecionar as vias de atuação dos processos neurais-mentais,
de tendências enraizadas na cobiça/aversão, para tendências de liberação sobre
as demandas aflitivas da “sede de viver”. Isto colabora com o funcionamento
mais harmonioso das funções endócrinas.
À luz desta
perspectiva de diálogo com as concepções médicas, vejamos algumas das principais
glândulas endócrinas e suas funções:
Hipófise: localizada no
encéfalo e ligada ao hipotálamo, é formada de duas partes: adeno-hipófise (lobo anterior) e
neuro-hipófise (lobo posterior).
- Adeno-hipófise:
produz hormônios cuja secreção está sob o controle do hipotálamo:
- Somatotrofina estimula o
crescimento geral do corpo;
- Prolactina (estimula a produção do leite materno);
- Endomorfinas (inibidores dos receptores de dor);
- Hormônio estimulante da melanina relacionada com as células pigmentadas da pele);
- Hormônios tróficos (estimulam e controlam o funcionamento de outras glândulas endócrinas):
- TSH (tireóide estimulante) - regula a atividade da tireóide;
- ACTH - regula a atividade da glândula suprarenal;
- FSH e LH – atuam nos testículos e ovários.
- Neuro-hipófise: libera a oxitocina (que acelera as contrações uterinas para o parto e contrai as glândulas mamárias para a saída do leite materno) e o hormônio antidiurético (ADH, atuante sobre os rins, na retenção de água pelo corpo; a deficiência do ADH gera a diabete insípida). Esses dois hormônios são sintetizados no hipotálamo e levados à neuro-hipófise, para sua liberação no sangue.
Dos hormônios
tróficos, dois deles, o TSH e o ACHT, atuam respectivamente sobre as glândulas
tiróides e supra-renal:
- Tireóide: localizada sob a traquéia, produz hormônios iodados de tiroxina (T4) e triiodotironina (T3), que aumentam a respiração celular de todas as células, aumentando com isso a atividade geral do organismo. A calcitonina diminui a quantidade de cálcio no sangue e inibe a liberação de cálcio dos ossos. Distúrbios da glândula tireóide geram o hipotireoidismo (redução da atividade da tireóide, com desativação do metabolismo, obesidade, baixa atividade); bócio (aumento da tireóide pela falta de iodo na alimentação); hipertireodismo (elevado aumento da atividade da tireóide, gerando baixo peso, hiperatividade e apetite excessiva).
- Paratireóides (ligadas à tireóide): produzem o paratormônio, atuante no aumento do cálcio no sangue e estimulação da liberação de cálcio dos ossos. A deficiência leva à contrações convulsivas dos músculos esqueléticos.
Um
interessante tema de pesquisa seria o estudo sobre como o treinamento da mente
tranqüila e atenta poderia intervir beneficamente nos quadros de distúrbio do
funcionamento da tireóide. Trazendo o foco da mente sobre essa área e
irradiando sobre ela pensamentos de metta,
a bondade-amizade amorosa por si mesmo, poderíamos distensioná-la e estimulá-la
positivamente, visualizando “mentalmente a parte específica [do corpo, neste
caso, a tireóide] que está defeituosa. E nós focamos nossa parte naquela parte
específica para que ela fique boa. Quando ela está fraca, doente, nós focamos
nossa mente naquela parte para trazê-la de volta à normalidade. Para isso, nós
temos de ter grande poder de atenção e concentração a cada parte do corpo”.
(Gunaratana, 2012, p. 99-100). Isto pode valer para qualquer parte doente do
corpo. A tranquilização da mente poderia beneficiar a produção balanceada dos
hormônios, bem como distensionar os estados aflitivos que surgem como reações
mentais das pessoas que sofrem das disfunções da tireóide.
A
questão do hormônio adrenocorticotrófico (ACHT) se conecta com o funcionamento
da glândula suprarenal:
Glândula
suprarenal: localizada sobre cada rim, possui uma parte externa (córtex) e
uma interna (medula). Na medula adrenal soa produzidos dois hormônios:
Adrenalina (epinefrina) – produção
estimulada pelo Sistema Nervoso (SN). Em situações de estresse, leva à
concentração de sangue nos músculos e órgãos para uma reação de resposta rápida
do tipo luta-fuga, com taquicardia, aumento de pressão, dilatação dos
bronquíolos pulmonares para maior troca gasosa, e agitação nervosa. Este é um
ponto importante de intervenção da meditação da plena Atenção. Reiteradas
exposições à situações de estresse, ao acionar o disparo do sistema nervoso e
consequentemente da adrenalina no sangue, leva a um desgaste e irritabilidade
extremamente perigosos, com riscos de infarto e outras conseqüências danosas. Cultivando
a plena atenção, a tranquilização e a mudança dos padrões mentais geradores do
estresse crônico, reequilibramos as funções corporais. A adrenalina também pode
ser disparada pela estimulação da busca de sensações prazerosas ou emocionantes
de impacto, como certas diversões intensas. A motivação subjacente é a da
cobiça por prazeres sensuais intensas, uma das formas do fogo sedento na mente
(kamatanhã), gerador de sofrimento
mental e desgaste corporal, pois a sede pelo prazer sensorial nunca pode ser
plenamente satisfeita. É como tentar apagar o fogo jogando gasolina encima.
Noradrenalina
(norepinefrina) – com a função de equilibrar a pressão sanguínea, a
norepinefrina também é suscetível às reações de estresse, estimulando mais
sangue aos grupos musculares maiores.
É no córtex adrenal que seus
hormônios produzidos podem levar a grandes riscos para a saúde corporal e
mental. Ali são fabricados os corticosteróides (derivados do colesterol): os
glicorticóides e os mineralocorticóides. Atuando na produção da glicose (para a
resposta ao estresse), o principal é o cortisol
(hidrocortisona), que também tem a função de reduzir as inflamações
alergias, ao diminuir a permeabilidade dos capilares sanguíneos. Os mineralocorticóides
(como o aldosterona) atuam no equilíbrio dos sais e água no corpo.
As
glândulas adrenais são estimuladas pela área cerebral do hipotálamo (localizado
no encéfalo, no Sistema Nervoso central, SNC). Situações de estresse hiperativam
essas produções hormonais para a defesa. Segundo as observações das
neurociências, situações de ameaça disparam o alarme da região central da
amígdala. Esta encaminha impulsos nervosos para o tálamo (no encéfalo), que
envia ao tronco encefálico um sinal do tipo: Acorda! E a norepinefrina é
liberada pelo cérebro. O Sistema Nervoso Simpático envia sinais aos órgãos e
músculos, preparando-os para a luta-ou-fuga. O hipotálamo (o regulador cerebral
primário do sistema endócrino) prepara a glândula hipófise (pituitária) para
que esta sinalize as glândulas adrenais para liberar os “hormônios de estresse”
(adrenalina e cortisol). O que está acontecendo nesse momento com seu corpo?
Aumento do batimento cardíaco, dilatação das pupilas, aumento do sangue nos
músculos, dilatação pulmonar, elevação da pressão sanguínea, com riscos de
doenças cardíacas, úlceras, hipertensão, arteriosclerose, diabete melito,
câncer.
Para
reduzir inflamações dos ferimentos, o cortisol reprime o sistema imunológico (e
consequentemente, maior vulnerabilidade a infecções). Reações de estresse
desencadeiam-se em dois modos circulares: ativam a amígdala, que produz mais
cortisol; o cortisol reprime a atividade do hipocampo (área cerebral que
normalmente inibe a amígdala); com isso, a amígdala desenfreada libera mais
cortisol. A sexualidade é desativada, a salivação decresce, os movimentos
peristálticos diminuem (gerando a constipação), as emoções se intensificam e
mobilizam todo o cérebro para ação, que estimula a amígdala para o foco em
informações negativas e intensas reações, que desencadeiam medo, raiva,
violência. O aumento da ativação do sistema límbico (emocional) e endócrino
enfraquece o controle executivo do córtex pré-frontal (PFC). É como um carro
disparado, e o motorista vendo todos em volta como ameaças e perigos. Qual o
preço dessa vida moderna estressante e disparada? (Hanson, 2009, pgs. 52-53)
Novamente
aqui intervém beneficamente o treinamento da tranquilização (samatha), amorosidade (metta), plena atenção (para a visão
clara, vipassana) e sabedoria (pañña) sobre os mecanismos de nossos
processos mentais: do quê sinto ameaça? Por quê? Como reajo a essas situações?
Com raiva, apego, ignorância? O que está acontecendo com meu corpo nesses
momentos? Quais sensações? Estou atento? Grudo nesses processos, alimentando-os
em suas negatividades? Porque não deixar ir, com amorosidade e sabedoria?
Liberta.
Sobre
o sistema endócrino, restaria ainda falar do pâncreas e das gônadas. As gônadas
(testículos e ovários) produzem os hormônios que regulam a reprodução, a
sexualidade e o crescimento do corpo. Os testículos produzem o hormônio
testosterona (condicionador do impulso sexual) e os ovários produzem o
estrógeno (estimula o impulso sexual) e a progesterona (facilitador da
gravidez). O pâncreas é uma glândula mista: em sua função exócrina, libera no
duodeno suco pancreático, contendo várias enzimas digestivas; em sua função
endócrina, produz os hormônios da insulina e glucagon. A insulina facilita a
absorção de glicose pelas células (diminuindo a concentração de glicose no
sangue), e forma e armazena no fígado o glicogênio, que será transformado, em
situações de carência, em glicose no fígado pela estimulação do glucagon. O
glucagon também atua na síntese de glicose presente em outros alimentos, por
isso aumenta a concentração de glicose no sangue.
A
baixa produção de insulina eleva a taxa de glicose no sangue com muita produção
de urina (diminuindo a reabsorção de água pelos rins) e leva o organismo a
degradar proteínas e gorduras para conseguir energia (gerando fraqueza), visto
que a insuficiência de insulina torna as células pouco permeáveis à glicose.
Esse distúrbio hormonal é o da diabete melito, um desequilíbrio na normalidade
da taxa de glicose do sangue, regulada pela interação entre a insulina e o
glucagon. Abro uma pergunta para pesquisa: o treinamento da plena atenção
poderia de algum modo beneficiar o lide da diabete? Talvez não diretamente (no
sentido de que meditar curaria a diabete), mas indiretamente é possível: a
tranquilização mental e a clareza sobre a impermanência poderiam tornar a mente
mais hábil e amorosa no lide desta doença, através da aceitação (não passiva ou
conformista), distensão e disciplina terapêutica. Como em todas as doenças, há
várias causas da diabete, e é possível que dentre elas haja componentes kármicos
que se frutificam nesta vida enquanto distúrbios corporais. Abrir espaço para
essa possibilidade de causação, ainda que possa ser uma causa secundária, ajuda
a prática terapêutica de aceitação-intervenção saudável. Importante refrisar
que aceitação não é sinônimo de conformismo resignado, mas de ver e estar na
realidade como ela é, e responder, não com ações reativas movidas pela aversão,
mas com ações sábias. Já foi dito por muitos mestres que a doença pode ser um
caminho para o despertar da mente: tudo depende de se a olhamos com reatividade
aversiva (ou decepcionada) ou se com sabedoria e amorosidade. Isso tem a ver
com o princípio sutil do “viver o próprio karma” (Pallis, 1986, p.13-34).
A
existência condicionada é impermanente e insatisfatória. Para manter até certo
nível de normalidade o corpo funcionando, milhares de processos corporais e
mentais se movimentam momento a momento, nesse esforço por entre a precariedade
e fragilidade existencial. Constantes ameaças afligem a sustentação do corpo,
trazendo tensões e sofrimento. Este é um dos aspectos da Primeira Nobre Verdade
apontada pelo Buddha. Nascemos por conta de nossa cobiça-sede de
viver/experimentar sensações e desejos (tanhã);
agora temos de lidar com um desses frutos kármicos: a luta pela preservação do
corpo sob constantes ameaças internas e externas. Vírus, bactérias, ferimentos
e muitos outros invasores que competem conosco por sobrevivência movida por
impulsos de existir no samsara condicionado. Se essa competição fosse
desenfreada, talvez não passássemos dos primeiros segundos de vida ainda no
ventre materno. A existência condicionada seria talvez inviável se não houvesse
o princípio oposto ao da devoração: as defesas do corpo, em seu sistema
imunológico.
Resumidamente, segundo a concepção da Biologia ocidental
moderna, constituem mecanismos de defesa corporal: pele e mucosas, células
fagócitos e respostas inflamatórias. Dotada de uma camada queratinizada, a pele
é uma primeira barreira defensiva, que conta com certa acidez gerada pelas glândulas
sebáceas e sudoríparas. A segunda linha defensiva são as células-fagócitos que
absorvem (fagocitam) os “invasores” do corpo. Leucócitos do sangue (os
neutrófilos) ou vivendo nos tecidos (os macrófagos), deslocam-se para fagocitar
as substancias nocivas ao corpo. As respostas inflamatórias são defesas criadas
pela presença da histamina, que dilata os vasos sanguíneos facilitando a saída
dos leucócitos para a fagocitose.
Constituído de glóbulos brancos e seus órgãos produtores,
o sistema imunitário combate em vários modos:
·
na primeira linha, o combate direto fagocitador
pelos macrófagos;
·
os linfócitos T, na forma de auxiliadores (CD4),
e na forma de matadores (CD8), através do ataque direto às células infectadas
por vírus, identificam as substâncias expostas pelos macrófagos e disparam o
alarme;
·
linfócitos B, combatem à distancia pela produção
dos anticorpos (20% do plasma sanguíneo), que inativam as substâncias
estimuladoras de sua produção, que serão fagocitadas pelos macrófagos e
leucócitos.
Constituem órgãos do
sistema imunitário:
A medula óssea: [produz os linfócitos T (migra ao timo, órgão sobre o coração, onde
amadurece) e o B (amadurece na medula)]. Migram depois, e permanecem até sua
ativação, nos gânglios linfáticos (contendo
glóbulos brancos, localizados estrategicamente na entrada da via respiratória,
no tubo digestivo, no pescoço, axilas, virilhas e na parede do intestino, que
atacam as substâncias estranhas circulantes pela linfa) e no baço.
Localizado no lado esquerdo do abdômen, o baço tem
várias funções:
- “Armazenamento de linfócitos e monócitos, dois tipos de leucócitos;
- Filtração do sangue ara a remoção de microorganismos, substâncias estranhas e resíduos celulares;
- Destruição de hemácias envelhecidas, transformando a hemoglobina nelas contidas em bilirrubina, que é lançada na circulação, sendo posteriormente removida pelo fígado;
- Além disso, o baço ainda atua como um “banco de sangue de emergência”, pois armazena hemácias, lançando-as na corrente sanguínea em momentos de necessidade, como em um esforço físico intenso, por exemplo” (Amabis & Martho, 1998, pag. 520-521).
Segundo os autores acima referidos, a
atuação do sistema imunitário se dá segundo três mecanismos diferentes:
- Imunidade humoral – através dos anticorpos (proteínas), cujas extremidades reconhecem e se ligam aos antígenos (substâncias estranhas indutoras dos anticorpos). Casa tipo de anticorpo se liga a um antígeno específico, inativando-o e facilitando sua destruição pelos fagócitos.
- Imunidade celular – através dos linfócitos T matadores, que lançam sobre as células anormais ou infectadas por vírus, uma substância destruidora, a perforina.
- Interleucinas - produzidas por macrófagos e os linfócitos T auxiliadores, são proteínas que favorecem o reconhecimento das substâncias estranhas pelos linfócitos:
“Uma
vez que um linfócito aprendeu a reconhecer o inimigo, as interleucinas fazem com que ele se multiplique. Assim, todas as
células oriundas de um linfócito que reconheceu determinado antígeno herdam a
capacidade de reconhecê-lo. Os linfócitos continuam a se multiplicar enquanto
houver antígenos capazes de ativá-los. À medida que os antígenos são destruídos
e vão desaparecendo, o número de linfócitos especializados em combatê-los vai
diminuindo.
Mesmo
após uma infecção ter sido debelada, resta no organismo certa quantidade de
linfócitos especiais, as células de
memória, que guardam durante anos, em geral pelo resto da vida do
organismo, a capacidade de reconhecer agentes infecciosos com os quais o
organismo esteve em contato. Em caso de novo ataque, as células de memória são
imediatamente ativadas e estimuladas a se reproduzir. Surge, então, em curto
intervalo de tempo, um exército de células defensoras específicas” (Amabis
& Martho, 1998, pág. 522).
Vacinas
e soros são produzidos graças á compreensão desses processos. Os autores
referidos apontam algumas dificuldades e doenças ligadas ao sistema imunitário:
·
A rejeição a transplantes: devido à reação das
proteínas do complexo maior de histocompatibilidade – MHC – reconhecedoras de
células estranhas;
·
Auto imunidade: por razões ainda desconhecidas,
o corpo produz anticorpos contra componentes do próprio corpo, gerando doenças
como artrite, problemas renais, febre reumática, artrite reumatóide;
·
Alergias: causadas pelo anticorpo imunoglobulina
G. Ligado a um tipo de célula do tecido conjuntivo (o mastócito), ao se
contatar com as moléculas de substâncias alérgicas, libera histamina e com isso
a inflamação. Alta sensibilidade a certas substâncias pode causar o choque
anafilático, uma reação alérgica generalizada.
·
Aids (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida):
causada pelo vírus HIV, que diminui fortemente os linfócitos T auxiliadores
(CD4), ativadores de outros linfócitos de defesa, tornando o organismo
vulnerável aos antígenos mais comuns.
Os autores concluem
apontando os riscos que o estresse físico e mental acarreta sobre o processo
imunológico, deprimindo-o, fazendo com que a pessoa seja passível de doenças
como o câncer, doenças que por sua vez se relacionam com estados emocionais
depressivos.
Nesta
complexa co-dependência entre fatores biológicos e processos mentais no sistema
imunológico, pesquisas científicas serão valiosas para avaliar questões
importantes: não estaria esta interpretação das ações imunológicas baseada num
“modelo de guerra” advindo do pós-guerra da década de 50? Se esses processos de
produção e ações imunológicas de defesa do corpo evidenciam uma sapiência que
dirige os órgãos, as substâncias defensoras e os comandos (reconhecer,
combater, memorizar), qual a raiz fundante dessa sapiência? Apenas “mecanismos
biológicos instintivos”? Como o sistema nervoso intervém nesse processo?
A perspectiva budista
vê a mente como a cognitividade que dirige tanto a consciência como o corpo. É
a mente que conhece, em suas atividades que mobilizam as sensações (vedana), a percepção (sañña), as formações mentais volitivas (sankharas) e a consciência (citta). É um desafio para a visão
científica como investigar, com instrumentos de mensuração, essa determinação
da mente no funcionamento do sistema imunológico. Questão de pesquisa difícil,
sobre como os processos mentais condicionam essa sapiência imunológica. Do
ponto de vista prático, o importante é saber como fortalecer mental e
corporalmente o sistema imunológico. Na pesquisa do projeto Shamata, sob a
direção do Dr. Clifford Saron, principal pesquisador do Center for Mind and
Brain - UC Davis, e do erudito Budista B. Alan Wallace, se busca explorar como
o treinamento intensivo de três meses na prática de meditação afeta a cognição,
o comportamento e a fisiologia. Segundo os pesquisadores, em sua avaliação de
como alguns indicadores biológicos podem mudar como resultado do treinamento
meditativo: “Um desses indicadores, telomerase, uma enzima que protege o
material genético durante a divisão das células e que incrementa a viabilidade
da célula, pode ser suprimida em resposta à aflição psicológica. Amostras de
sangue obtidas ao final do retiro revelaram que a atividade da telomerase
estava significativamente mais elevada nos participantes do retiro, (versus
grupo de controle), e que a atividade da telomerase estava relacionada às
mudanças no bem-estar induzidas pela meditação” (1).
Podemos encontrar uma
afinidade entre a perspectiva budista e a homeopática, pois, como vimos no cap.
2, a
Homeopatia considera que as doenças, e neste caso, as que envolvem o sistema imunológico,
provêm do desequilíbrio mais interno, no Plano Dinâmico que governa a saúde
geral do organismo humano, regulando os mecanismos de defesa. A Plena Atenção
sobre o corpo, e mais especificamente nos órgãos desse sistema imunológico,
trazendo para eles tranquilização, amorosidade e energia saudável é um dos
treinamentos hábeis de meditação. Outro aspecto saudável é o treinamento da purificação
dos venenos mentais da cobiça, ódio e ignorância sobre a realidade condicionada
e suas características de impermanência (anicca),
insatisfatoriedade (dukkha) e
impessoalidade (anatta).
Tranqüilizando e
purificando a mente, as energias mentais saudáveis se irradiam pelo Sistema
Nervoso e o corpo como um todo, prevenindo e fortalecendo o sistema
imunológico, ainda que não se saiba exatamente como o sistema nervoso atua no
sistema imunológico. Mas se é dito que os estados mentais não saudáveis
(estresse, tristeza, raiva, melancolia) deprimem o sistema imunológico,
certamente isto indica (ainda que não se possa saber como) a forte correlação
com o sistema nervoso, que por sua vez (na perspectiva da ciência budista) é
correlato com a mente (outro ponto complexo).
Um outro aspecto importante
(e difícil) de investigação científica é a da relação entre karma e imunologia:
como os karmas (kammas) que
determinam o renascimento condicionam esses processos imunológicos? Como
limitam? Considerando se tratar de processos num plano sutil, talvez não seja
possível mensurar com instrumentos empíricos essa complexa correlação. Ainda
assim, considerando que karma é a ação volitiva intencional, que devido à lei
de causa e efeito, gera efeitos nos processos mentais, podemos por inferência
supor que as intenções (cetana) de
nossas ações influenciam, mesmo que indiretamente, a vitalidade de nossos
processos imunológicos. Nesse sentido, a qualidade do sistema imunológico se
beneficiaria do cultivo do Nobre Óctuplo Caminho, a Quarta Nobre Verdade, que
leva à cessação do sofrimento: compreensão hábil, pensamento hábil, fala hábil,
ação hábil, modo de vida hábil, esforço hábil, plena atenção hábil,
concentração hábil. E, inversamente, a negligência dessa compreensão e cultivo
enfraquece o sistema imunológico, pois alimenta um modo de vida corporal e
mental não saudável, do qual estados mentais e corporais como estresse,
depressão, raiva, etc., são sintomas que, de um lado, nos alertam sobre as
tentativas do Plano Dinâmico ativar o mecanismo de defesa possível para aquela
pessoa naquele momento, mas por outro lado, são sintomas doentios, que se não
superados, levam ao progressivo sofrimento e colapso da vida da pessoa.
Outro ponto
importante de investigação: poderíamos propor que o sistema imunológico se processa
momento-a-momento, dependente de causas e condições, e por isto é fortalecido
(ou enfraquecido) momento-a-momento, ao mesmo tempo em que é condicionado pelo
“armazenamento” de memórias e potencialidades, armazenamento condicionado pelos
karmas? A importância e determinação do karma na qualidade do sistema
imunológico é uma hipótese a ser examinada. A capacidade das células de memória
de reconhecer a natureza química dos agentes infecciosos não seria uma
qualidade da consciência mental (citta),
por sua vez tendo o karma como um de seus fatores emergentes no processo
cognitivo, que se dá momento-a-momento? É importante esclarecer que as
tendências kármicas não são apenas de caráter não-saudável, há as saudáveis. É
graças a estas que ocorre o nascimento no estado humano, venturoso em relação a
outros estados de maior sofrimento, como o estado animal ou estados infernais,
segundo a cosmologia budista. Raro é o nascimento no estado humano, ensina o
Buddha. E precioso, pois o intelecto nesse estado tem potencialidade para a
libertação-iluminação. A questão é como usamos esse condição de ser humano:
qual o sentido que imprimimos à nossa vida humana? Reforço da cobiça, ódio,
ignorância, ou caminho da libertação dos ciclos de nascer e morrer (samsara), com todos os sofrimentos que
eles encerram indefinidamente?
Outro ponto de
investigação: haveria influências kármicas atuando no processo de auto-imunidade?
Por que o corpo trabalha contra o corpo? Seria uma forma de auto defesa
distorcida? Poderia ser expressão sintomática corporal de karmas auto-destrutivos?
O cultivo da amorosidade, aceitação e resposta mental não-reativa pode ser de
grande valia terapêutica para a reversão desse processo, de acordo com as
causas e condições de cada pessoa. Fica posto este tema para a pesquisa científica
sobre os efeitos da Meditação da Plena Atenção no sistema imunológico. A
própria questão das reações alérgicas poderia ser trabalhada com o apoio
complementar da Meditação Plena Atenção. Não haveria, nessas reações alérgicas
a certas substâncias, certa dimensão de aversão-irritação mental, na qual
intervêm heranças kármicas? Reações alérgicas não poderiam ter uma dimensão de
auto defesa não apenas química a certas substâncias, mas mental, em que
sobrecargas de energias calóricas geradas por tensões mentais são descarregadas
nos órgãos ou na pele? Nesse caso, bloquear essas reações poderia ser um
caminho equivocado. Seria mais saudável permitir essa liberação, ainda que
moderando com o alívio dos sintomas desconfortáveis. O mesmo se aplicaria para
o caso do sintoma da febre. É certo que permitir essa liberação exige aceitação
de algum grau de desconforto e irritação, mas o apoio de medicamentos que ajam
pela moderação (e não bloqueio) e o treinamento mental da tranquilização,
amorosidade e clara compreensão sobre o corpo ajudam na superação das reações
alérgicas. Também aqui as reações alérgicas podem ser um objeto de meditação,
principalmente porque elas envolvem o lide com a aversão às sensações desprazerosas,
a outra face da moeda, a do apego às sensações prazerosas. Este é o próximo
tema que devemos examinar.
Notas
(1) http://mindbrain.ucdavis.edu/labs/Saron/shamatha-project/overview,
A Meditação e o Projeto Shamatha, www.acessoaoinsight.net.
Referências
Amabis, J. Mariano & Martho, G. Rodrigues. Biologia dos Organismos. Classificação,
estrutura e função nos seres vivos. Vol 2. SP: Ed. moderna, 1994.
Hanson, Rick, Mendius Richard. The practical neuroscience of Buddha’s Brain. Happiness, love &
wisdom. USA :
New Harbinger Publications, 2009
Henepola Gunaratana,
Bhante. Os Quatro Fundamentos da
Plena Atenção. São Paulo: Casa de Dharma, 2012.
Pallis, Marco. Espectro luminoso
del budismo. Barcelona: Herder, 1986.
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
5
a Plena Atenção e o Sistema Digestivo: processos alimentares
Arthur Shaker
Os nutrimentos são uma das condições fundamentais para a existência.
De acordo com os ensinamentos budistas, há quatro tipos de alimentos (ahara), material e mental:
1. alimento
material (kabalinkarahara);
2. impressão (contato) sensorial e mental (phassa);
3. volição-pensamento
(mano-sancetana);
4. consciência
(viññaña)
(Nyanatiloka, 1970, p.6)
Nosso corpo é formado
pelos quatro grandes elementos: terra, água, fogo e ar. O quatro elementos são
encontrados em todos os seres sencientes e inanimados. Elemento, neste
contexto, não corresponde ao que comumente entendemos, mas às qualidades que
caracterizam cada um deles. Terra significa as qualidades de extensão, ocupação
do espaço, massa; firmeza, dureza-maciez, estabilidade; sua função é de atuar
como fundação, suporte. Assim, a suavidade do toque da água é o elemento terra.
A característica do elemento água é a coesão ou fluidez. A característica do
elemento fogo é a radiação, o calor. O calor tem quatro funções: digerir os
alimentos, manter a temperatura do corpo, permitir a sensação da queimação,
produzir a febre. Pelo elemento fogo, os alimentos são cozidos, o corpo
envelhece. A característica do elemento ar é a expansão, oscilação, movimento.
Há seis tipos no elemento ar: o ar ascendente, que causa os vômitos, o soluço,
etc; o ar descendente, que leva as fezes e urina para fora do corpo; o ar do estômago;
o ar nos intestinos; o ar que percorre todos os membros; a respiração
(inspiração e expiração) (Silananda, p.68). Poderíamos ainda incluir o elemento
“espaço”, os aspectos vazios e ocos do corpo (Analayo, 2008, p.151). Veremos, mais
adiante, como os quatro elementos constitutivos do corpo podem ser focos da
Meditação da Plena Atenção.
Os elementos também
são constitutivos de todos os alimentos materiais para o corpo. Cada vez mais
têm surgido estudos e recomendações para um balanceamento saudável na
alimentação (“diga-me o que comes, que direi quem és), e alertas sobre o abuso
de carnes muito gordurosas, frituras, doces, refrigerantes, enlatados e
alimentos industrializados de modo geral. A escolha dos alimentos, a quantidade
e sua distribuição no ciclo diário são pontos de partida da atenção saudável: o
que efetivamente necessito de alimentação? Estão adequados à fase presente da
minha vida, ao tipo de atividade que realizo, às estações do ano, aos períodos
do dia?
A plena atenção nos
direciona para uma compreensão clara sobre o significado da nutrição: comemos
para fornecer os nutrientes necessários à sustentação do corpo, para que o
corpo sustente nosso caminho espiritual, e para o arrefecimento da sensação
desagradável da fome e fraqueza corporal, ou para engordar? Frequentemente, por
ignorância e carências, deslocamos as insatisfações mentais para objetos que
parecem compensar as várias insatisfações, e um dos marcantes objetos de
compensação (e deslocamento da insatisfação) é a comida. Subjacente a esse
hábito impulsivo, está o sofrimento causado pela cobiça dos sentidos, cuja raiz
é a ignorância sobre a Nobre Verdade da insatisfatoriedade da existência
condicionada. A obesidade é um dos grandes males que a humanidade enfrenta
atualmente. Reduz-se por cirurgia o tamanho do estômago, mas não trabalhamos na
raiz do problema, a cobiça sensorial que vem pelo olho, nariz, língua, ouvido e
tato. Por onde o peixe é fisgado?
Os nutrientes,
enquanto energia necessária ao metabolismo corporal e matéria-prima para o
crescimento e regeneração, podem ser classificados em:
carboidratos e
lipídeos (alimentos energéticos),
proteínas
(fornecedoras dos aminoácidos para as células),
sais minerais (cálcio
para os ossos, ferro para transporte do oxigênio para as células via
hemoglobina, fósforo para energia nas reações químicas, etc.),
vitaminas (nas
reações catalizadas por enzimas), e água. Fornecem também as reservas
energéticas diárias de glicogênio, pela conversão de parte dos carboidratos
ingeridos, e armazenado no interior das células dos músculos e do fígado.
Ultrapassado o limite da reserva necessária, o excesso de carboidratos
consumido se transforma em gorduras que se armazenam nos tecidos adiposos. O
outro extremo da má-nutrição é a subnutrição, que leva à degradação das
proteínas celulares e de órgãos vitais como o cérebro e o coração, atrofiando
os músculos e provocando lesões físicas e mentais (Amabis & Martho, p.
327-331). Entre outras, causas sociais e ignorâncias alimentares estão na raiz
da subnutrição que ainda afeta significativa parcela da humanidade. Produção e
acesso ao consumo de alimentos no nível regional e global é um tema importante
no contexto atual de uma humanidade que cresce rapidamente. Gandhi dizia que
uma das maiores violências é a da fome.
Estudiosos da área
médica e da nutrição têm levantado alertas sobre os riscos envolvidos no
crescente uso dos alimentos industrializados, desde a questão da matéria-prima
com adubos químicos, os transgênicos, e os processamentos industriais, com o
uso de conservantes, aromatizantes, açúcares, etc. Alguns médicos já recomendam
a importância de se voltar para a “comida da vovó”. O bom senso e a reflexão na
escolha da dieta é um critério prático e funcional importante.
O treinamento da
Plena Atenção na alimentação prossegue agora com o foco no contato dos sentidos
diante da comida, principalmente os sentidos da visão e olfato. Quando os olhos
contatam a visão da comida, prestamos atenção à atividade da mente: há cobiça,
aversão ante às cores e aromas da comida? Quanto isso condiciona a quantidade
de comida que colocamos no prato? Quanta expectativa-desejo de sensações
prazerosas colocamos no olho e olfato diante da comida?
Colocado o alimento
na boca, inicia-se o processo da digestão. Ao invés de deixar a mente divagar
em pensamentos distrativos, nos conectamos com todos os momentos do
alimentar-se: atentos à intenção-ato de pegar o talher, levar até o prato, por
a comida no talher, levar a comida até a boca, mastigar, sentindo o gosto,
descansar o talher na mesa, observar as sensações na boca. Os monges sugerem
que mastiguemos a comida como fazem as vacas. Lenta e pacientemente. Quanto de
apego-cobiça e distração percebemos no ato de mastigar? Estamos atentos às
sensações? Ao apego? O quanto as sensações prazerosas-desprazerosas do comer
reforçam as tendências de cobiça e aversão, que por sua vez reforçam nossas
crenças ilusórias sobre a felicidade?
Através das enzimas
digestivas, as moléculas dos alimentos como as proteínas, gorduras e
carboidratos devem ser quebradas em moléculas menores. As
proteínas são digeridas pelas enzimas proteases, os carboidratos pelas
carboidrases e os ácidos nuclêicos pelas nucleases. Temperatura e grau de
acidez (pH) condicionam a atuação das enzimas. Na boca, além da trituração dos
alimentos, ocorrem metabolizações pelas glândulas produtoras de muco e enzimas.
Com plena atenção nessa etapa da digestão, além de facilitarmos a trituração,
colocamos na tranquilização e contentamento moderado nas sensações, uma
qualidade mais saudável de digestão, balanceando a quantidade de comida. Quando
distraídos, tendemos a ingerir mais quantidade do que talvez necessitássemos, e
com isso reforçamos a tendência da cobiça sensorial. Além disso, estados
mentais mais atentos e relaxados estimulam e balanceiam a atividade das áreas
do sistema nervoso envolvidas na digestão, como o hipotálamo, o sistema nervoso
periférico autônomo parassimpático, o sistema endócrino, bem como a ação das
glândulas salivares, que secretam a saliva, que contém a enzima amilase salivar
(ptialina) e sais:
“A amilase salivar
digere amido e outros polissacarídios (como o glicogênio, por exemplo),
reduzindo-os a moléculas de maltose, um dissacarídio. Os sais presentes na
saliva neutralizam substâncias ácidas e mantêm, na boca, um pH levemente ácido
(em torno de 6,7), ideal para a ação da ptialina. Diversas glândulas do
epitélio que reveste a boca secretam muco, que se mistura à saliva, tornando-as
viscosas. A viscosidade da saliva protege o epitélio bucal e faringeano do
atrito com os alimentos e facilita a deglutição” (Amabis & Martho, p. 339).
O bolo alimentar passa
pela faringe e esôfago, e entre o esôfago e o estômago há um anel que se
contrai e relaxa, permitindo a passagem do bolo alimentar, que chega ao estômago,
onde se mistura com o suco gástrico, rico em ácido clorídrico e as enzimas da
pepsina e renina. “A pepsina (...) digere proteínas, quebrando as ligações
peptídicas entre certos aminoácidos. (...) A pepsina é secretada pelas
glândulas da mucosa gástrica na forma inativa, chamada pepsinogênio. Este,
quando entra em contato com o ácido clorídrico, transforma-se em pepsina. A
própria pepsina forma, por sua vez, estimula a transformação de mais pepsinogênio
em pepsina. A função da renina (produzida em pequena quantidade nos adultos) é
coagular as proteínas do leite, que, assim, permanecem durante mais tempo no
estômago. Isso favorece uma digestão mais completa desses alimentos. O ácido
clorídrico torna o conteúdo estomacal fortemente ácido (pH em torno de 2), o
que contribui para destruir microorganismos, amolece alimentos e fornecer
condições de acidez ideais para a ação da pepsina, que atua em meio ácido. Apesar
de estarem protegidas por ma densa camada de muco, as células da mucosa
estomacal são continuamente lesadas e mortas pela ação do suco gástrico. Por
isso a mucosa está sempre sendo regenerada. Estima-se que nossa superfície
estomacal seja totalmente reconstituída a cada três dias” (Amabis & Martho,
p. 342).
Como a Meditação da
Plena Atenção pode intervir para uma digestão mais saudável? Na a digestão, há
processos fisiológicos relativamente autônomos da nossa vontade. Processos
relativamente autônomos, mas não totalmente: “O estômago produz cerca de três
litros de suco gástrico por dia. Esse volume de secreção é controlado tanto por
impulsos nervosos como por estímulos hormonais. A visão, o cheiro ou o sabor do
alimento estimulam nosso sistema nervoso central, e este, por meio de nervos,
estimula as células estomacais a secretarem suco gástrico” (Amabis & Martho,
p. 342). Ou seja, estados mentais intervém de modo significativo nesses processos,
fato que podemos perceber pela nossa própria experiência: tensão, cobiça,
sofrimentos, distração dificultam a digestão e geram várias doenças digestivas.
A plena atenção e a concentração tranqüila durante a digestão trazem benefícios
para a digestão, pois atuam diretamente no sistema nervoso central, e
indiretamente no sistema nervoso periférico, na produção hormonal e nos
músculos estomacais: estamos atentos a isso?
No intestino ocorre a
parte significativa da digestão, sob ação de enzimas das paredes intestinais, e
a absorção de nutrientes enviados ao corpo. Participam também as importantes
glândulas anexas ao tubo digestivo, o fígado e o pâncreas, com suas secreções
no intestino delgado: “A secreção do fígado contém água, sais e ácidos,
importantes na digestão de gorduras. A secreção do pâncreas contém água,
enzimas e bicarbonato de sódio, este último responsável pela neutralização da
acidez do alimento que vem do estômago” (Amabis & Martho, p. 336). No
intestino delgado (duodeno, jejuno e íleo) continua a digestão do quimo, massa
acidificada e semilíquida em que se transforma o bolo alimentar. Glândulas
intestinais produzem o suco intestinal, rico em enzimas digestivas como a
enteroquinase (que transforma o tripsinogênio em tripsina) e as peptidases
(enzimas que decompõem os peptídeos em aminoácidos).
Intervêm no processo
digestivo as glândulas do pâncreas e fígado. O pâncreas produz o suco
pancreático (composto de bicarbonatos e enzimas) e hormônios. Contendo enzimas
digestivas, o suco pancreático é alcalino e contém bicarbonato de sódio, que
neutraliza a acidez do quimo para um pH apropriado à atuação das enzimas dos
sucos intestinais e pancreático, como:
a tripsina e a
quimotripsina (liberados pelo pâncreas na forma inativa de tripsinogênio e
quimotripsinogênio), que digere proteínas;
a lipase pancreática,
que digere lipídeos;
a amilopsina, que
digere polissacarídeos.
No duodeno, o tripsinogênio
é transformado em tripsina pela ação da enteroquinase; por sua vez, a tripsina
atua sobre o tripsinogênio, transformando em quimotripsina (Amabis
& Martho, p. 342-43).
Mais do que guardar
nomes químicos, o propósito aqui é abrimos mais atenção ao fato de que nesta
complexidade do processo digestivo, a bioquímica digestiva pode ser melhor
processada quando cultivamos a plena atenção e o contentamento mental que
colaborem para, de um lado, facilitar os processos do corpo, e , de outro,
desenvolver o desapego, a amorosidade genuína
por nós mesmos e a sabedoria sobre o quanto de esforço e sofrimento a
sustentação da vida condicionada exige, desde o nascimento até fim de um ciclo
de vida. E mais renascimentos. Até quando queremos prosseguir nesses ciclos
incessantes de nascer e morrer? Toda essa massa de sofrimentos, em nome de quê?
A enzima amilopsina
quebra as grandes moléculas dos polissacarídeos em maltose, por sua vez
quebrada em moléculas de glicose pela enzima maltase. Outras enzimas do suco
intestinal, como a sacarase, quebra a sacarose em glicose e frutose; a lactase
quebra a lactose em glicose e galactose. As enzimas tripsina e quimotripsina
quebram as proteínas em oligopeptídios, digeridos pelas peptidases do suco
intestinal. Quantos processos! Onde estávamos até agora? Próximos do corpo?
Injuriando o corpo em quais supostos ganhos de felicidade?
Felicidade é um tema
central e complexo na mente humana. É central porque é a busca que todos os
seres almejam viver. É complexo porque depende das crenças que temos sobre ela.
A maioria de nós acredita que felicidade é sinônimo de desfrute dos prazeres
sensuais, outro tema importante e complexo. Assim, quando as condições
existenciais correspondem aos nossos desejos, nos sentimos felizes; quando
contradizem nossos desejos, nos sentimos infelizes. Embora seja natural eu em
nossas fases iniciais de vida persigamos as condições prazerosas (corpo
saudável, sucesso profissional, financeiro, sexual, familiar e de
relacionamentos sociais e afetivos), tendemos a ignorar a verdade da
impermanência e ficamos presos a esse nível do apego aos objetos sensoriais.
Desconhecemos os horizontes mais superiores de felicidade e alegria mental, que
culminam com o estado da mente incondicionada, Nibbana, livre das impurezas da
cobiça, ódio e ignorância. E como vemos o corpo como o maior veículo de nossos
objetos e metas de felicidade sensorial, ora esquecemos do corpo, na suposição
de que ele vai funcionar sempre bem, e automaticamente, e o sobrecarregamos com
excesso de cobiças, ora investimos nele, mas ainda para os mesmos desejos. Ou
ambos.
Retomando nossa
observação sobre o processo digestivo, três outros hormônios produzidos pelo
intestino participam da digestão: a secretina (que chega ao pâncreas,
estimulando-o a liberar o bicarbonato de sódio), a calecistoquinina (liberada
pela estimulação de gorduras e proteínas parcialmente digeridas no quimo, e que
ao tingir a vesícula biliar e o pâncreas, estimula-os a liberarem a bile e o
suco pancreático) e a enterogastrina (que diminui os movimentos peristálticos
estomacais, dando mais tempo para a digestão. (Amabis & Martho, p. 344).
O fígado produz a
bile (conduzido à vesícula biliar), que emulsiona as gorduras, transformando-as
em pequenas gotículas, facilitando a aça da lípase pancreática. Maior glândula
de nosso corpo, o fígado realiza funções importantíssimas. Pela veia
porta-hepática circula sangue vindo do intestino (rico em nutrientes absorvidos
na mucosa intestinal); pela artéria hepática circula sangue advindo do coração
(rico em oxigênio absorvido nos pulmões). “O fígado é um dos mais versáteis
órgãos do corpo humano. Estas são algumas de suas inúmeras funções:
- secretar bile, líquido que atua no emulsionamento das gorduras ingeridas, facilitando , assim, a ação da lípase;
- remover moléculas de glicose no sangue, reunindo-as quimicamente para formar glicogênio, que é armazenado; nos momentos de necessidade, o glicogênio é reconvertido em moléculas de glicose, que são relançadas na circulação;
- armazenar ferro e certas vitaminas em suas células;
- sintetizar uréia a partir de duas substâncias tóxicas,a a amônia e o gás carbônico; esta substâncias são, assim, removidas do sangue e eliminadas, na forma de uréia, pelos rins;
- degradar álcool e outras substâncias tóxicas, auxiliando na desintoxicação do organismo;
- destruir hemácias (glóbulos vermelhos) velhas ou anormais, transformando sua hemoglobina em bilirrubina, o pigmento castanho-esverdeado presente na bile” (Amabis & Martho, p. 347).
A importância do
fígado não se reduz apenas às suas funções corporais. Sua influência nos
estados mentais e humores, e vice-versa, é empiricamente experienciável, e
merece maiores estudos, aos quais voltaremos em textos futuros.
O estômago absorve
apenas substâncias como o álcool etílico, a água e alguns sais. A maior parte
dos nutrientes chega à corrente sanguínea via mucosa do intestino delgado, como
os aminoácidos e açúcares (provindo da digestão de proteínas e carboidratos) e
grãos lipídeos (reconvertidos do glicerol e ácidos graxos). No intestino
grosso, é absorvida parte da água e dos sais da massa de resíduos, que se
transformam em fezes, defecada pelo reto pela ação da contração da musculatura
abdominal e da contração-relaxamento dos esfincteres interno e externo do ânus:
“Cerca de 30% da parte sólida das fezes é constituída por bactérias vivas e
mortas e os 70% restantes são constituídos por sais, muco, fibras de celulose e
outros componentes não digeridos. A cor escura das fezes é devida à presença de
pigmentos provenientes da bile” (Amabis & Martho, p. 348).
O treinamento da
Meditação da Plena Atenção se estende à todas as atividades do corpo. Isso
inclui a atenção e relaxamento no processo de eliminação das fezes. O
fortalecimento e massageamento dos músculos abdominais através dos exercícios
físicos com plena atenção é parte importante e beneficial do cultivo
corpo-mente. Outro aspecto merecedor de atenção no balanceamento da alimentação
é o papel da flora intestinal: “No intestino grosso proliferam diversos tipos de bactérias, muitos
dos quais mantêm conosco relações amistosas, produzindo as vitaminas K, B12,
tiamina e riboflavina, entre outras, em troca do abrigo e alimento de nosso
intestino. Essas bactérias úteis constituem nossa flora intestinal e evitam a proliferação de bactérias patogênicas,
que poderiam causar doenças “(Amabis & Martho, p. 342-43).
Quantos processos
mobilizados na vida corporal! Como treinar a mente e o corpo na plena atenção à
alimentação, desde a escolha dos alimentos em suas qualidades nutrientes, sua
quantidade, e em cada pequeno trecho do processo digestivo, a plena atenção
desde a percepção do alimento, ingestão, mastigação, deglutição, digestão e
defecação? Como a plena atenção pode diminuir a incidência de distúrbios e
doenças digestivas como a prisão de ventre, gastrites e úlceras, pancreatites,
cálculos vesiculares, câncer de intestino? E o alcoolismo?
Cuidar do corpo. Como
fazer isso sem grudar a mente nele? O corpo é um agregado, impermanente sim,
mas não é a fonte do “pecado” ou “do mal” (outra visão incorreta): o problema é
o apego, a visão distorcida de que o corpo é permanente ou sempre fonte
prazerosa. Também é dor e sofrimento. O corpo é impermanente porque é
constituído pelos quatro elementos terra-água-fogo-ar, impermanentes. Meditamos
sobre os quatro elementos para ver que o corpo é composto desses quatro
elementos impermanentes, instáveis. No Satipatthana Sutta, Buddha nos convida a
refletir sobre os elementos materiais na constituição do corpo, através do
símile da vaca que ao ser dividida em pedaços pelo açougueiro, deixa de existir
como o conceito “vaca”. De modo similar, o que chamamos “nosso corpo” é apenas
um conceito, um constructo mental. Treinamos a mente a ver o corpo como uma
composição provisória, sempre impermanente e instável de quatro elementos, sem
um “eu-sujeito dono do corpo”:
E novamente, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre seu corpo, como este se
coloca em relação aos seus elementos primários: “Existe neste corpo o elemento
terra, o elemento água, o elemento fogo e o elemento ar?”
Como um habilidoso açougueiro e seu aprendiz, tendo matado uma vaca e
dividido-a em porções, se sentassem em um cruzamento de quatro rodovias, assim
também, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre seu corpo, como ele se coloca em
relação aos seus elementos primários: “Existe neste corpo o elemento terra, o
elemento água, o elemento fogo e o elemento ar” (Silananda, 2002, p. 65).
Podemos
reconhecer os quatro elementos no corpo no treino da meditação andando: quando
parados, estão mais ativos os elementos terra e água e mais passivo os elementos
ar e fogo; quando nos movemos, estão mais ativos os elementos ar e fogo e mais
passivos os elementos terra e água. Contemplamos a mudança em cada movimento do
corpo, compreendendo a verdade de sua impermanência.
Aplicando
a plena atenção e investigação da presença dos quatro elementos materiais do
corpo, aplicando a plena atenção nos diversos sub-momentos do processo
digestivo corporal, podemos transpor analogicamente a treinamento para o
cultivo da plena atenção nos diversos sub-momentos do “processo digestivo
mental”: quais e quantos alimentos mentais escolhemos ingerir pelas portas
sensoriais? Quantos são realmente nutrientes (saudáveis)? Como processamos a
digestão-assimilação desses alimentos mentais? Um monge sugeriu que assim como
fazemos a higiene do corpo no toalete, deveríamos ter um “toalete mental” onde
sentássemos e fizéssemos diariamente a higiene dos resíduos mentais.
Referências
Amabis, J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2. SP: Editora Moderna, 1998.
Analayo. Satipatthana. The Direct Path to
Realization. Cambridge :
Windhorse Publications, 2008.
Nyanatiloka. Buddhist Dictionary.
Manual of Buddhist Terms and Doctrines. Taiwan : The Coporate Body of the
Buddha Educational Foundation, 1970.
Shaker, Arthur. A travessia
buddhista da vida e da morte. Introdução
a uma Antropologia Espiritual. RJ: Gryphus, 2003.
U Silananda, Sayadaw.
The Four Foundations of Mindfulness. Boston :
Wisdom Publications, 2002.
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
4
a Plena Atenção e o sistema esquelético-muscular:
o movimento corporal
o movimento corporal
Arthur Shaker
A
sustentação dos tecidos e órgãos do corpo humano é possibilitada pelo
esqueleto, palavra que deriva do grego skeleton, dissecar, tornar seco.
É a parte mais dura do corpo. Protege os órgãos internos e fornece base de
apoio para a fixação muscular.
Já
nessas primeiras características, poderíamos perceber ângulos simbólicos
significativos: suporte, sustentação, apoio, proteção, eixo, arquitetura,
articulação base para a movimentação dinamizada e flexibilizada pelos músculos,
tendões, cartilagens. E não é sem razão que em muitos ritos funerários
tradicionais os ossos tinham especial significação: “o princípio indestrutível
da vida; o essencial; ressurreição, mas também mortalidade e o transitório;
supões-se frequentemente que a destruição dos ossos atrasaria a ressurreição”
(Cooper, 1982, p.23).
Como
a parte mais resistente do corpo, os ossos, ao simbolizar o aspecto
indestrutível da vida, eram preservados; por isso o corpo, para certas
tradições, deveria ser enterrado. Entre os Mbyá-Guarani, no corpo humano, o
esqueleto masculino é chamado yvyra’ikãgã, palavra sagrada usada pelos
deuses, que significa “ossos daquele que porta a vara-insígnia”. Yvyra’i é
a vara-insígnia, símbolo do poder do deus criador Ñande Ru e dos dirigentes. Na
extremidade de yvyra’i surgiu as chamas e a neblina das quais será
engendrado o Universo. Kãgã são os ossos (kã, kang).
Interessante: na língua pali, anga designa “membros”; anguli “dedo”.
Nexos entre certas línguas arcaicas? Tema de pesquisa. O corpo–ossos da mulher
é chamado takuaryva’i kãgã, pois a mulher usa uma vara de bambu (takua)
para dirigir as danças e os cantos. A conservação dos ossos se relaciona com a
ressurreição dos corpos, tema também presente nas tradições semíticas
(Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Entre os Guarani, o cadáver é enterrado
num cesto de taquaras; após a putrefação das carnes, o corpo é exumado, os
ossos cuidadosamente guardados num recipiente de madeira, e objeto de cantos e
recitações, na convicção da ressurreição dos esqueletos (Cadogan, 1959, p. 17,
51-52).
O
esqueleto também simboliza a Morte, “a sutil passagem do tempo e da vida. Com a
grande foice e a ampulheta, o esqueleto configura o Ceifador, cortando a vida;
pode também simbolizar a lua, as sombras, os deuses da morte e é especialmente
associado a Cronos/Saturno e ao deus maia da morte e do mundo subterrâneo. Na Alquimia
representa o estágio da putrefação na Obra, e é expresso pela cor negra”
(Cooper, 1982, p.153).
Já
em certas tradições, como no Budismo, a cremação e redução dos ossos à cinzas
denota a ênfase marcante na impermanência. Pouca importância se daria aos
restos mortais do corpo, embora em certas linhagens se costume guardar as
cinzas numa urna, sendo objeto de culto pelos parentes. Em muitos mosteiros
budistas, há um esqueleto humano para nos relembrar da verdade da
impermanência, escondida por detrás a aparência da pele.
A
pele, como revestimento, realiza várias funções: protege o corpo contra a
invasão de corpos estranhos, regula a temperatura corporal, sensorializando o
frio, o calor, a pressão; nela há terminações nervosas e órgãos sensoriais para
a percepção da viscosidade, dureza, aspereza, maciez, umidade; a camada externa
de células mortas (a quiratina), sempre descamando e se renovando, é um
revestimento bastante impermeável à perda de água e resistente ao atrito.
Por
um lado, a pele serve fisicamente de proteção; mas por outro, é objeto de
cobiça dos sentidos, mantendo a mente apegada às ilusões do mundo sensorial,
haja visto o quanto investimos em nossa aparência física, pois que muito de
nosso relacionamento com os outros e com nossa auto imagem é influenciado pela
percepção e valorização da imagem corporal. Não há nada de errado em cuidarmos
de nossa aparência física. Manter o corpo limpo e com aparência saudável é
normal. O problema é o apego. Subjacente ao apego à nossa aparência está a raiz
da ignorância: por detrás de nossa relação com nossa auto imagem,
principalmente a facial (“espelho, espelho meu”), está a noção de um “eu” que
se identifica com o corpo. E nesta identificação, o rosto ganha um lugar
marcante. Por isso os salões de beleza e centros de estética facial vivem
repletos. O “valor de mercado” de nossa aparência facial no mundo social é
grande: afeto e auto estima são negociados, em variados graus, através do modo
como vemos e somos vistos em nossas aparências. E num nível mais profundo, toda
vez que nos olhamos no espelho, lá está refletida essa noção: “Isto sou eu!”. E
esta noção de uma identidade “eu-ego”-corpo é uma delusão, uma construção
criada pela ignorância sobre a natureza insubstancial dos agregados
corpo-mente.
Desta
visão distorcida surge a lamentação: a boa aparência e a pele sensual trazem
ganhos de prazer; sem isto como vamos viver? É certo, se não trouxesse alguma
gratificação, não investiríamos tempo e energia nisso. Não há nada de errado no
experienciar certo prazer gerado pelo contato dos sentidos com os objetos
correspondentes: imagens (consciência visual), sons (consciência sonora),
aromas (consciência olfativa), gostos (consciência gustativa), tatos
(consciência corporal ou tátil, através da pele) e pensamentos agradáveis
(consciência mental). A questão é: o quanto dependemos disto? Que grau de
clareza temos sobre essas dependências? Quando experimentamos sensações
desprazerosas, perdas ou ausências desses ganhos sensoriais, o que acontece com
a nossa mente? Permanecemos equânimes, emocional e mentalmente equilibrados? A
verdade é que quase sempre sofremos: irritação, raiva, desapontamento,
tristeza, frustração, queda na auto estima, depressão.
É
verdade que não vamos abandonar tão facilmente o apego ao sensorial e à nossa
auto imagem. Investimos muito nisto até agora, o ego se identifica com esses
desejos sensoriais, criando raízes profundas de apego na mente. Ma podemos
gradualmente mudar nossa compreensão. Começando pela percepção e reflexão sobre
o quanto sofremos com as inevitáveis perdas de nossa auto imagem corporal:
lesões, cicatrizes, rugas, embranquecimento dos cabelos, envelhecimento.
Podemos
retardar, mas não impedir esses processos: são inevitáveis porque tudo que é
condicionado é impermanente (anicca). Compreendendo e aceitando esta lei
fundamental, podemos gradualmente ir substituindo essa dependência para valores
mais profundos, como a sabedoria, a compaixão, o afeto sem expectativa de
retorno. Na Meditação da Plena Atenção treinamos o cultivo da visão clara da
realidade (vipassana), percebendo e aceitando a verdade da
impermanência.
Aplicamos
para nossa aparência o mesmo treinamento cultivado para com a respiração:
reconhecer, aceitar, investigar, não se identificar. No Satipatthana sutta, no
Fundamento da Plena Atenção no corpo (kayanupassana), Buddha descreve
esse treinamento no tópico sobre a contemplação das partes do corpo, dividido
em 32 partes, das quais 12 se referem às partes moles do corpo e 20 às partes
duras.
“Novamente, bhikkhus, um bhikkhu reflete sobre esse
mesmo corpo de baixo para cima e partir da sola dos pés, e de cima para baixo a
partir do topo da cabeça, limitado pela pele e repleto de diversas impurezas
assim:
Existe neste corpo:
Cabelo,
pêlo do corpo, unhas, dentes e pele;
Carne,
tendões, ossos, medula e rins;
Coração,
fígado, diafragma, baço e pulmões;
Estômago,
intestino, peritônio, fezes e cérebro;
Bile,
catarro, pus, sangue, suor e gordura;
Lágrima,
linfa, saliva, muco, gordura das juntas e urina”.
(U
Silananda, 2002, p. 178)
As
cinco primeiras são as que vemos mais imediatamente: cabelo, pelo no corpo,
unhas, dentes e pele. Com plena atenção, visualizando a forma, o tamanho, a cor
e a localização de cada parte no corpo, contemplamos a verdade de sua impermanência,
cultivando gradualmente o desapego, a não-identificação. Certa vez, após uma
discussão entre um jovem casal, a mulher retirou-se para a casa dos pais, como
era de costume na Índia. Nesse caminho, a bela esposa viu um monge. E
prosseguiu. Pouco tempo depois, o jovem esposo, procurando-a, viu o mesmo monge
e lhe perguntou se ele havia visto uma bela jovem por ali passando. Ao que o
monge respondeu: vi um esqueleto passando.
Uma
interpretação equivocada sobre a contemplação do corpo é a de que desapego
significaria aversão ao corpo. Longe disso, aversão é uma forma de ignorância
Cuidamos do corpo para mantê-lo saudável, e com o corpo saudável, cultivarmos a
sabedoria da mente, que nos liberta da ignorância sobre a verdade da
impermanência. Não é o corpo ou a impermanência que nos trazem sofrimento, mas
sim o apego ao que é impermanente.
Retornando
à reflexão sobre o esqueleto ósseo. O esqueleto ósseo faz a sustentação do
corpo. E duas outras funções: reserva de minerais e formação das células do
sangue:
“Os
ossos contêm reserva de minerais, principalmente de cálcio e fósforo. Esses
elementos químicos são fundamentais ao funcionamento das células e devem estar
presentes no sangue. Quando o nível de cálcio diminui no sangue, ais de cálcio
são mobilizados dos ossos para suprir a deficiência.
No
interior de muitos ossos há cavidades preenchidas por um tecido macio, a
medula óssea vermelha, onde são produzidas as células do sangue: hemácias,
leucócitos e plaquetas. Determinados ossos possuem medula amarela,
conhecida popularmente como “tutano”, constituída principalmente por células
adiposas, que acumulam gorduras como material de reserva”. (Amabis &
Martho, p. 424)
Aqui
vamos abrir um ponto importante: como a Meditação da Pena Atenção, enquanto cultivo
de uma mente equilibrada, pode influenciar positivamente na regulação
harmoniosa dessas funções da reserva-mobilização desses minerais e na formação
das células do sangue pela medula óssea vermelha e medula amarela? Novas
pesquisas poderão trazer dados esclarecedores.
A
sustentação do corpo não é apenas uma questão estática, mas também dinâmica:
nossos movimentos. O esqueleto ósseo funciona conjuntamente com o sistema
muscular, são dimensões interdependentes. Formado pelos músculos, constituídos
de tecidos musculares, possibilitam a contração-expansão para o movimento do
corpo, para o andar, correr, dobrar, respirar e tantas outras ações. A questão
da dinâmica corporal é vasta e complexa: envolve aspectos psicofísicos, com a
expansão espacial e mental, bem como aspectos funcionais básicos, como a
processo de alimentação-excreção, a respiração, o bombeamento do sangue pelos
vasos sanguíneos.
Tudo no corpo pulsa, se move, contraindo e
expandindo. Ossos, músculos, articulações, cartilagens, ligamentos, tendões:
uma arquitetura dinâmica, buscando reequilíbrios, consumindo, expelindo,
contatando. Na Meditação da Pena Atenção, treinamos a mente a perceber e
investigar as posturas corporais. Iniciamos pelas quatro posturas básicas:
sentado em pé parado, andando e deitado:
“Novamente, bhikkhus, quando caminhando, um bhikkhu
reconhece: “estou caminhando”; quando em pé, reconhece: “estou em pé”; quando
sentado, reconhece:
“estou sentado”; quando deitado, reconhece: “estou
deitado”. Qualquer que seja a postura de seu corpo, ele a reconhece”. (U Silananda, 2002, p. 177)
Qualquer
que seja a postura corporal, pressupõe algo que é anterior à dimensão física da
ação: é a intenção (cetana), um fator mental presente em todos os
momentos mentais. Da raiz páli citi, significa cognição, conhecimento.
Todas nossas ações do corpo, da fala e da mente são precedidas por uma intenção
volitiva, e o seu conteúdo determinará a qualidade saudável ou não saudável da
ação. Se a intenção é de cobiça, ódio ou ignorância, a ação será não saudável;
se a intenção for de não cobiça (generosidade), não ódio (amor irradiante) e
não ignorância (sabedoria), a ação será saudável.
E
aqui entra uma noção muito importante dos ensinamentos budistas: as ações (karma,
da raiz sânscrita KR, fazer) geram frutos (vipaka), experienciados mais
cedo ou mais tarde como estados mentais, saudáveis (kusala vipaka) ou
aflitivos (akusala vipaka), a depender da intenção de cada ação do
corpo, fala e mente. Por isso, a intenção-volição é um fator bastante importante
no processo de geração dos karmas. O tema do karma (ou kamma, em páli) é vasto
e complexo, por ora limitamos a estas colocações primeiras.
A
intenção, partindo da mente, ativa o sistema nervoso central, que por meio de
impulsos eletroquímicos, envia comandos aos nervos e estes aos músculos, e
ocorre o ato de mover. Segundo as Neurociências, as ações corporais podem ser
preparadas algumas de firma consciente, outras de forma inconsciente, sem nossa
atenção:
“Tanto
ações conscientes como inconscientes envolvem o córtex motor primário, que
envia sinais de ‘ação’ que contraem os músculos (via medula espinhal e nervos
motores). No entanto, enquanto movimentos inconscientes são planejados pelas
áreas do lobo parietal, ações conscientes envolvem zonas cerebrais frontais
‘superiores’, incluindo os córtices motor suplementar e pré-motor. Eles também
podem envolver as regiões pré-frontais, como o córtex pré-frontal dorsolateral,
onde as ações são avaliadas de forma consciente. Pode se perceber os atos conscientes
como resultado de uma decisão. Entretanto, áreas inconscientes do cérebro
planejam e iniciam movimentos antes de resolvermos conscientemente faze-los. A
“decisão”, portanto, pode ser apenas o reconhecimento consciente do que a mente
inconsciente planeja executar” (O livro do cérebro, vol. 2, p.123).
Percepção
sensorial, planejamento, decisão, intenção de agir, envio de comandos e ação
envolvem processos complexos, aqui colocados de forma pontual e simplificada.
Participa desse processo a área cerebral do cerebelo, localizado no Encéfalo,
no sistema nervoso central (SNC):
“Para
que o corpo execute um movimento complexo, a seqüência e a duração de cada um
de seus elementos têm de ser coordenadas com precisão. Isso é controlado pelo
cerebelo, por meio de um circuito que o conecta ao córtex motor. Ele também
modula os sinais que o córtex motor envia subsequentemente aos neurônios
motores. O cerebelo garante que quando um grupo de músculos inicia um
movimento, o grupo oposto aja como um freio, para que a parte do corpo em
questão atinja a meta com precisão”. (O livro do cérebro, vol. 2, p.123).
Através
dos impulsos transmitidos pela cadeia dos neurônios, o comando da ação ativa os
músculos. Infiltradas nas fibras musculares esqueléticas (constituída de tecido
muscular estriado com proteínas actina e miosina responsáveis pela contração
muscular), as terminações nervosas, ao serem disparadas, liberam um
neurotransmissor denominado acetilcolina. Através da fenda sináptica conecta o
nervo ao músculo, e, sob o controle da vontade, a contração muscular se
realiza.
Nesse
processo, o cálcio participa de modo significativo: o impulso nervoso, pelos
nervos, estimula a fibra muscular, que despolariza, liberando os íons cálcio
armazenados no citoplasma, que desbloqueiam os sítios de ligação da actina, que
se liga à miosina, e com isso se dá a contração muscular. Quando o estímulo
cessa, o cálcio é rebombeado de vota ao retículo sarcoplasmático (espécie de
bolsa na fibra muscular) e cessa a contração.
Um
fator fundamental nesse processo é a energia, necessária neste e em todo
processo vital. A energia é suprida por moléculas chamadas ATP, produzidas na
respiração celular. Sua falta leva ao enrijecimento celular. Mas a ATP supre
apenas poucos segundos de atividade muscular. Complementar a ela, a principal
reserva energética é a fosfocreatina. Os estoques de ATP e fosfocreatina,
necessários ao trabalho muscular, são repostos pelas células musculares através
da respiração celular, que usa o glicogênio como combustível (Amabis &
Martho, p.434-5).
Neste
quadro anatômico-fisiológico simplificado, como a Meditação da Plena Atenção
pode contribuir para uma saúde mais equilibrada? Com plena atenção, treinamos a
mente a se concentrar, perceber e investigar cada pequeno trecho do movimento
corporal. Pode parecer óbvio que estamos sempre conscientes e atentos ao corpo
quando estamos sentados, caminhando, parados ou deitados. Mas raramente
estamos. Na maioria das vezes, nossa mente está imersa pensamentos distrativos,
enquanto o corpo se move. Daí pisamos num buraco e torcemos o pé, caímos da
escada, e sofremos e reclamamos do buraco e dos defeitos da escada.
Com
plena atenção, nos aproximamos gradualmente da percepção da intenção de nossos
movimentos, nos perguntando: Qual a intenção deste movimento? É necessário?
Traz felicidade ou mais sofrimento? Desenvolvemos a regulação do uso de nossas
energias internas, a contrapartida interna de uma ecologia saudável, tão
necessária em nossos dias atuais; ao invés de sermos arrastados pela ideologia
nociva da exploração desregrada das fontes de energia (em nome do “progresso
material a todo custo”), não seria mais saudável o cultivo da economia de
energia, simplificando a vida, usando nossas energias de modo sábio, com ênfase
no desenvolvimento espiritual, na superação do sofrimento? A cobiça pela
energia (interna e externa) tem subjacente a cobiça por poderes ilusórios e
gera mais cedo ou mais tarde conseqüências dolorosas.
Junto
ao uso sábio de nossos esforços e energias, cultivamos uma resignificação da
consciência de nossos movimentos. O que significa estarmos conscientes do
movimento? Significa plena atenção cada vez mais próxima da intenção de sentar
(e se manter sentado, na postura meditativa), de caminhar, de ficar em pé
parado ou deitar. Plena atenção em cada micro momento do ato de se mover, plena
atenção em cada respiração (participando conscientemente da respiração celular
que possibilita produção das moléculas ATP de energia). Plena atenção das
sensações que surgem no corpo à todo momento. Plena atenção nos pensamentos
distrativos, plena atenção no surgir e desaparecer de cada um desses fenômenos
do corpo e da mente: isto é investigar com atenção. Para quê?
Para
o cultivo da sabedoria, saúde, desapego. Para o cultivo do equilíbrio dos
nossos processamentos psicofísicos (intenção mental, ativação cerebral via
córtex, cerebelo, medula, ossos e músculos, respiração, circulação sanguínea).
Plenamente atentos no momento presente, neste corpo. Vitalizar no movimento
corporal. Se a energia é importante para a saúde do corpo e da mente, então
cultivemos o hábito fundamental do exercício físico. Tônus vital. Corpo
desvitalizado, alimentado impropriamente, esgotado pelo estresse de uma vida
agitada, sedentária, cheia de desejos ignorantes: sofrimento se aprofundando.
Isto
é o significado mais profundo dos movimentos corporais treinados, por exemplo,
no Tai Chi. Na Yoga, são os asanas (posturas corporais). A palavra asana
provém da raiz AS, que significa estar-existir no presente. Praticando
as posturas corporais desenvolvemos várias dimensões de saúde: massagem
externa, exercício dos órgãos internos, fortalecimento dos músculos através de
seus alongamentos e contrações (preservando sua elasticidade), manutenção das
glândulas endócrinas (Sri Ananda, 1989, p.52).
Há
uma outra dimensão mais sutil de extrema importância: na meditação, ao
permanecermos plenamente presentes numa postura corporal ereta, imóvel e
confortável, energizamos profundamente o corpo e a mente, e treinamos a mente a
perceber e não reagir impulsiva e neuroticamente às aversões e irritações que
produzem agitação mental. Por que temos tanta dificuldade de nos mantermos
corporalmente quietos? Porque estamos sempre, por ignorância e aversão, fugindo
da sensação do desconforto físico. Fugimos da dor e corremos neuroticamente
atrás dos prazeres e confortos porque temos medo do sofrimento. Mas esse hábito
é fruto da ignorância sobre um fato da realidade: o corpo experimenta dores,
podemos mitigá-las, mas não banirmos as dores totalmente. Tendo nascido no
corpo, experimentamos a lei da impermanência do corpo, com suas dores. Mas dor
não é sinônimo de sofrimento. Podemos ter um sem ter o outro. Uma fórmula
bastante útil, apresentada pelo monge budista Bhante Yogavacara Rahula, diz: S=
RxD. Sofrimento é igual à reatividade (resistência) vezes dor. Podemos ter
dor igual a 5, mas se a reatividade é 100, teremos 500 de sofrimento. Mas se a
dor for 100, e a reatividade é zero, quanto teremos de sofrimento? Zero.
Trabalhar
com o corpo, compreender e aceitar seus limites, usá-lo para a libertação da
mente, é o caminho da sabedoria. Portanto, treinar o corpo e a mente a estar
presente dentro das posturas, acalmando e investigando as tendências reativas
da mente amplia a nossa tolerância aos desconfortos e dores e conduz a grandes
benefícios da saúde.
Treinando
a plena atenção no corpo presente, adentramos em níveis mais profundos da mente
presente. Porém, atenção ao apego, à delusão. Devemos investigar, com sabedoria
e desapego, numa progressiva visão clara da verdade da impermanência dos
fenômenos do corpo e da mente. Nas palavras do Buddha:
Novamente, bhikkhus, quando
caminhando, um bhikkhu reconhece: “estou caminhando”; quando em pé, reconhece:
“estou em pé”; quando sentado, reconhece: “estou sentado”; quando deitado,
reconhece: “estou deitado”. Qualquer que seja a postura de seu corpo, ele a
reconhece.
Assim ele permanece contemplando o
corpo no corpo internamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo
externamente, ou permanece contemplando o corpo no corpo tanto internamente
como externamente.
Permanece contemplando no corpo os
seus fatores de aparecimento, ou permanece contemplando no corpo os seus
fatores de dissolução, ou permanece contemplando no corpo tanto os fatores de
aparecimento como os de dissolução.
A plena atenção de que “existe apenas
o corpo” se estabelece. A plena atenção se estabelece apenas com a abrangência
necessária para se aprofundar o conhecimento e a própria plena atenção.
Permanece despreendido de tudo que diz
respeito ao apego e à visão errada. Não se apega a nada do mundo dos cinco
agregados do apego.
Assim é como um bhikkhu permanece
contemplando o corpo no corpo.
(U Silananda, 2002, pág.177).
O
termo bhikkhu, embora geralmente se refira aos monges, aqui neste
contexto significa todo aquele seriamente envolvido com a prática meditativa.
Através do treinamento da meditação formal, irradiamos a atitude mental
contemplativa da clara compreensão para todas as posturas corporais em nossa
vida cotidiana, e cultivamos o progressivo desapego à visão errada e aos cinco
agregados corpo-mente. Isto é o caminho da libertação do sofrimento.
Referências
Amabis,
J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia dos organismos. Vol. 2.
SP: Editora Moderna, 1998.
Cadogan,
Léon. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá. São
Paulo: Boletim da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, FFLCCHUSP, no. 227, 1959 (Antropologia no. 5).
Cooper, J.C. An illustrated encyclopaedia of
traditional symbols. London:
Thames and Hudson, 1982.
O Livro do Cérebro. Vol 2. SP: Duetto, 2009.
Sri Ananda. The
Complete Book of Yoga. Harmony of Body&Mind. New
Delhi: Orient Paperbacks, 1989.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.
U Silananda, Sayadaw. The Four Foundations of Mindfulness. Boston: Wisdom Publications, 2002.
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências e Saúde
3
a Plena Atenção e o sistema
cardio-respiratório
Arthur Shaker
Tomaremos como ponto de partida,
nestes capítulos subseqüentes, e de modo resumido e simples, as bases
fisiológicas apresentadas pelo modelo da ciência médica moderna. A motivação é
oferecer ao leitor (e para uma revisão a mim mesmo), um acesso introdutório ao
conhecimento fisiológico do corpo humano, e sobre essa base, examinarmos de um
ponto de vista prático como a Meditação da Plena Atenção pode agir no benefício
do corpo (em suas múltiplas funções) e da mente.
1.
Fisiologia da respiração
A vida das células depende fundamentalmente de energia.
Uma de suas fontes é o oxigênio, obtido através da respiração celular. Podemos
suportar por certo tempo a falta de comida, água e sono, mas sem oxigênio não
resistiríamos por mais de alguns
pouquíssimos minutos. Uma antiga história indiana conta que, em uma discussão
dos sentidos sobre qual seria a mais importante, casa sentido se retirou por
certo tempo do corpo, e o corpo suportou. Tão logo a respiração se afastou, os
órgãos e sentidos entraram em colapso, pedindo que ela retornasse imediatamente.
Ocorrendo no interior de organelas citoplasmáticas
(mitocôndrias), a respiração tem a função de suprir oxigênio (O2) para os
tecidos e remover o gás carbônico (CO2). No metabolismo energético das células
com as moléculas de gás oxigênio, a combustão produz energia térmica e energia
trabalho, água (H2O) e gás carbônico. O transporte do oxigênio pelo corpo é
ampliado pela existência de pigmentos respiratórios (hemoglobina e hemocianina)
no sangue, que se combinam com o oxigênio. A hemoglobina é uma proteína, que
contém Ferro, e ao se combinar com o O2 produz a oxiemiglobina [Hb(O2)4]; a
hemocianina é uma proteína, que contém Cobre, e encontrada em moluscos e
artrópodos. Caso não houvesse no sangue humano a hemoglobina, somente 2% de O2
necessário ao corpo seria transportado pelo sangue humano (Amabis&Martho,
1998, p.381).
Neste breve introdução, podemos antever a
interdependência entre o processo respiratório e o circulatório sanguíneo. Sob
o ângulo da respiração externa, o ar é captado do ambiente cósmico, e através
da hematose (processo de troca entre o sangue e o ar) nos alvéolos, o O2 passa
do alvéolo ao sangue, combinando com os glóbulos, e o gás carbônico, após
deixar o sangue e entrar nos alvéolos, sai para a atmosfera; ocorre, portanto,
processos inversos de entrada de O2 e saída de CO2.
Esses processos são possíveis devido ao fenômeno de
difusão, graças às diferenças de concentração (pressões parciais). Qual um
fole, o aparelho respiratório compõe-se do nariz, faringe, laringe, traquéia, brônquios,
bronquíolos e pulmões. Estes possuem importante qualidade da elasticidade que
lhes permitem as distensões e contrações, através de processos musculares no
diafragma e intercostais, e com isso a distribuição do ar em sua captação e
envio, bem como a adaptação da perfusão sanguínea dos capilares dos alvéolos
com relação ao processo de ventilação dos pulmões. Filtração, umedecimento e
aquecimento do ar nas fossas nasais fazem da respiração nasal a via mais
adequada.
Igualmente importante como o processo nutritivo do O2, é
a eliminação do tóxico gás carbônico: cerca de 5-7% do CO2 liberado pelos
tecidos dissolvem-se diretamente no plasma sanguíneo e são transportados aos
pulmões para eliminação. Outros 23% se associam à hemoglobina e outras proteínas
do sangue, sendo por elas transportados (...) 70% penetram as hemácias, se
transformando em ácido carbônico (H2CO3) e depois se dissociam nos íons H+ (que
se associam à hemoglobina e outras proteínas) e bicarbonato (que se difundem
para o plasma sanguíneo), auxiliando na manutenção da acidez do sangue (...) Já
nos alvéolos pulmonares o processo é inverso: os íons H+ se combinam ao
bicarbonato, reconstituindo o ácido carbônico, que pela ação de um enzima
(anidrase carbônica) é decomposto em gás carbônico e água. (Amabis&Martho,
1998, p.382-3).
Esses intercâmbios e produções energéticas aparecem sob
perspectivas com certas diferenças quando vistos do ângulo das medicinas
tradicionais. Segundo a fisiologia da medicina moderna, é o oxigênio e seu
processo de combustão com os alimentos que libera energia, que se armazena em moléculas chamadas ATP
(trifosfato de adenosina), que degradados posteriormente em moléculas ADP
(difosfato de adenosina) e fosfatos, fornecem a energia para os processos
celulares. (Amabis&Martho, 1998, p.376).
Na perspectiva da Yoga hindu, a sustentação da vida é
dada por uma força vital chamada prana
(ou chi, na medicina tradicional
chinesa, e que embasa práticas corporais como o Tai Chi e o Qi Cong). Qual uma
eletricidade cósmica invisível, pervasiva e sustentadora de todas as formas
vivas, a força vital cósmica (referida como “Plasma cósmico” na Yoga) “não é
oxigênio, hidrogênio ou nitrogênio, mas é o que dá vida a estes elementos
essenciais, que mantém nossas células vivas (...) o corpo recebe a maior parte
deste prana através do processo
respiratório (...) Quantidades menores provém também através da comida e água,
e circula por canais sutis (nadis),
que permitem que as força vital chegue a todas as áreas e células do corpo
(...) Esses nadis passam pelo maior nervo pléxico (na coluna). Estes nervos
pléxicos estão associados a centros de energia chamados chakras, os quais têm
características emocionais e psíquicas associadas a ele. (Yogavacara Rahula,
2005, p. 7-8)
Posto isto, e embora não desconsiderando as diferenças de
perspectiva e conceitos sobre a respiração, nosso foco é eminentemente prático:
além do sustento do corpo físico, quais outras dimensões estão envolvidas na
respiração? Como a compreensão dessas dimensões enriqueceria o diálogo entre as
Neurociências (principalmente no campo das atividades do cérebro) e a Meditação
da Plena Atenção, para práticas de incremento da saúde corpo-sistema
nervoso-mente?
Uma primeira dimensão é a questão do volume de O2. Em
média, um homem jovem aspira e expira cerca de meio litro de ar a cada
movimento respiratório, sendo o valor em média um pouco menor para as mulheres;
por dia 10 mil litros de ar entram e saem dos pulmões, que absorvem cerca de
450-500 l de O2 e liberam 450-500 l
de CO2.
“O volume máximo do ar que pode ser inalado e exalado em
uma respiração forçada é denominado capacidade
vital, algo em torno de 4 a
5 l , para um homem jovem. Os pulmões, no
entanto, contêm mais ar que sua capacidade vital, pos é impossível expirar a
totalidade do ar contido nos alvéolos. Mesmo quando se foca ao máximo a
expiração, ainda resta cerca de 1,5
l de ar nos
pulmões; esse é o ar residual”.
(Amabis&Martho,
1998, p.386).
Cerca de79% do ar inspirado é nitrogênio (a mesma
porcentagem é expirada, pois embora necessário, o organismo só aproveita desse
elemento pelo que recebe dos alimentos protêicos, através do tubo digestivo);
20.9% é O2 (14% no ar expirado, a diferença combina-se com a hemoglobina dos
glóbulos vermelhos); 0,03% de CO2 (5,6% no ar expirado, provindo, pelo sangue,
da combustão nos tecidos).
A quantidade e qualidade do O2 que inspiramos, incluindo
a oxigenação no cérebro, condiciona a qualidade da vida do nosso corpo. Devido
à poluição urbana e aos nossos hábitos de respiração pobre e superficial,
muitos distúrbios físicos e mentais decorrem. Em dois importantes sutras
(ensinamentos legados pelo Buddha), que orientam a prática da Meditação da
Plena Atenção (Vipassana, a meditação
do insight), a respiração aparece como um dos focos estratégicos de
treinamento. Como ampliar nossa capacidade e qualidade respiratória?
Exercícios físicos são fundamentais, ainda mais
considerando-se a forte tendência sedentária de nossa vida na sociedade
moderna. Posturas curvadas, comprimindo o tórax e fechando os pulmões,
estresse, estados mentais aflitivos e confusos levam as pessoas a terem uma
respiração curta, superficial e acelerada. Práticas da respiração yóguica (os pranayamas), do T’ai Chi, do Qi Gong, da
natação ou de outras formas aeróbicas visam, por um lado, aumentar a capacidade
respiratória. Precisamos reaprender a respirar nas três partes dos pulmões
(respiração completa chamada na Yoga de vibhaga
pranayama):
“Os pulmões têm três lóbulos principais: o inferior ou
lóbulos abdominais, o médio ou lóbulos intracostais e o superior ou lóbulos
claviculares. Cada um desses lóbulos afeta o fluxo da força prânica vital para
uma parte específica do corpo. O ar nos lóbulos inferiores afeta o fluxo do
prana para a pélvis, quadris e pernas; a respiração no lóbulo médio afeta toda
a parte do tronco do corpo e os órgãos vitais ali alocados; a respiração no
lóbulo superior envia para o pescoço, cabeça/cérebro e os braços. Se nós não
respirarmos suficientemente nestes três lóbulos, estas partes corporais correspondentes
não recebem força vital suficiente para um funcionamento conveniente. Como
resultados, muitos problemas associados podem surgir.
É fato que a maioria das pessoas, em condições normais,
respira usando apenas um décimo da capacidade pulmonar; usualmente apenas uma
pequena porção nos lóbulos inferiores e médios. Raramente o ar chega até os
lóbulos superiores, a não ser que se esteja fazendo um forte esforço. (...) Por
causa da respiração curta e superficial, o corpo precisa respirar rapidamente,
de modo a trazer mais oxigênio para manter as células vivas. De um ponto de
vista da yoga, isto não é saudável. A respiração saudável é a lenta, profunda e
completa, a qual irriga uniformemente todo o corpo (incluindo o cérebro) com
ondas suaves de eletricidade cósmica. O ritmo ideal de respiração é: quatro a
oito segundos para inspirar nos três lóbulos, prender a respiração por três
segundos (para permitir a completa absorção do oxigênio no sangue), permitindo
a expiração entre quatro e oito segundos, e pausando entre um e dois segundos
antes de inspirar novamente.
Treinando-se a respirar desse modo, mesmo que por três ou
cinco minutos, permite trazer mais oxigênio e força vital, e melhor
distribuição pelo corpo de uma maneira mais relaxada e branda. Como resultado,
o ritmo da respiração e do coração diminui. Esta é uma das principais razões
pela qual os yogis praticam a respiração pranayama
– para regular, purificar e diminuir a respiração, de modo a facilitar a
prática da meditação profunda. Respirar nesta maneira regular também ajuda,
enquanto uma técnica inicial de concentração, a trazer a atenção para dentro,
tirando a mente do mundo exterior e dos nossos pensamentos. (Bhante Rahula , 2005, p.
9-10)
Existe uma conexão íntima entre a respiração e os estados
mentais. Respirações aceleradas e superficiais tendem a produzir estados
mentais aflitivos, angustiantes, e vice versa. Angústia provém de angustus (estreitamento),
angere (apertar), e tende a ser
experienciado na região da garganta e epigástrica (região superior do ventre)
como um aperto-sufôco. O problema é que raramente percebemos essas
manifestações de sofrimento físico em nosso próprio corpo. O corpo envia
sinais, mas estamos cegos e surdos, porque a mente está quase sempre
desconectada do corpo, dispersa em pensamentos e focada nos objetos exteriores.
Por isso, para a reversão dessa tendência, o desenvolvimento da qualidade
mental da Plena Atenção (sati) é
importante. E a respiração é um dos valiosos focos do treinamento. Isso também
porque a respiração é um fenômeno universal, que independe de ideologia,
crenças religiosas ou laicas. Todos respiramos, ela está sempre ali presente, é
sensorialmente simples de contatarmos. É a base da vida do corpo, do cérebro e
da mente, e está intimamente vinculada aos estados mentais, como um censor
refinado.
A própria ampliação da capacidade respiratória se
beneficia do treinamento da Plena Atenção, pois a Plena Atenção ajuda o cérebro
a fixar pouco a pouco os novos padrões respiratórios desenvolvidos nos treinamentos
aeróbicos. Isto nos remete a um outro aspecto importante: a determinação dos
padrões cerebrais, tanto em termos da capacidade pulmonar quanto no importante
aspecto do ritmo respiratório. Esquecemos de viver segundo ritmos saudáveis,
incluindo os ritmos respiratórios saudáveis. Muita oxigenação, mas em ritmos
desarmoniosos pode ser tão prejudicial quanto baixa oxigenação. A modulação do
ritmo respiratório também é condicionada e viabilizada pelo treinamento da
Plena Atenção.
É verdade que, por um lado, a inervação respiratória é
regida por impulsos nervosos emanados do sistema nervoso, e, segundo os livros
de Fisiologia, esse processo independeria da nossa vontade:
“O centro nervoso que controla a respiração localiza-se
na medula espinal. Em condições normais, o centro respiratório medular produz,
a cada 5 segundos, um impulso nervoso que estimula a contração da musculatura
torácica e do diafragma, fazendo-nos inspirar.
Quando nos exercitamos, as células musculares passam a
respirar mais, produzindo assim, maior quantidade de energia apara a contração
dos músculos. O aumento da respiração celular leva à liberação de maiores
quantidades de gás carbônico, aumentando o nível de acidez do sangue. A acidez
estimula o centro respiratório medular, levando ao aumento dos movimentos
respiratórios.
Se houver diminuição pronunciada da concentração de gás
oxigênio no sangue, o ritmo respiratório também é aumentado. A diminuição no
teor de gás oxigênio é detectada por receptores químicos localizados nas paredes
da aorta e da artéria carótida. Esses receptores enviam, então, mensagens ao
centro respiratório medular para que este aumente o ritmo respiratório”.
(Amabis&Martho, 1998, p.386).
Por outro lado, no Sistema Nervoso Periférico Autônomo, o
sistema simpático e parassimpático participam nesse processo de mobilizar
energias e atividades relaxantes, o que pode indicar que o treinamento da Plena
Atenção pode recondicionar, até certo ponto, pela vontade consciente, um novo
padrão respiratório mais saudável. E, também, pela Plena Atenção, estamos mais
próximos dos sinais da respiração, podendo acalmá-la e retrazê-la a níveis e
ritmos harmônicos e serenos. Podemos experienciar o quanto o relaxamento do
corpo através da respiração consciente
traz benefícios à saúde do corpo, do cérebro e da mente.
Respiração
consciente. Significa cultivar a qualidade mental da Plena Atenção focada
na respiração, que por sua vez significa cultivar a vontade-decisão (chanda), outra importante qualidade da
mente. Como na maior parte do tempo nossa mente está dispersa, emaranhada nos
objetos exteriores ou pensamentos distrativos, muita energia é desperdiçada
nesses estados distrativos.
Um dos temas atualmente em foco é o dos recursos de
energia planetária. O represamento dos rios para as hidroelétricas, a
exploração do petróleo, as usinas nucleares trazem muitas questões sobre o
equilíbrio da terra. Pensamos soluções de energias sustentáveis, mas quase
sempre no princípio de expansão da exploração das fontes energéticas para o desenvolvimento
da produção material, mas por razões de cobiça econômica, pouco se implementa
na substituição por energias renováveis menos deletérias, como a energia solar
e eólea. E, raramente, se reflete sobre a redução da dependência às energias
materiais.
Isto tem significações importantes sobre a ecologia em
seu duplo aspecto: a externa (o crescente apego da mente aos bens de consumo
que tornam a vida mais confortável, esquecendo que isto tem um peço sobre a
ecologia do planeta) e nossa ecologia interna. Este apego, além de nos tornar
crescentemente dependente e aumentar esse apego-cobiça na mente, reforça o
dispêndio infrutífero de nossa energia mental. Ao invés de buscarmos nossa
fonte de riqueza e felicidade em nosso íntimo mental, moderando nossa
cobiça-dependência aos recursos externos, projetamos e corremos atrás dos
objetos externos asa custas de boa parte de nossa energia mental, e, o que é
trágico, numa busca que amplia as conseqüências danosas para o corpo e a mente,
com o estresse e outros sintomas de sofrimento. Pouco se fala sobre a
necessidade de contenção, no caso, a contenção dos sentidos e suas voracidades
insaciáveis. Compreender essa dinâmica é base para o redirecionamento da
vontade. Isso nos traz de volta ao tema da respiração consciente.
Assim se inicia um dos importantes ensinamentos do Buddha
sobre o treinamento da plena atenção, no Maha
Satipathana sutra, os Fundamentos da Plena Atenção:
“Assim eu ouvi:
Certa ocasião, o abençoado estava vivendo
entre os kurus em um vilarejo chamado Kammasadamma. Lá o Abençoado se dirigiu
aos bhikkhus dessa maneira: “Bhikkhus”, e os bhikkhus responderam: “Venerável”. Então, o Abençoado falou:
Bhikkhus, este é o único
caminho para a purificação dos seres, para superar a tristeza e a lamentação,
para o desaparecimento da dor e do pesar, para alcançar o Nobre Caminho, para a
realização do nirvana, isto é, os Quatro Fundamentos da Plena Atenção.
Quais são eles?
Neste ensinamento, bhikkhus, um bhikkhu
permanece contemplando o corpo no corpo de forma ardente, atento e com clara
compreensão, removendo a ganância e o pesar pelo mundo. Ele permanece
contemplando a sensação nas sensações de forma ardente, atento e com clara
compreensão, removendo a ganância e o pesar pelo mundo. Ele permanece contemplando
a consciência na consciência de forma ardente, atento e com clara compreensão,
removendo a ganância e o pesar pelo mundo. Ele permanece contemplando o Dhamma
nos objetos mentais de forma ardente, atento e com clara compreensão, removendo
a ganância e o pesar pelo mundo.” (U Silananda, 2002, p. 175-6)
O sutra se abre apresentando a
sintomática a ser superada (a tristeza e a lamentação, para o desaparecimento
da dor e do pesar, para alcançar o Nobre Caminho), e o treinamento para a
superação, através da plena atenção aos quatro fundamentos-focos da prática: o
corpo, as sensações, a consciência e os objetos mentais. Ou seja, os cinco
agregados, que compõem nossa experiência humana existencial. Embora o termo
bhikkhu se refira usualmente aos monges, nesse contexto se aplica a todo aquele
que busca a superação do sofrimento pela transformação das tendências mentais
não-saudáveis.
Começando
com a contemplação do corpo no corpo.
Contemplação
significa ver/investigar a natureza do corpo como ele é, pois tendemos a ver o
corpo com uma percepção distorcida: como algo sempre prazeroso, como algo que
nos pertence, como algo que deveria ser permanente, à serviço de nosso confuso
e imaginário modelo de felicidade.
O
treinamento se inicia com o foco da plena atenção na respiração, após ter
colocado o corpo na postura sentada ereta. A postura ereta tem qualidades
psicofísicas importantes para o treinamento da plena atenção, pois ela é a que permite um melhor fluxo
energético e respiratório:
“Bhikkhus,
como um bhikkhu permanece
contemplando o corpo no corpo? Aqui, um bhikkhu
dirige-se a uma floresta, ao pé de uma árvore ou a um local isolado, senta-se
com as pernas cruzadas, mantém o corpo ereto e dirige a plena atenção na
direção do objeto de meditação. Sempre atento, inspira; sempre atento, expira.
Ao fazer uma inspiração longa, reconhece:
“faço uma inspiração longa”; ao fazer uma expiração longa, reconhece: “faço uma
expiração longa”.
Ao fazer uma inspiração curta, reconhece:
“faço uma inspiração curta”; ao fazer uma expiração curta, reconhece: “faço uma
expiração curta”.
Treina a si mesmo: “inspiro
vivenciando todo o corpo da respiração”; treina a si mesmo: “expiro vivenciando
todo o corpo da respiração”.
Treina a si mesmo: “inspiro
tranqüilizando as funções do corpo”; treina a si mesmo: “expiro tranqüilizando
as funções do corpo”. (U Silananda, 2002, p. 176-7)
No
treinamento da meditação da plena atenção, não induzimos a respiração. “Ao
fazer uma inspiração/ expiração longa ou curta” significa que cuidamos apenas
de reconhecer qual é a qualidade da respiração a cada momento. Para
isso, treinamos a concentração (sustentação do foco da mente no objeto
respiração) e a plena atenção (investigando as qualidades do objeto, e
retrazendo o foco sempre que notarmos a fuga distrativa do foco na respiração).
No momento da meditação não induzimos exercícios respiratórios, mas a qualidade
de nossa respiração condicionará muito a qualidade dos frutos de nossa prática
meditativa, pelas razões que já nos referimos anteriormente. Respirações
deficientes enfraquecem o corpo e as possibilidades mentais da concentração e
plena atenção necessárias para penetrar e transformar os padrões mentais não
saudáveis. Desenvolver a qualidade respiratória é importante e corre paralelo
ao treinamento mental. Por isso, três grandes fatores do cultivo sadio devem
ser incentivados: o controle e regulação da respiração, a vitalidade nos
movimentos e posturas corporais e o controle da mente. São benéficas as
práticas como o Hatha Yoga, T’ai Chi e por extensão as várias opções aeróbicas
como a natação. Qi Gong, etc.
Neste
balanceamento corpo-mente, o ritmo respiratório tem efeitos evidentes sobre os
vários sistemas corporais. Não é por acaso que as ciências tradicionais tinham
no ritmo um destaque marcante. É da
apalavra “ritmo” que derivava a Aritmética,
ciência dos ritmos contidos nos números, objeto de investigação de Pitágoras,
ciência que se perdeu e se reduziu a operações apenas quantitativas; talvez por
isso a Matemática seja hoje uma fonte de sofrimento para muitos estudantes,
pois a lógica profunda dessa ciência se tornou opaca aos nossos olhos.
Respiração consciente
rítmica. Do ponto de
vista fisiológico, a respiração ritmada traz uma harmonia no funcionamento
interdependente dos sistemas corporais, pois todo o corpo vive segundo
processos rítmicos, pulsações de vibrações sutis de expansão e contração: o
sangue enviado pelo coração até as extremidades do corpo – recolhido de volta
ao coração; o ar inspirado nos pulmões – enviado pelo sangue às células –
recolhido de volta aos pulmões; as correntes sinápticas no cérebro; os fluxos
hormonais.
A respiração regular e profunda é
essencial para a saúde do sistema nervoso, do cérebro, e das glândulas
endócrinas, e segundo a ciência yóguica, o Prana no ar que respiramos preenche
diversas funções no corpo humano, cada qual com seu nome específico:
“Prana
– (aqui o termo geral ganha um significado específico) circula na área em volta
do coração e controla a respiração.
Apana
– circula nas partes inferiores do abdômen e controla as funções excretoras
(urina e fezes).
Samana
– estimula os sucos gástricos, facilitando assim a digestão.
Udana
– permanece na caixa torácica, controla a absorção do ar e alimento.
Vyana
– difunde-se pelo copo e distribui a energia do alimento e respiração.
Naga
– alivia a pressão abdominal provocando o arroto.
Kurma
– controla as pálpebras para prevenir a entrada de corpos estranhos e luz forte
que ferisse os olhos.
Krkara
– previne a entrada de certas substancias pelas cavidades nasais ou descendo
pela garganta, causando espirro e tossimento.
Devadutta
– garante a absorção de oxigênio suplementar para o copo cansado, causando o
dilatamento.
Dhanamjaya
– permanece no copo, mesmo após a morte, e algumas vezes faz o cadáver inchar”.
(Sri Ananda, 1989, p. 30-31)
Respiração e sistema circulatório
Composto pelo sangue, vasos sanguíneos
e o coração, o sistema circulatório tem a função de transportar nutrientes,
hormônios, células e anticorpos do sistema imunológico e oxigênio [removendo o
gás carbônico e as excreções (como a uréia, a amônia, etc.)]. O sangue humano é
constituído de plasma (água 92%, proteínas [como a gamaglobulina, que
constituem os anticorpos; fibrogênio, para a coagulação], sais, nutrientes,
gases, excreções e hormônios), hemácias (glóbulos vermelhos, produzidos no
interior dos ossos, para o transporte do O2) e os leucócitos (glóbulos brancos,
para a defesa do corpo).
Dos capilares sanguíneos, extravasa
líquido sanguíneo (fluido tissular) que oxigena as células próximas aos capilares;
o fluido tissular capta CO2 e excreções e é reabsorvida pelos capilares e volt
ao sangue pelas veias, agora pobre em nutrientes e O 2 e rico em CO2 e excreções.
Válvulas nas veias impedem o refluxo do sangue e garantem sua circulação em um
único sentido. O excesso de líquido tissular é captado entre as células dos
tecidos pelo sistema linfático, em cujo interior de seus vasos circula a linfa
(constituição semelhante à do sangue, mas não contém hemácias), que contém
glóbulos brancos (99% de linfócitos, um tipo de leucócito que no sangue é 50%
dos glóbulos brancos). A linfa circula por gânglios linfáticos, onde é
filtrada; nesses gânglios, linfócitos fagocitam vírus, bactérias e resíduos
celulares, através de um processo de multiplicação ativa e combate para a
defesa do corpo.
Por meio de uma extensa rede
capilar, o sangue vai, através da artéria, aos pulmões, recebe O2, volta ao
coração pelas veias pulmonares, e através das artérias, esse sangue arterial,
rico em O2, é bombeado para todo o corpo; de lá o sangue venoso, pobre em O2,
volta pelas veias ao coração. Através de impulsos elétricos, células musculares
especializadas (nódulo sinoatrial e nódulo atrioventricular, localizados no
coração) controlam a freqüência do batimento cardíaco, num incessante processo
de contrações e relaxamentos (sístole-diástole) das câmaras cardíacas.
Este bombeamento opera segundo
pressões exercidas pelo sangue contra as paredes arteriais (pressão arterial),
em pulsações de contração e distensão, regulando os volumes de sangue enviados
e as pressões que permitem enviar o sangue e relaxar a pressão interna, e
quando a pressão sanguínea diminui, a musculatura arterial se contrai,
equilibrando a pressão, e assim sucessivamente (Amabis&Martho, 1998,
p.358-368).
Como plena atenção-respiração-circulação
sanguínea se inter-influenciam?
A plena atenção na respiração tem
íntima conexão com a qualidade da circulação sanguínea. Quando meditamos tendo
o foco na respiração, a tendência é de acalmar a respiração, que vai se
tornando mais breve, profunda e consciente. Isso leva à diminuição da tensão
cardíaca, e com isso, a um certo equilíbrio na pressão sanguínea. É possível
usar o batimento cardíaco como foco da atenção, com os mesmos efeitos
benéficos. Por outro ângulo, a plena atenção, ao possibilitar uma certa
desaceleração e arrefecimento das tensões emocionais, atua na desaceleração do
ritmo cardíaco quando desritmado (hipertensão). Isto devido a um importante
ponto: o ritmo cardíaco é interdependente com a respiração, mas por sua vez o
ritmo cardíaco depende dos impulsos elétricos do nódulo sinoatrial (chamado
também de marcapasso), que por sua vez está ligado à ação reguladora da área do
Sistema Nervoso Central chamada medula oblonga (bulbo raquidiano): “Esta região
, chamada de medulla oblongata,
conecta a medula espinhal ao cérebro e contém aglomerados de células ou núcleos
que controlam funções críticas como pressão sanguínea, batimentos cardíacos e
respiração” (Ramachandram, 2004, p.32). Localizado no tronco encefálico, “o bulbo
(...) abriga grupos de núcleos que são centros para o monitoramento e controle
respiratório, cardíaco (freqüência cardíaca) e vaso motor (pressão arterial),
assim como para o vômito, o espiro, a deglutição e a tosse”. (O livro do
cérebro, 1, p.63).
A medula oblonga, por sua vez, é
influenciada pelo sistema nervoso periférico autônomo (simpático e
parassimpático), através do nervo vago. Há uma complexa e vasta interconexão do
sistema nervoso com o sistema respiratório e circulatório, mas de todo modo, observa-se
na prática da meditação da plena atenção efeitos saudáveis da tranquilização da
mente sobre o processo cardio-respiratório, em virtude das interrelações entre
os estados mentais-atividades cerebrais-processos respiratórios e
circulatórios.
Ainda que as pulsações respiratórias
e cardíacas aconteçam em boa parte como impulsos involuntários, relatos de
meditadores experientes mostram que há uma influência positiva da qualidade
mental da vontade consciente nesses processos. Estas relações merecem pesquisas
científicas mais acuradas. O grau e qualidade da participação da vontade
consciente devem variar de acordo com múltiplos fatores pessoais (histórico,
fase da vida, tempo de prática meditativa, etc.) Além disso, tensões emocionais
tendem a descarregar adrenalina no sangue, para o enfrentamento de situações de
estresse, estimulando a aceleração cardíaca e respiratória, e o aumento da
pressão sanguínea e da concentração de açúcar no sangue. Reiteradas descargas
de adrenalina tendem a levar o organismo a um desgaste danoso. Observa-se que,
depois das doenças de origem neuropsíquica (como a depressão, adicções em
alcoolismo, drogas, etc.), as doenças de ordem cardiovasculares e respiratórias
ocupam o segundo e terceiro lugar.
As chamadas “doenças” podem ser
vistas como sinais-alertas de desequilíbrios na harmonia corpo-mente. E não
será que esta harmonia teria graus ou níveis, de acordo com uma vida mais
próxima, ou afastada, de um horizonte espiritual mais profundo de significações
da condição humana? Assim, as “doenças” seriam alertas funcionais para revermos
e realinharmos nosso modo vida físico e mental a uma perspectiva mais genuína,
espiritual. As doenças do aparelho circulatório (como a arteriosclerose,
infartos, hipertensão) e respiratório (rinite, asma, bronquite, etc.) poderiam
ter na Meditação da Plena Atenção certo suporte para, se não sua superação
completa, certa diminuição de sua destrutividade, e um melhor lide.
A meditação da plena atenção não
deve ser vista como uma panacéia mágica que cura tudo, visto que há
determinações de causa múltiplas nos problemas corporais, mas o princípio
básico é o da interconexão entre essas dificuldades do corpo e os estados da
mente. E este é o foco central do treinamento meditativo: os padrões mentais
não-saudáveis, que estão na base do funcionamento do sistema nervoso e demais
sistemas do nosso corpo.
Preparando-se para meditar
Coloque-se numa postura corporal
confortável, seja sentado numa almofada com as pernas cruzadas, seja num
banquinho ou na cadeira.
Sobre essa base, coloque a coluna
ereta, mas sem tensões desnecessárias. As mãos podem estar descansando nos
joelhos, ou em forma de concha, as costas de uma mão sobre a palma da outra, os
polegares se tocando levemente.
Alinhe a cabeça com a coluna, de
modo a ficar com o queixo paralelo ao chão. Boca fechada, respiração pelas
narinas, olhos levemente abertos sem nada fixar fora, ou simplesmente fechados,
porém sem cair em sonolência.
Relaxe todo o corpo, fazendo algumas
respirações longas, lentas e profundas, nas três partes dos pulmões,
energizando corpo e mente.
Deixe de lado, durante a prática,
seus problemas cotidianos; ofereça a si mesmo o tempo da prática para seu
desenvolvimento interior.
Faça um compromisso de não deixar a
mente fugir para o passado, que já se foi, nem se projetar para um futuro, que
ainda não existe. Tudo que temos é o momento presente, neste corpo, nesta
mente, aqui e agora.
Traga um ensejo de bondade-amizade
amorosa para com você. Podemos usar silenciosamente breves palavras: “Que eu
esteja bem, sadio e pacífico”. Estenda o mesmo ensejo para todos os seres: “Que
todos os seres, sem exceção, estejam bem, sadios e pacíficos”.
Traga a atenção da mente para o foco
da respiração no abdômen. Procure fixá-la nesta área, atento à expansão-contração
do abdômen a cada inspiração e expiração.
Sempre que perceber que a mente
fugiu em pensamentos distrativos, imagens, memórias, não se irrite. Faça uma
notação mental silenciosa: “Pensando, pensando”. Relaxe, acolha, aceite. Não se
envolva com eles, não é necessário analisá-los. Deixe-os ir, são apenas
distrações, como bolhas ou nuvens. Faça uma pausa, e com gentileza, traga a
atenção da mente de volta para sua respiração.
Quando puder, procure colocar a
atenção nas batidas do coração. Veja o que você percebe sobre seu ritmo
cardíaco. Como é? É constante, varia? Relaxado? Tenso?
Perceba o que acontece com sua
respiração, momento a momento. Perceba como ela muda incessantemente.
Compreendendo que ela é impermanente, cultive um estado mental de desapego.
Reveja o conteúdo deste capítulo.
Anote as dúvidas, procure as respostas esclarecedoras, pesquisando ou
perguntando a quem possa lhe responder. Cuide de si mesmo/a.
Referências
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J. Mariano; Martho, Gilberto R. Biologia
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1998.
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Yogavacara
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Shaker , SP, Casa de Dharma. www.casadedharmaorg.org) The Bhavana Magazine,
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)
Neurociências
e Saúde
2
A Meditação à luz das Ciências modernas
e os paradigmas das Medicinas
Arthur Shaker
Iniciemos nossa explanação
apresentando alguns dados trazidos por pesquisas científicas atuais sobre os
efeitos da prática da meditação na saúde humana.
Em 2002, cientistas da Faculdade de
Medicina de Harvard demonstraram a melhora da memória de idosos saudáveis que
desenvolviam o treinamento de atividade de atenção e relaxamento. O grupo de
cientistas orientado por Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, em
2003, observou o aumento do número de anticorpos em pessoas meditantes por oito
semanas após vacinação contra gripe, em relação ao grupo de controle. Com o uso
de imagens de ressonância magnética, pesquisa dirigida em 2005 por Sara Lazar,
do Hospital Geral de Massachussets, evidenciou que a meditação aumenta as
espessuras do córtex pré-frontal cerebral (área ligada ao planejamento de
comportamentos cognitivos complexos) e da ínsula direita (ligada às sensações
corporais e às emoções), significando que a meditação tem a ver com alterações
na estrutura física do cérebro (Revista Época, 04/04/2011).
Como esses processos neurais e
mentais se interdeterminam? A resposta a esta pergunta tem subjacente uma outra
pergunta complexa: o que é o corpo humano? Ou seja, sob qual paradigma se
conceitua esse objeto que chamamos de “corpo”? Pode parecer uma questão
diletante ou de resposta óbvia, mas de fato implica o exame do próprio modo de
se construir uma visão científica. Se abrirmos o campo da pesquisa, vemos que
as culturas humanas referem-se ao corpo de modos diversos, e em virtude desses
mapeamentos diferentes, os diagnósticos sobre as doenças e, por conseqüência,
as terapêuticas preventivas e curativas apresentarão diferenças, e não raro,
divergências. Não é propósito deste artigo adentrar muito por esta questão, mas
algo sobre isso merece ser apontado em algumas linhas gerais. Escolheremos
apresentar três perspectivas paradigmáticas: o da medicina moderna, o da
medicina hindu e o da medicina tradicional chinesa.
Os paradigmas da medicina moderna
Este paradigma nasce dentro do
contexto dessa própria sociedade e por ela condicionada mentalmente, ou seja, o
percurso de suas proposições tem muito a ver com a mentalidade e a história dos
percursos da sociedade ocidental pós-medieval. Seria até interessante recuar
para pesquisar quais concepções de corpo-saúde-doença embasavam a medicina
medieval ocidental, certamente fortemente relacionada à visão do Cristianismo,
mas seria ampliar demais o escopo deste artigo.
À grosso modo, podemos dizer que o
paradigma da medicina ocidental pós-medieval caminhou na direção de um modelo
de sistema: o corpo seria um sistema
composto de vários subsistemas articulados, cada qual responsável por certas
funções, tendo por objetivo sustentar a vida do corpo, em seu duplo aspecto:
interno e externo ( a relação com o meio ambiente que circunda o corpo). Além
de sustentar a vida, a manutenção da sobrevivência, arraigada no chamado
“instinto de sobrevivência”, o corpo também seria movido por certo impulso
evolutivo de maior aperfeiçoamento pela presença de um cérebro mais complexo na
espécie humana. Interessante observar como a concepção evolucionista
darwiniana, também surgida com a sociedade moderna ocidental, é trazida para
dar suporte explicativo a este modelo de corpo. Como o corpo empiricamente
evidencia ser uma realidade dinâmica, construiu-se dois ângulos básicos de
codificação neste modelo: uma Anatomia descritiva estática das funções a serem
realizadas pelos vários subsistemas e uma Fisiologia dinâmica dos processos reais desses sistemas.
Se tomarmos um livro introdutório
básico de Biologia, encontramos de início o tema sobre como classificar os
organismos vivos, tarefa da Taxonomia. Usando o critério das semelhanças, e
vindo de uma herança grega de Aristóteles (séc. IV a.C.), que classificava os
animais em aéreos, terrestres e aquáticos, passando por Santo Agostinho (séc.
IV d.C.), em sua classificação dos animais em úteis, nocivos e indiferentes (em
relação aos seres humanos), caberá ao naturalista sueco Lineu (séc. XVIII) o
sistema de classificação segundo suas características intrínsecas, e publicado
no livro Systema Naturae, que serve de base até hoje.
Lineu escolheria como principal critério a estrutura e anatomia dos seres
vivos, ou seja, o plano de organização corporal. E se inclui hoje as
semelhanças e diferenças na composição química das proteínas e genes (Amabis
& Marto, p.5-6). Como categoria taxonômica básica temos o conceito de
espécie (do latim species, tipo) como
“o conjunto de seres semelhantes capazes de se cruzar em condições naturais,
deixando descendentes férteis” (Amabis & Martho, p.6). Espécies, gêneros,
famílias, ordens, classes, filos e reinos constituem os termos classificatórios
em graus de abrangência, cabendo ainda a Lineu a proposição do uso de uma
nomenclatura binomial, designando o gênero e a espécie. Do agrupamento
aristotélico dos reinos em reino animal e vegetal, acrescentou-se com Haeckel
os reinos Protista e Monera, e posteriormente com Whittaker o reino Fungo
(Amabis & Martho, p.7-9). E, na base desse esquema, a concepção da evolução
biológica, em que todos os organismos proviriam de organismos unicelulares que
teriam surgido há alguns bilhões de anos, se modificando, diversificando, e
selecionados pela chamada “lei da seleção natural”, em que a adaptação de
sucesso na luta pela sobrevivência selecionaria as transformações mais
vitoriosas, as quais levariam à progressivas mutações e surgimento de novas
espécies. O que, ao longo desses milhões de anos, evidenciaria um processo de
progresso nas estruturas dos organismos, ocupando a espécie humana o topo dessa
linha ascendente, graças a mudanças de sua estrutura cerebral, que lhe
permitiria operações cognitivas mais complexas.
Ainda nesta perspectiva, vamos encontrar nos livros básicos de Biologia o
modelo do corpo humano proposto segundo vários sistemas funcionais: sistema
digestivo, sistemas circulatórios, respiratório, sistemas controladores do meio
interno (osmoregulação e excreção), sistema de proteção, suporte e movimento
(pele, ossos e músculos), sistema endócrino, sistema nervoso, sistema de
percepção sensorial, sistema imunitário e reprodutor (Amabis & Martho,
op.cit). Interessante observar que a construção deste modelo em muito acompanha
o processo sóciomental da civilização ocidental pós-medieval: a construção de
um modelo à semelhança de uma máquina, engenho composto de sistemas mecânicos
que se articulam para realizar funcionalmente um propósito. Sistema e função
seriam as duas noções básicas desse modelo. Esta concepção aparece também em
uma das proposições analíticas da Antropologia funcionalista de Bronislaw
Malinowski, com a qual pretendeu compreender a estrutura de funcionamento das
sociedades humanas.
Não parece coincidência que esta visão denote uma concepção de estrutura enquanto sistemas, de órgãos no caso do corpo,
foco da Anatomia, e função enquanto
motivador vital (sobrevivência e evolução-progresso), da dinâmica da estrutura,
o campo da Fisiologia. E viabilizando a
passagem da estrutura para o funcionamento, a noção de “articulações”, espécie
de “áreas” de superação entre a rigidez estática das estruturas-sistemas e a
necessidade-evidência do dinamismo. Seria coincidência essa migração, para este
modelo de corpo humano, de conceitos-base da Engenharia mecânica, mola
propulsora do industrialismo desencadeado pela civilização ocidental
capitalista pós-medieval?
Os paradigmas gerais
da Medicina hindu
A compreensão do funcionamento e eficácia de uma medicina tradicional
como a hindu exige entendermos a visão mais ampla em que esta civilização se
fundamenta, na qual suas práticas de cura se desenvolvem.
O primeiro aspecto é a percepção de que se trata de uma civilização
tradicional, termo que designa os povos em que toda sua visão de mundo e sua
prática estão fundadas em bases metafísicas.
Significa que sua existência está conectada com o
Transcendente. Sem compreender esta conexão é impossível entendermos estas
civilizações como a hindu. Sem isto elas se tornam sem sentido.
A civilização hindu entende ser sua origem e a de todo universo como
sendo divina, e é isto que significa Tradição,
cada aspecto da vida terrestre tem um nexo celeste. Sua origem, sendo
divina, é supra-humana, apaurushêya (na
língua sânscrita).
A base da civilização milenar hindu são os Vêda (da raiz Vid,
conhecer), conhecimento trazido por
seus fundadores míticos há pelo menos 4.000 atrás. Escritos básicos da tradição
hindu, formam os quatro livros: Rig-Vêda, Yajur-Vêda, Sâma-Vêda e Atharva-Vêda.
A sabedoria contida neste conjunto de livros forma a doutrina básica da
tradição hindu, tendo os Vêda um conjunto de ciências auxiliares chamadas Vêdânga, “membro do Vêda”, como a
ciência da pronunciação, a gramática, astrologia e outras. Além disso, se
acresce os conhecimentos secundários, os Upavêdas,
dos quais faz parte o Ayur-Vêda, “Ciência
da Vida”, a medicina, ligada ao Rig-Vêda e ao Atharva-Vêda.
Toda sabedoria hindu
pode ser compreendida segundo os seus seis pontos de vista, darshanas. Um deles é o Yoga. Podemos dizer que a medicina hindu
tem no Ayur-Vêda e no Yoga seus pilares básicos, por sua vez fundados nos Vêda.
O Ayur-Vêda contém um conjunto de receituários de ervas, plantas e ritos
invocatórios e propiciatórios visando a cura das doenças, buscando atuar no
plano corporal, mental e espiritual. As práticas de recitação dos mantras de
cura, ligados ao Atharva-Vêda, são tão fundamentais para a cura quanto as
concomitantes práticas químico-físicas de sua medicina tradicional.
Complementariamente, o Yoga, sistematizado posteriormente nos Yoga-Sûtras de
Patãnjali, oferece uma prática corporal e mental de equilíbrio, o Hatha-Yoga,
através dos exercícios de postura (asanas)
e ritmos respiratórios (pranayama), preparatórios
para a realização espiritual, tarefa da meditação do Raja-Yoga. Também no Yoga, embora seus efeitos possam
ser procurados apenas para o bem-estar, não se desconecta o corporal do
psíquico e do espiritual. A realização espiritual, união (Yoga) com o Absoluto, é o pilar e a meta maior da tradição hindu.
O termo Ayur provém de Ayú, “vivente, movente, homem, seres vivos
coletivo, filho, linhagem, vida, duração de vida”. Da raiz verbal I, “ir,
andar, fluir, soprar, espalhar, passar, escapar, surgir de, vagar”, denota os
sentidos de fluxo, vir-a-ser. A saúde em seu dinamismo e impermanência.
Voltaremos mais adiante a estes importantes significados.
A medicina Ayurvédica tem oito áreas:
1.
Salya tantra: retirada de qualquer substância que entro
no corpo (como extração de dardos, lascas, etc.), de certo modo afim com as
práticas indígenas da pajelança, ou de um tipo de cirurgia, segundo visão
tibetana.
2.
Salakya tantra: cura das doenças da cabeça e pescoço
pelos Salakas ou instrumentos afiados.
3.
Kaya-cikitsa: cura das doenças que afetam todo o corpo
(medicina interna, segundo a interpretação tibetana).
4.
Bhuta-vidya: tratamento das doenças mentais produzidas
por más influências ocultas (controle dos ataques por espíritos malignos e
outras desordens mentais).
5.
Kaumara-bhritya (Bala tantra): tratamento das crianças
(Pediatria).
6.
Agada-tantra: doutrina dos antídotos (Toxicologia).
7.
Rasayana-tantra: doutrina dos elixires e
rejuvenescimento (Geriatria)
8.
Vajikarana-tantra: doutrina de revitalização sexual.
A medicina Ayurvédica vê na doença o resultado das impróprias proporções
dos
Tridoshas (os três humores). Na medicina
tibetana, este desequilíbrio é visto como “aflição” no nível primordial, e
“desordem” no nível manifesto imediato. Ainda na perspectiva médica tibetana,
todos os seres não iluminados seriam afligidos pelas imperfeições dos três
venenos fundamentais (Dug-gsum): o
Ego ou bDag-‘zin, manifesto na forma
de gTi-mug, ilusão, ignorância,
confusão, que por sua vez produz apego, gula, desejo, ‘Dod-chags, e Zhe-sdang,
ódio, aversão, agressão. O médico, na perspectiva tibetana, tratará a desordem
causada por dietas impróprias, comportamento e fatores ambientais, usando
várias dietas, orientações comportamentais, remédios e outras terapias. Mas o
objetivo básico é escapar do ciclo mundano e imperfeito da existência e
alcançar liberação dessas aflições pela genuína prática da compaixão.
Os três humores seriam: Vayu (ou Vata) [ar, vento, ar vital do
corpo, humor aéreo ou qualquer afecção mórbida deste]; Pitta [bile, o humor bilioso, secretado entre o estomago e os
intestinos; sua qualidade principal é o calor]; Kapha [fleuma]: “Esses ‘componentes’ do corpo estão espalhados pelo
corpo inteiro, mas se concentram mais em certos lugares. Assim ,
vata predomina no sistema nervoso, no
coração, no intestino grosso, nos pulmões, na bexiga e na pelve; pitta predomina no fígado, na vesícula biliar, no intestino
delgado, nas glândulas endócrinas, no sangue e no suor; kapha predomina nas articulações, na boca, na cabeça e no pescoço,
no estomago, na linfa e no tecido adiposo. Vata
tende a acumular-se debaixo do umbigo, kapha
acima do diafragma e pitta entre o
diafragma e o umbigo. Reencontramos algo semelhante na visão dos gregos sobre
os quatro humores, o fleumático, o sanguíneo, o colérico e o melancólico, e as
ligações com as estações sazonais de frio, umidade, calor e seco, e os quatro
elementos e os temperamentos humanos.
Além dos tres doshas, o
Ayur-Veda também admite a existência de sete tipos de tecido (dhatu) e três substâncias impuras (mala). Os dhatus são o plasma sanguíneo, o sangue, a carne, a gordura, os
ossos, a medula óssea e o semen. Os malas
ou dejetos são as fezes, a urina e o suor. (..) Segundo o Ayur Veda, existem
107 marmans (regiões sensíveis) que
são conexões vitais entre a carne e os músculos, os ossos, as articuçaões ou os
tendões, ou entre duas veias. (...) Outro conceito importante que o Yoga e o
Ayur-Veda tem em comum é o de ojas,
energia da vitalidade (...) Ojas
diminue com a idade e se reduz em decorrência da fome, da má alimentação, do
excesso de trabalho, da raiva e da tristeza (...) As condições opostas geram ojas e garantem assim a boa saúde.
Quando ojas fica muito tempo num
nível baixo, a pessoa sofre de doenças degenerativas e envelhecimento
prematuro. Ojas está presente no
corpo inteiro, mas se armazena especialmente no coração, que é também o locus físico da consciência”
(Feuerstein, 2006, p. 122-123). Haveria de se incluir a questão dos centros
vitais psíquicos, chakras (os sete
principais distribuídos ao longo da coluna vertebral), e dos nadis, treze canais ao longo dos quais
correm os diversos tipos de força vital (prana) as técnicas de purificação (em especial a
prática do vômito induzido e da limpeza fisica).
Concluindo esta apresentação
resumida de uma cultura médica complexa como a hindu, e relembrando que seu
objetivo maior é garantir na boa saúde as condições necessárias para a
realização espiritual, haveríamos de incluir a perspectiva da visão do
Tantrismo, onde o corpo, longe de ser visto como uma fonte de degradação e oposição
ao espírito, era tratado como morada divina e como caminho alquímico para a
perfeição espiritual. Tratar-se-ia de obter, a partir do corpo físico, um corpo
de Luz, transubstanciado, adamantino (vajra).
Nesta perspectiva, “o corpo-mente do ser humano não é o que parece ser: um
limitado tubo digestivo ambulante. Basta-nos relaxar ou meditar para descobrir
que esse popular estereótipo materialista não é verdadeiro, pois é nessas
condições que começamos a perceber a dimensão energética do corpo e o “espaço
profundo” da consciência. Quando se dissolvem os limites rígidos que traçamos
ao nosso redor, começamos a nos sentir mais vivos e ingressamos num mundo em
que as experiências são mais intensas. O relaxamento e a meditação substituem a
imagem que normalmente temos do corpo por uma percepção do fato de que nós
somos um processo fluídico intimamente ligado a um todo maior e vibrante. Nessa
experiência, os limites do ego perdem a sua rigidez. A física quântica nos diz
que todas as coisas são interligadas e que a idéia de que “eu” sou uma entidade
física isolada não passa de uma ilusão. Diz-nos, além disso, que o chamado
mundo objetivo é uma “alucinação”, uma projeção do imaginário ponto de
subjetividade que temos dentro de nós. Temos sido muito lentos em assimilar as
profundas implicações práticas da visão de mundo físico-quântica, sem dúvida
porque ela nos obriga a operar mudanças extensas e profundas no modo pelo qual
concebemos a nós mesmos e ao nosso universo. A perspectiva da física, porém,
não é tão nova quanto gostaríamos de acreditar” (Feuerstein, 2006, p.461).
Os paradigmas gerais da Medicina
tradicional chinesa
Seus fundamentos podem ser
encontrados no livro Nei Ching, atribuído
ao Imperador Huang-Ti, 3º milênio a.C. Assim como a medicina hindu, tem uma
base metafísica, partindo do princípio da energia cósmica Ki, que flui por canais (os meridianos), sendo captada por
determinados pontos distribuídos na pele. O corpo é visto como energia
manifesta como matéria densa viva. O organismo seria um complexo metabolizador,
que se renova de energia vital através da assimilação dos alimentos, da
respiração e das vibrações captadas pelos sentidos. Reencontramos certas
semelhanças com a concepção hindu da energia vital prana, que vem do oxigênio, da água e dos alimentos.
Na cosmogênese sinotaoísta, no
princípio havia a unidade Ki, cuja
polarização e entrelaçamentos dos princípios opostos e complementares Yin-Yang gera os múltiplos e variados
seres manifestos. As vias de energia se dão segundo cinco vias: dentro dos
ossos, nos músculos, nos vasos sanguíneos e linfáticos, na região subcutânea e
na superfície da pele, estes dois últimos o campo de aplicação da acupuntura,
do moxabustão e da prática da massagem do Do-in e Tui-ná, como ativadores da
circulação da energia. Teríamos 12 importantes meridianos, cada qual com sua
função e associados a doze órgãos, mas o nome do órgão não se refere apenas à
sua substância material, mas como órgãos-funções com manifestações energéticas
e psicossomáticas. Inclui-se uma dietética, exercícios de Tai Chi, Fitoterapia
e treinamento meditativo Tao-in, um processo de mentalização de centros de
energia. Encontramos, junto aos princípios Yin-Yang, a noção de cinco
movimentos relacionados aos cinco elementos (água-gerador de flexibilidade;
madeira–movimento vivo; fogo–movimento; terra-transformação e
metal-purificação), em correspondência com os órgãos internos Ghens (rins), Gan
(fígado), Xin (coração), Pi (baço/pâncreas) e Fei (pulmão), cada qual com
funções próprias (orgânicas, psicológicas, etc.) e com uma exteriorização ao
nível dos canais energéticos. Os diagnósticos baseiam-se no exame das cores na
face, entrevistas, exame da língua e do pulso (Do–In, 1976, p.13-19; Tabosa,
Unifesp, 2010). A noção de saúde e doença teria a ver com a proporção harmônica
das polaridades na ação sobre as funções orgânicas, e no lide dos
desequilíbrios e bloqueios da força vital encontramos um conjunto de terapias
referidas de tonificação e sedação dos processos energéticos.
Uma primeira observação sobre esses
três paradigmas, aqui apresentados de forma bastante simplificados, permite
antever de início um aspecto importante: certa afinidade entre a concepção
hindu e chinesa, pelo fato de ambas entenderem o corpo humano dentro de uma
referência de processo cósmico-espiritual de energias enquanto princípios
sutis, dos quais o corpo em sua forma material seria o nível mais denso e
grosseiro desse processo. A perspectiva de uma Anatomia e Fisiologia parece ser
outra, com significativas diferenças daquela da medicina moderna. Re-olhando
essas duas noções, em sua concepção grega original, encontramos no significado
do termo Anatomia algo curioso: dissecar, rasgar. Nessa operação de corte para
a construção e investigação do objeto “corpo”, ana é um prefixo que designa “através de”, “para cima”, tomos como “parte, porção, tomo”. O que os gregos
entendiam, por exemplo, nesse prefixo “para cima”? Será que consideravam o corpo, soma, como um conjunto de “partes”
enquanto “órgãos”? Órgãos refere-se à organização, à uma ordem, um dos
significados do termo “Cosmos”. Será que os gregos não vinculavam a organização
do corpo enquanto relacionado a uma organização cósmica maior? Ou seja, será
que a própria forma aparente do corpo não refletiria certos princípios cosmológicos
mais sutis, certa hieros (sagrado) – arque (princípio)?
Se olharmos o outro conceito, o de
Fisiologia, vemos mais coisas interessantes. Entendida na modernidade enquanto
estudo dos processos e atividades orgânicas, vamos encontrar em sua raiz etimológica
dois componentes: Fisis e Logia (investigação). Entre os gregos, o
fisiologista era considerado “o filósofo naturalista”. Mas o que os gregos
entendiam como Fisis, a Natureza?
Será que viam a “Natureza” como um “algo aí material, sólido, algo em si,
objetivo”? É significativo que por um longo tempo, a ciência moderna da Física
propôs a noção de uma “Física” enquanto realidade “material”, na suposição de
haver uma substância última – “matéria” que explicaria a “verdade concreta da
realidade”. Hoje a Física Quântica, através de suas pesquisas, questiona essa
suposição. A “matéria” ora se comporta como partícula, ora como onda, portanto
nada daquele esquema simplista, ensinado décadas atrás nos cursos secundários
de Química, das moléculas como “bolinhas”, mas o que se observa são campos
energéticos sutis, e, o mais curioso, esse comportamento é condicionado pelo
próprio observador. Ou seja, não haveria uma “realidade objetiva” enquanto um
“algo aí”, externo e independente da observação da mente humana. Isso significa
que a idéia de uma Natureza como uma “realidade concreta”, exterior ao
observador e “objetiva” seria apenas um constructo
de uma certa mentalidade, mas que não encontra respaldo pelas recentes
investigações da Física Quântica.
Para os gregos, Fisis, a Natureza, designava o vasto campo da realidade fenomênica,
o Cosmos enquanto vir-a-ser, em seu fluxo de incessantes mudanças,
impermanente. E veremos que a noção da impermanência
é um dos pilares do treinamento da meditação da Plena Atenção. Assim, toda
a realidade existencial, os mundos condicionados, sinônimo de Cosmos/Natureza,
tem a característica ontológica da impermanência, nada mais do que processos em
incessante surgir e desaparecer. Nessa perspectiva, o próprio corpo também
participaria dessa natureza de ser apenas um conjunto de agregados
impermanentes, e não um “algo aí concreto”. O que implica que sua Fisiologia
enquanto investigação de sua natureza remeteria a um olhar para processos mais
sutis do que apenas o de “órgãos e sistemas concretos” aos moldes de uma
mecânica, seja ela estática ou dinâmica. E mais, as noções de “natural”,
“instinto” precisariam também ser revistas, pois recaem igualmente na idéia de
algo aí, concreto, fixo, sobre o qual pouco se pode fazer. É interessante observar
como esse mesmo paradigma dicotômico Natureza-Cultura dominou a Antropologia,
colocando na Natureza o campo do objetivo e a Cultura como a sobreposição
“subjetiva” da produção mental humana sobre o campo da Natureza. Não estamos
pretendendo, nem poderíamos, desconsiderar a existência da diversidade dos
padrões culturais ao longo da história da humanidade, mas apontando para a
questionabilidade dessa dicotomia natural-cultural. E, trazendo de volta ao
nosso tema, é possível que a própria noção do corpo como uma máquina de órgãos
articulados e movidos pela lei do “instinto
natural de sobrevivência” tenha de ser revisto, pelo fato d que o
chamado “instinto natural” seria em realidade padrões condicionados que teriam
raízes mais profundas. Quais raízes seriam essas? Esse é o tema que os
fundamentos da Meditação da Plena Atenção pretende trazer para o diálogo com as
ciências médicas. Não se trata de polarizar discussões entre a medicina moderna
e as medicinas tradicionais, não há mais tempo para isso, mas conjugar esforços
mútuos entre o que é útil em cada uma, na busca de soluções práticas efetivas
para a saúde humana.
Os paradigmas gerais da Medicina
Homeopática
Fundada
por Samuel Hahnemann, nascido na Alemanha Oriental em 1755, sua história
percorre diversos campos de busca e prática médica, durante os quais foi
formulando os princípios do que viria a ser a doutrina homeopática. Sua postura
filosófica de procura constante da verdade é marcante em sua trajetória e
escritos (1). Dotado de forte percepção intuitiva sobre a existência de uma
“Ordem da Natureza”, e embasado em seus profundos conhecimentos da Medicina
grega – na grande herança de Hipócrates (460-370 a .C.), em seu monumental
escrito do Corpus Hippocraticum -
retomou deste o conceito de “regulação”, a vis
medicatrix naturae: a Natureza e seu poder de conservação de si que é
próprio do corpo vivo. Em seus 53 tratados e 72 livros, o conjunto das obras do
Corpus Hippocraticum já aponta e
descreve a lei dos semelhantes, princípio base da perspectiva homeopática:
Similia Similibus Curantur.
Aplicando a máxima “Sapere aude”
(ouse para ser sábio), Hahnemann conjugou o espírito científico da rigorosa
investigação dos processos da Natureza (e sua aplicação no domínio específico da
natureza humana) com suas experimentações e verificações empíricas ao longo se
seus anos de trabalho médico. A Arte de Curar pelo Semelhante é uma aplicação
da lei universal do “semelhante atrai semelhante” (similia similibus).
A Medicina Homeopática estrutura
suas noções de saúde/doença (e cura) a partir de alguns princípios básicos (2):
- Uma visão holística do ser humano segundo três níveis hierárquicos:
- Mental/espiritual: registra as
mudanças de compreensão ou consciência quanto à clareza; racionalidade,
coerência e seqüência lógica; atividade criativa para o bem de si e dos outros;
- Emocional/psíquico: regula
as mudanças nos estados emocionais (amor, ódio, sentimentos, paixões)
- Físico: os diversos sistemas
corporais, segundo a importância para o organismo - sistema nervoso,
circulatório, endócrino, digestivo, respiratório, excretor, reprodutor, ósseo,
muscular (incluindo sexo, sono, alimentação e os 5 sentidos).
A saúde como um todo
significaria: Liberdade do corpo físico em relação à dor, ao se atingir um
estado de bem estar; liberdade em relação à paixão no nível emocional, o que
resulta num estado dinâmico de serenidade e calma; liberdade em relação ao
egoísmo, na esfera mental, o que resulta na total unificação com a Verdade.
Vida é criatividade, uma das importantes significações da vida humana, em seu
objetivo principal: a realização da Felicidade contínua e Incondicional,
realização que no Budismo é alcançar Nibbana, o Incondicionado, superando os
ciclos de sofrimento do nascer e morrer (samsara).
- A sustentação da vida humana (e da vida de modo geral) é dada pelo princípio do Vitalismo: somos dotados de uma Força/Energia vital, que busca se regular em constantes reequilíbrios diante das mudanças externas e internas.
Em sua visão da complexidade
humana, não haveria como isolar saúde/doença como algo restrito a um “corpo”.
Crítico da visão da Medicina ocidental sobre o ser humano como um organismo
material regido por leis mecânicas, aos moldes de um engenho de sistemas, a
Homeopatia busca recuperar a visão das medicinas antigas sobre a natureza
holística do ser humano, sem entretanto, ignorar ou desconsiderar as conquistas
alcançadas em muitos campos da medicina alopática. Também a noção homeopática
de um princípio de Força/Energia vital inteligente reguladora encontra
analogias nas doutrinas médicas antigas. No Budismo, essa força/faculdade vital
é chamada de jivitindriya, um dos
setes fatores mentais (cetasikas)
universais, em sua dimensão mental (vitaliza ou mantém os fenômenos mentais associados)
e física (vitaliza os fenômenos materiais).
Se há um princípio vital que
busca regular o equilíbrio da condição humana, como compreender as doenças? A
medicina homeopática critica a noção alopática de que as doenças se deveriam à
ação de agentes externos, os micróbios invasores, para cuja erradicação o
grande remédio seriam os medicamentos de base química. Para a Homeopatia, a
doença se vincularia à noção de desequilíbrio desse princípio vital, devido à
multiplicidade de causalidades. Para sua construção doutrinal, a Homeopatia vai
buscar suportes nos conceitos básico da Física; através da carga e do
movimento, como partículas e ondas intercambiáveis, o que temos num nível mais
sutil são os campos eletrodinâmicos, vibracionais. Cada substância tem uma
freqüência ressonante característica pela qual vibra mais, quando estimulada
por onda de freqüência semelhante. Na frequência ressonante, a energia ou força
do sistema é maximizada em um estado de harmonia; desviando-se da frequência
ressonante, mais dissonância ocorre, com queda simultânea de energia. A
frequência ressonante do corpo humano seria uma resultante complexa, um
processo fluído, flexível, energético, regido por um Plano Dinâmico, campo
eletromagnético ou nível da força do organismo humano, em suas dimensões
mentais, emocionais e físicas. Tanto para os agentes morbíficos como para os
agentes terapêuticos, temos as leis e princípios da ressonância, harmonia,
esforço e interferências. O Plano Dinâmico seria o plano da presença da vida, o
plano no qual se origina a doença e os mecanismos de defesa. Permeia todos os
níveis, é anterior a eles, interage com eles: é o mediador inteligente, o eixo
interno dos três níveis do organismo humano, criando a melhor resposta possível
de que é capaz no momento. Conforme o estímulo sobre o organismo, haveria uma
alteração do grau de vibração no Plano Dinâmico, e com isso uma reação, um
ajuste pelo mecanismo de defesa, podendo ocorrer sem mudanças visíveis, ou com
processos percebidos pelo indivíduo como sintomas em um ou mais níveis, num
período latente, de ajuste do mecanismo de defesa.
A primeira perturbação ocorre
no campo eletromagnético do corpo; a melhor intervenção terapêutica seria
aquela que agiria diretamente no campo eletromagnético como um todo, o que
fortalecerá diretamente o mecanismo de defesa. O maior desafio seria o de
encontrar o agente terapêutico que ressoasse diretamente junto à freqüência
resultante do organismo no plano dinâmico. Como a Meditação da Plena Atenção
poderia ativar-estimular o Plano Dinâmico? Quando a saúde é boa, o Plano
Dinâmico se ajusta naturalmente sem se manifestar; quando a saúde é ruim, o
Mecanismo de defesa é acionado quando o limite é transposto, gerando sintomas,
que são manifestações de perturbação do Plano Dinâmico e de sua ação, via
mecanismo de defesa, tentativa do organismo de curar. Assim, os sintomas não
seriam problemas em si
mesmos. A terapêutica homeopática, ao invés de tentar
suprimir os sintomas, procura afetar diretamente o Plano Dinâmico, através de
uma substância que possa produzir no organismo humano uma totalidade semelhante
de sintomas e sinais, para a ação do princípio Similia Similibus Curantur. O
grau de vibração da substância, ao ser próximo da freqüência resultante do
organismo doente, traria o fortalecimento do mecanismo de defesa, através do
princípio de ressonância. Para isso, o homeopata procura estudar os próprios
sintomas em sua totalidade, incluindo os traços individualizantes, os desvios
da norma nos três níveis, detalhados, traços que representam, para a cura, a
“freqüência de ressonância” do organismo como um todo. O conhecimento clínico
seria o menos significativo. Consideram-se as áreas mais importantes dos
sintomas, aquelas que se relacionam com as funções básicas que ocupam a atenção
da pessoa: conforto ambiental, comida, sexo, sono, relação com as pessoas
amadas, problemas financeiros, trabalho profissional ou doméstico.
A eficácia dos remédios
terapêuticos depende da constante experimentação humana para medicamentos, ou
seja, o registro sistemático e exaustivo dos sintomas produzidos pelas
substâncias nos humanos saudáveis. Esse era o procedimento e ênfase de
Hahnemann. A manifestação do sintoma do paciente e do medicamento se combinam,
possibilitando que os princípios de ressonância excitem e fortaleçam o
mecanismo de defesa, gerando a cura. Ao invés de suprimir os sintomas, a
Homeopatia busca fortalecer o mecanismo de defesa, e este se encarrega da cura.
O agente terapêutico agiria tanto a nível químico, quanto como efeito sobre o campo
eletromagnético, causado pelo campo eletromagnético correspondente da
substância, quando os níveis de vibração forem próximos, tendo a mesma
ressonância. Examinaremos em outros capítulos como as intenções volitivas na
meditação talvez possam colaborar para sensibilizar as vibrações ressonantes na
mente, desobstruindo as impurezas e fortalecendo os fatores saudáveis,
luminosos e puros da mente.
Segundo a Homeopatia, quando o
organismo está enfraquecido e sua vibração se dá num nível sensível, três poderosas
influências podem agir de modo nocivo: as fortes enfermidades agudas (por
herança genética, predisposições – os miasmas – agravados tratamentos
errôneos), as terapias supressivas (através dos antibióticos, tranquilizantes,
anticoncepcionais, cortisona, hormônios) e as vacinas (aplicadas em populações,
sem considerações individualizantes). A séria questão que a Homeopatia coloca
sobre as terapêuticas alopáticas generalizantes é que, ao atacarem os sintomas
(considerados erroneamente como “o problema”, que o paciente quer se ver
livre), constituem-se em choques morbíficos, o que leva o mecanismo de defesa a
gerar os “efeitos colaterais”, que são novos sintomas da busca do organismo por
um equilíbrio em um nível mais profundo. Com isso, ocorre um deslocamento do
centro de gravidade da sensibilidade para um nível mais interno, e a diminuição
da ameaça das doenças agudas desloca a perturbação para níveis mais sutis do
organismo (por exemplo, o que era um sintoma no nível físico desaparece, e o
problema se desloca para uma perturbação no nível mais interno, menos
perceptível ou alcançável, como o nível emocional ou mental/espiritual). E com
isso, ocorre um aumento de doenças crônicas, de mais difícil tratamento.
Junto com a necessidade de
prognósticos refinados com o paciente, a Homeopatia busca afinar as medicações
corretas em suas potencializações devidas, sempre revendo seus efeitos no
organismo humano como um todo, e corrigindo suas prescrições ao longo da vida
do paciente, ao modo do antigo “médico de família”, padrão de vinculo
médico-paciente que vem se perdendo, por conta da hipertrofia dos especialistas
e da forte crença no “diagnóstico infalível dos exames clínicos laboratoriais”.
Evitando cairmos numa
perspectiva dogmática de defesa das medicinas alternativas versus exorcismo da
medicina alopática, o campo de investigação para a conjunção de terapêuticas
eficazes está em aberto. É possível que, como vêm acontecendo nos últimos anos,
muitas revisões advenham sobre os modelos de saúde/doença, sobre os processos
do sistema imunológico e outros aspectos da saúde humana, e nisso a prática da
Meditação da Plena Atenção, mindfulness,
atuando sobre os processos mentais aflitivos, vá ocupando um lugar importante
como complemento para, num nível mais imediato, ajudar na superação de certos
graus de sofrimento, e num nível mais profundo, conduzir para a superação de
todo sofrimento, a purificação e libertação da mente, sinônimo de Nibbana. Mas
vejamos.
Os Fundamentos da Meditação da Plena
Atenção (Mindfulness)
e seu lugar na saúde humana
A Meditação da Plena Atenção faz
parte dos ensinamentos trazidos pelo Buddha há 2.500 anos na Índia. Nascido
como príncipe Sidarta Gautama no clã dos Shakya, pequeno reino de Kapilavastu,
atual Nepal, aos 28 anos viu as quatro cenas que mudariam o rumo de sua vida: a
doença, a velhice, a morte e a existência de ascetas serenos. Sensibilizado por
essas cenas–espelhos da realidade humana, Sidarta renuncia ao trono de seu pai
e parte para a floresta em busca do método de superação do sofrimento humano.
Após sete anos de práticas meditativas, libera totalmente sua mente do
sofrimento, e formula a chave de todo o seu método em duas sentenças: a
existência do sofrimento e a superação do sofrimento. O coração de seu método, por
ele realizado, está contido nas chamadas Quatro Nobres Verdades: a existência
como insatisfatoriedade-sofrimento; a causa do sofrimento; a possibilidade da
extinção do sofrimento e o método prático para a extinção do sofrimento. Como
um grande médico, sua descoberta envolve a constatação do sintoma, o
diagnóstico, a possibilidade da cura e o medicamento (tanto curativo quanto
preventivo).
Três seriam os níveis do sofrimento:
o sofrimento físico do nascimento, doença, velhice e morte; o sofrimento mental
de se desejar o que não se tem, gerado e reforçado pela cobiça, e de não se
querer o que se tem (as experiências dolorosas), gerado e gerando a aversão,
com seus desdobramentos no ressentimento, raiva, ódio e fúria; e o sofrimento
mais interior advindo da delusão, e gerado pela ignorância de não se ver a
realidade das coisas como elas são. Por não vermos a realidade do corpo e da
mente como eles são, desenvolvemos padrões reativos que provocam sofrimento, em
suas manifestações de lamentação, tristeza, pesar, depressão, ansiedade,
melancolia, ódio, estresse e tantas outras sintomáticas corporais e mentais.
Os padrões reativos da mente são
condicionadores desses sintomas de sofrimento, no sentido de que eles induzem
esses efeitos no corpo e na mente, e também são condicionados, no sentido de
que eles são produtos de tendências anteriores, que ao encontrarem os alimentos
oportunos, se aprofundam e se tornam os condicionadores de reatividades
futuras. Passado-presente-futuro se encadeiam em processos repetitivos, criando
hábitos e padrões de personalidade. Não teríamos algo “natural ou instintivo”,
mas sim padrões de condicionamentos, processos causais. A imperatividade desses
padrões é proporcional ao grau de seu enraizamento na mente humana, por sua vez
dependente de uma multiplicidade de fatores dinâmicos, mas esses padrões são
passíveis de serem transformados, e é aí que entra o treinamento da meditação,
como parte do medicamento recondicionador da mente para padrões mais saudáveis.
É curioso notar que “medicar” e “meditar” têm a mesma raiz etimológica.
Sintèticamente, a Meditação da Plena
Atenção consiste no treinamento que busca desenvolver as qualidades da
concentração, plena atenção e sabedoria, de modo a tornar a mente cada vez mais
atenta ao emergir desses padrões condicionadores não saudáveis, e pela não
reatividade, compreensão sábia e insights, desengajar a mente dessas
reatividades, enfraquecendo esses padrões, substituindo por padrões mais
saudáveis, num processo gradual de libertação da mente até a total erradicação
das causas do sofrimento, sinônimo do despertar e iluminação. O pressuposto
íntimo desse processo é de que a mente em sua natureza última é luminosa, pura,
sábia e plena, mas que, devido aos contaminantes da cobiça, ódio e ignorância,
se enreda numa teia de ações do corpo, fala e mente que tendem a recriar os
frutos dolorosos do sofrimento.
A tranquilização e concentração da
mente (samadhi) correspondem ao
treinamento de Samatha, e o cultivo
da sabedoria e insight ao treinamento de Vipassana.
Se pudéssemos falar de uma “anatomia” nessa perspectiva, o que denominamos de
“pessoa humana” seria visto como um estado (ou melhor, processo) existencial
formado de cinco agregados: corpo/forma material, sensação, percepção,
formações mentais (pensamento, memória, imaginação, etc.) e consciência. O
primeiro como corpo (rupa), e os
outros quatro como mentalidade (nama). Não
se trata, de fato, de uma anatomia no sentido estrito usado pela nomenclatura
médica, enquanto cinco partes, mas cinco ângulos com que podemos acessar à
nossa experiência existencial. A ênfase está menos numa formulação de
categorias-em-si, mas de suportes hábeis (upayas)
para o processo de investigação dos nossos processos experienciados, pois o
foco central é o conhecimento vivencial desses processos a cada momento, a
mente contemplando e investigando a própria mente-corpo em fluxo, já que é
nesse fluxo que reside o sofrimento, suas causas e sua superação, e por
conseguinte, o campo da saúde do corpo e da mente.
Notas
(1) Sobre a doutrina
homeopática, nos valemos das obras:
Doutrina Médica Homeopática, publicado
pelo Grupo de Estudos Homeopáticos de São Paulo “Benoit Mure”, 1986.
Homeopatia. Ciência e Cura. George Vithoulkas. São Paulo: Circulo do Livro,
1990.
(2) As
formulações que se seguem são resumos literais extraídos da obra acima referida
de G.Vithoulkas. Agradeço ao Dr. Walter S. Canoas pelo acesso a estas duas
obras, e ao Dr. Mário Sposati, meu médico homeopata e grande amigo de há mais
de 35 anos de acompanhamento médico e diálogos que inspiraram algumas
elaborações aqui incluídas.
Referências
Eletrônicas
Bibliográficas
Amabis, J.
Mariano & Martho, G. Rodrigues. Biologia
dos Organismos. Classificação, estrutura e função nos seres vivos. Vol 2.
SP: Ed. moderna, 1994.
Cançado, Juracy
Campos L. Do-in. Livro dos Primeiros
Socorros. RJ: Ground, 1976.
Feuerstein,
George. A Tradição do Yoga. SP: Ed. Pensamento, 2006.
Shaker, Arthur. A travessia buddhista da vida e da morte. Introdução
a uma Antropologia Espiritual. RJ: Gryphus, 2003.
Tabosa, Ângela. A Medicina Tradicional no Oriente e no
Ocidente. (apontamentos). 2º Simpósio Internacional de Medicinas
Tradicionais e Práticas Contemplativas, Unifesp, SP, 17-18 setembro 2010.
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Memory and Mindfulness Meditation
Zlatica De Farias*
Núcleo Neurociências, Mindfulness e Saúde
Casa de Dharma
Dedicated to Dr. Veriano Alexandre, CIREP/USP, Ribeirão Preto
And to all those in search of memories.
Translation: Sarah Jeanne Johnson
“By evoking remembrances (and the past), we add dream-like worth. We are never true historians; we are always something of poets, and our emotion perhaps does not express more than lost poetry.”Gaston Bachelar
The meanings and functions of memory are constructions that have fascinated us for years. After a viral encephalitis which resulted from an “aedes aegypti” (dengue) infection, causing a “loss” in long-term memory (“lasting two hours, days, or years, making sure the autobiographic past and knowledge of the individual are recorded”, Lent 2005), and the deprivation of meanings from one’s autobiographical past for days, we are able to better understand the poetry of Clarice Lispector (1976) in “I am made of urgencies: I fill myself with absences, I empty myself of excess.” We also move closer to what researchers such as Bergson said decades ago, especially regarding the illusion that we only have one identity as long as we remember things.
And as our long-term memories return gradually returned, we were able to experience what Rosenfield (1994) concluded regarding "us not supporting ourselves on set images, but on re-creations – imaginations – through which the past is remodeled in ways appropriate to the present.” Can the reader reproduce the amount of “creation of meanings” that we had to “re-create” so that we could have “our memories”? How much did we have to “create” based on representations that did not come from reminiscences of bodily functions, sensations, emotions, perceptions, mental formations (images, thoughts, memories etc) and types of consciousness originated from each body and mind contact that we had in our previous history (with our knowledge and ideas) and fixed in an area of the brain that has some malfunction? But can we “create” based on data not connected to those reminiscences that would be located in other “neural networks?” And, approaching researchers like Ledoux, can we answer, as we did countless times, if we no longer are who we are if we lose our “neural signature”?
The word memory has its etymologic origin in the Greek word “mnemis”, which bestowed a halo of divinity on this faculty of acquisition, consolidation and evocation of the contacts that the body and or the mind has with an external or internal object, because it referred to the goddess Mnemosyne, the Mother of the Muses that protect History. So we give it the meaning of “the capacity to protect our stories and our history; other people’s stories and history; the world’s stories and histories; and the stories and histories that go beyond the world.” Or, as Monteiro (2006) shows us in a poetic inspiration, “we are the narrators of the story created by us, in us and for us.”
Later, in scholarly Latin, the word memory originates from the prefix "memor" ("the faculty of memory") and from the genitive “ôrîs/os” (“mouth”). We give it the meaning of “the reminiscences that appear from the body and mind and are expressed through the mouth.”
And in this attempt to try and find out the meanings of memory, we were surprised by the etymology of the word "recordar." It comes from the prefix “re” (repetition, return) and the root “cordis/cor” (learn, know/heart). Because the heart was also considered the source of memory in the ancient world, later also being regarded as the source of emotion, memory has imbued with meaning, of “the remnants that arise from the language of the heart.”
But what about the process of mindfulness meditation, what has its years-long practice of building concentration provided us during these weeks and later?
Mindfulness meditation is part of a mental culture practice proposed by the Abhidhamma Psychology model (a theoretical, methodological and technical model whose ancient philosophical and psychological treaties, known as Abhidhamma/ Abhidharma, were compiled from the V century). It consists of a practice of attention and direct observation of bodily and mental processes. It is not widely known in Brazil and is initially based on developing concentration (samatha, “the mental state of being firmly concentrated”). “Concentration could be defined as that faculty of the mind which focuses single mindedly on one object without interruption” (Gunaratana, 1995). After concentration is developed to the point where consciousness is able to focus on a single bodily process (sense attention or selective perception) or mental process (mental attention or selective cognition), a stage begins where concentration and mindfulness develop simultaneously (vipassana, “clear vision,” seeing all processes that happen in the body and mind clearly, distinctly, and directly), which allows us to have mindfulness not as the result of a mere intellectual understanding, but as the direct observation of all and any phenomena happening in our own body and mind. As Shaker put it:
“Insight and mindfulness meditation consists of training the mental faculty of attention, developing it through direct observation of the inner experiences of the body and mind in way that is totally conscious and free of judgment. This training, which also involves, in equal measure, the development of the mental faculty of concentration, allows one to have some distance from the entanglements of mental formations, observing the body from moment to moment (from its different angles: breath, heartbeat, feelings, etc.) and spontaneous thoughts from the brain/mind.” (2010)
For such training and development, we have used the technique of “mindfulness of the breath meditation” for years (ânâpânasati, “mindfulness of the inbreath and outbreath”). Through mindfulness of each inbreath and outbreath, it is possible to observe and investigate body and mind. Buddhadâsa Bhikkhu stated (1988):
“What are the proper, correct, and necessary objects of contemplation every time we breathe in and breathe out? There are four proper objects of contemplation: the secrets of kaya (body), the secrets of vedana (feeling), the secrets of citta (mind), and the secrets of Dhamma. Because these four already exist within us as the sources of all our problems, we must use them far more than any other objects to train and develop the mind”.
Since we began this practice, we have recognized the essential meaning and function of mindfulness meditation. By gradually developing the capacity to sustain mindfulness in our perceptions, from its start to its suppression, it is possible to develop an understanding of bodily and mental phenomena. Perception of these processes grows more and more, from the moment they are triggered by visual, auditory, olfactory, gustative, tactile and mental impressions to the consciousness of each state experienced by the body and the mind.
And to our surprise, this was how the remote memory function started to be recovered, upon realizing the role of mindfulness in the various processes that we were experiencing. Because we have some training in the skill of perception and in the conscious and unconscious processing of bodily and mental states, we noticed how much mindfulness allowed us to store information that was assimilated through the senses. It is as if the mosaic of the perceptions that make up memory could be created not only by the impressions experienced by the body and mind from contact with some external and/or internal object. The possibility of directly observing some bodily functions, feelings, emotions, perceptions, mental formations and consciousness that arise from the mind and from awareness; while we experienced them, they also played a part in building remote memory. And we noticed that the more we were able to sustain our mindfulness of these processes, the greater our long-term storage mechanisms were. We were able to get close to Kandel (2000), a neuroscientist who was prominent in Brazil when our experiences began: “the memory map can only remain stable when attention is present.”
Have you ever noticed how your perceptions of body and mind come about? Have you noticed how “passive” we are when it comes to our perceptions? How much our “mindfulness,” which should be one of the essential conditions to every perception, is nothing but attention to a few impressions experienced by body and mind after each contact with an external or internal object? Have you noticed to what measure we are “partial memory records”, as defined by Sperling? That is, how little our memories are made up of mindfulness of our corporal and mental processes? And, in an attempt to make it sound poetic, that we are “awareness-blind”?
There is some research and there some academic work has been done on cerebral processes produced by mindfulness meditation, specifically on the increase of hippocampal density (Frewen, P.) and of the areas associated with attention (Brefczynski, L.), the responses of the prefrontal cortex (Cheng, R.) and cingulate areas (Corrigan, F. M. and Holzel, B.).
Having experimented with “neuroplasticity” (the “plastic” property of the nervous system – the correlation between the various regions of the brain and the potential for the remaining areas to take over when a specific area is compromised) and its ability to “create” and “re-create” using synaptic connections, studies and research on the active role of mindfulness meditation in intensifying the many mechanisms of memory storage can be one of the objects of our mindfulness. And the beginning...Experiencing mindfulness meditation.
Bibliography
BUDDHADÂSA BHIKKHU. Mindfulness with Breathing: A Manual for Serious Beginners. Boston: Wisdom Publications, 1.997.
DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO NOVA FRONTEIRA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.986.
GUNARATANA, Venerable Henepola. Mindfulness in Plain English. Boston: Wisdom Publications, 1.995.
KENDAL, Eric. Em Busca da Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2.002.
LENT, R. Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência. São Paulo: Atheneu, 2.005.
MONTEIRO, Pedro. A Mente e o Significado da Vida. Belo Horizonte: Gutemberg, 2.006.
NYANATILOKA. Buddhist Dictionary: Manual oh Buddhist Terms and Doctrine. Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1.994.
ROSENFIELD, Israel. A Invenção da Memória: Uma Nova Visão do Cérebro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.994.
SHAKER, Arthur. A Travessia Buddhista da Vida e da Morte: Introdução a uma Antropologia Espiritual. Rio de Janeiro: Gryphus, 2.003.
* Clinical Psychologist. Psychotherapist Specializing in Clinical Psychotherapy for Adults and Couples.
Degree in Choreotherapy – therapy through movement and dance; Junguian Analysis and Symbolic Art Therapy; Couple's Counseling; Family Counseling.
CONSULTÓRIO DE PSICOTERAPIA
a Memória e a Meditação da Plena Atenção (mindfulness)
Zlatica De Farias*
Dedicado ao Dr. Veriano Alexandre, CIREP/USP, Ribeirão Preto.
E a todos aqueles que estão em busca das memórias.
“Evocando as lembranças (e o passado), adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco de poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida”. Gaston Bachelar
Os significados e as funções da memória são construções que nos tem fascinado há anos. Após uma encefalite virótica, em consequência de uma contaminação pelo “aedes aegypti” (dengue), nos levando a experienciar uma “perda” da memória de longa duração (“dura de duas horas, dias ou anos, garantindo o registro do passado autobiográfico e dos conhecimentos do indivíduo, Lent, 2.005) e a privação dos significados do passado autobiográfico por dias, pudemos nos aproximar da poética de Clarice Lispector (1.976) no “Sou composta por urgências: me entupo de ausências, me esvazio de excessos”. Também, nos tornamos próximos do que pesquisadores como Bergson afirmaram há décadas, especialmente no que se refere à ilusão de que só temos uma identidade porque nos lembramos.
E com a gradual progressão em que nossas memórias de longa duração iam sendo resgatadas, pudemos experienciar o que Rosenfield (1.994) concluiu quanto a “nós não nos apoiamos em imagens fixas, mas em recriações - imaginações – pelas quais o passado é remodelado em formas apropriadas para o presente”. O leitor pode reproduzir o quanto de “criações de significados” tivemos que “recriar” para que pudéssemos ter “nossas memórias”? O quanto tivemos que “compor” a partir de representações não advindas das reminiscências de funções corporais, sensações, emoções, percepções, formações mentais (imagens, pensamentos, memórias, etc) e consciências originárias de cada contato corporal e mental que tivemos em nossa história pregressa (com nossos conhecimentos e idéias) e fixadas em uma área cerebral que apresentava algumas disfunções? Mas “compor” a partir de dados não relacionados a essas reminiscências que estariam localizados em outras “redes neurais”? E aproximando-se de pesquisadores como Ledoux, pode se responder, como o fizemos por inúmeras vezes, se deixamos de ser quem somos se perdemos nossa “assinatura neural”?
Pesquisando a etimologia de memória, essa origina-se inicialmente do grego “mnemis”, que dava à esta faculdade da aquisição, consolidação e evocação dos contatos que o corpo e/ou a mente fizessem com algum objeto externo ou interno um halo de divindade, pois referia-se à Deusa Mnemosyne, Mãe das Musas que protegem a história. A significamos, então, como “a capacidade de protegermos nossas estórias e história, as estórias e história do outro, as estórias e história do mundo, e as estórias e história do que vai para além do mundo”. Ou como nos leva a uma inspiração poética Monteiro (2.006), “somos os narradores da história criada por nós, em nós e para nós”.
Posteriormente, no latim erudito, memória origina-se do prefixo “memor” (“a faculdade da memória”) e do genitivo “ôrîs/os” (“boca”). A significamos como “as reminiscências que surgem do corpo e da mente, e se fazem expressar pela boca”.
E nesse nosso tratar de descobrir significados de memória, ainda nos foi possível o surpreender com a etimologia de “recordar”. Originando-se do prefixo “re” (“repetição, retorno”) e do radical “cordis/cor” (“aprender, saber”/“coração”), e tendo sido o coração também considerado como a sede da memória no mundo antigo, vindo posteriormente a ser também a sede das emoções, significamos memória como “as reminiscências que surgem da linguagem do coração”.
Mas e o processo da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), o que sua prática por anos na construção da concentração nos possibilitou nessas semanas e nas fases seguintes a essas?
Fazendo parte de uma das práticas de cultura mental propostas pelo modelo de Psicologia Abhidhamma (modelo teórico, metodológico e técnico cujos tratados filosóficos e psicológicos antigos conhecidos como Abhidhamma/Abhidharma foram compilados desde o séc. V a.C.), a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness) consiste de uma prática da atenção e da observação direta dos processos corporais e mentais. Ainda pouco conhecida em nossas terras, fundamenta-se inicialmente no desenvolvimento da concentração (samatha, “o estado mental de se estar firmemente fixado”). “A concentração pode ser definida como aquela faculdade da mente na qual o focamento em um objeto se dá sem interrupção e numa experienciação a mais próxima das consciências advindas do corpo e da mente, enquanto essas se dão” (Gunaratana, 1.995). Após o desenvolvimento da concentração, a ponto da consciência focalizar-se em um único processo corporal (atenção sensorial ou percepção seletiva) ou mental (atenção mental ou cognição seletiva), passa-se ao desenvolvimento da concentração e da plena atenção simultaneamente (vipassana, “a visão clara”; ver claramente, distintamente, diretamente todos os processos que venham a se dar no corpo e na mente), o que nos possibilita a plena atenção não enquanto o resultado de uma mera compreensão intelectual, mas a observação direta de todo e qualquer fenômeno que se dá em nosso próprio corpo e mente. Como Shaker colocou:
“Mindfulness, a meditação da plena atenção e do insight, consiste no treinamento da faculdade mental da atenção, desenvolvendo-a pela prática da observação direta das experiências internas do corpo e da mente de maneira completamente consciente e sem julgamentos. Este treinamento, que envolve igualmente o desenvolvimento da faculdade mental da concentração, permite que a pessoa se posicione à certa distância dos enredos das formações mentais, observando momento a momento o corpo (em seus vários ângulos – como a respiração, batimentos cardíacos, sensações, etc.) e os pensamentos espontâneos do cérebro/mente” (2.010).
Para tal treinamento e desenvolvimento, utilizamos por anos a técnica da “Meditação da Plena Atenção na Respiração” (ânâpânasati, “plena atenção na inspiração e na expiração”). Através da plena atenção a cada inspiração e expiração, é possível observarmos e investigarmos o corpo e a mente. Como afirmou Buddhadâsa Bhikkhu (1.988):
“Quais são os objetos de contemplação apropriados, corretos e necessários a cada instante enquanto inspiramos e expiramos? Aqui são quatro os objetos de contemplação apropriados: os segredos de ‘kâya’ (o corpo), os segredos de ‘vedana’ (as sensações/emoções), os segredos de ‘citta’ (a mente), e os segredos de ‘dhamma’ (a natureza fundamental das coisas). Porque esses quatro objetos já existem dentro de nós e são as raízes de todas as dificuldades e problemas, podemos, então, utilizá-los mais do que a qualquer outro objeto para treinarmos e desenvolvermos a mente”.
Desde iniciarmos tal prática, percebemos o fundamental significado e função da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness). Com o gradual desenvolvimento da habilidade de sustentarmos a plena atenção em nossas percepções, de sua originação até sua supressão, nos é possível o desenvolvimento da compreensão dos fenômenos corporais e mentais. É possível, desde seus desencadeamentos a partir das impressões visuais, auditivas, olfativas, gustativas, táteis e mentais, até as consciências de cada estado experienciado pelo corpo e pela mente, percebermos cada vez mais esses processos.
E qual não foi nossa surpresa, assim que a função da memória remota foi sendo recuperada, ao percebermos o papel da plena atenção nos vários processos que experienciávamos.
Por termos alguns treinamentos da habilidade da percepção e do processamento consciente e inconsciente de estados corporais e mentais, percebemos o quanto a plena atenção nos possibilitou condições para que o armazenamento das informações que eram assimiladas através dos sentidos pudesse se dar. É como se o mosaico das percepções que compõem a memória pudesse ser criado não apenas pelas impressões que o corpo e a mente experienciavam a partir do contato com algum objeto externo e/ou interno. A possibilidade da observação direta de algumas das funções corporais, das sensações, das emoções, das percepções, das formações que provem da mente e das consciências, enquanto as experienciávamos, também participava da construção da memória remota. E quanto mais sustentávamos a plena atenção nesses processos, percebemos como maior eram nossos mecanismos de armazenamento de longo prazo. Pudemos nos aproximar de Kandel (2.000), neurocientista que estava em evidência no Brasil quando do início dessas nossas experienciações: “o mapa da memória só se mantém estável quando há atenção”.
O leitor já pôde observar como se dão suas percepções do corpo e da mente? Pôde observar o quanto somos “passivos” em nossas percepções? O quanto nossa “plena atenção”, a qual deveria ser uma das condições essenciais a toda e qualquer percepção, não passa de uma atenção a algumas impressões que o corpo e a mente experienciam após cada contato com um objeto externo ou interno? Pôde perceber o quanto somos “relatos parciais de memórias”, como nos aponta Sperling? Ou seja, o quão pouco nossas memórias são constituídas da plena atenção aos nossos processos corporais e mentais? E numa tentativa de tornar poética nossa fala, o quanto somos “cegos de atenção”?
Algumas são as pesquisas e trabalhos desenvolvidos sobre os processos cerebrais produzidos pela Meditação da Plena Atenção (Mindfulness). Em especial, quanto ao aumento da densidade hipocampal (Frewen, P.) e das áreas associadas com a atenção (Brefczynski, L.), e as respostas do córtex pré-frontal (Cheng, R.) e áreas cinguladas (Corrigan, F. M. e Holzel, B.).
Tendo como experienciação a “neuroplasticidade” (a propriedade de “plasticidade” do sistema nervoso – a interrelação existente entre várias regiões cerebrais e o potencial de áreas remanescentes assumirem o controle quando uma região específica for comprometida) e a sua possibilidade de “criação” e de “recriação” a partir das conexões sinápticas, que estudos e pesquisas como o papel ativo da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness) na intensificação dos vários mecanismos de armazenamento da memória possam ser um dos objetos de nossa “plena atenção”. E o começo... Experienciar a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness).
Referências Bibliográficas:
BUDDHADÂSA BHIKKHU . “Mindfulness with Breathing: A Manual for Serious Beginners” Boston: Wisdom Publications, 1.997.
“Dicionário Etimológico Nova Fronteira”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.986.
GUNARATANA, Venerable Henepola. “Mindfulness in Plain English”. Boston: Wisdom Publications, 1.995.
KENDAL, Eric. “Em Busca da Memória”. São Paulo: Companhia das Letras, 2.002.
LENT, R. “Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência”. São Paulo: Atheneu, 2.005
MONTEIRO, Pedro. “A Mente e o Significado da Vida”. Belo Horizonte: Gutemberg, 2.006.
NYANATILOKA. “Buddhist Dictionary: Manual oh Buddhist Terms and Doctrines”. Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1.994.
ROSENFIELD, Israel. “A Invenção da Memória: Uma Nova Visão do Cérebro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.994.
SHAKER, Arthur. “A Travessia Buddhista da Vida e da Morte: Introdução a uma Antropologia Espiritual”. Rio de Janeiro: Gryphus, 2.003.
*Psicoterapeuta com Especialização em Psicoterapia Clínica do Adulto e do Casal.
Formação em Coreoterapia – terapia do movimento e da dança; AnáliseJunguiana e Arteterapia Símbólica; Terapia do Casal; Terapia Familiar.
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Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), Neurociências e Saúde:
1
abrindo perspectivas
Arthur Shaker Fauzi Eid
Casa de Dharma - SP
Este texto traz reflexões sobre as interfaces entre a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), as Neurociências e a Psicologia no campo da Saúde, a partir dos frutos dos cursos, de mesmo nome, iniciados em setembro de 2010, na Casa de Dharma, com duração de um ano, desenvolvido em equipe, e dirigido a profissionais da área de saúde (médicos, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, etc.), bem como a interessados.
Saiba mais em: Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), Neurociências e Saúde
Não há concentração sem sabedoria
Não há sabedoria sem concentração.
Aquele que tem ambos
está próximo da paz e da emancipação.
Dhammapada
Vipassana e Samatha:
A meditação ensinada pelo Buddha
O que é a meditação Vipassana e Samatha? Por que meditamos?
Meditamos para purificar a nossa mente da cobiça, do ódio e da ignorância, que nos mantém no sofrimento do ciclo de nascimentos e mortes, o Samsara. Purificando, libertamos a mente. Isto é Nibbana.
Samatha é a meditação que treina nossa mente a obter tranquilização e concentração, usando um foco determinado e procurando manter a atenção nesse foco. A respiração, mas não apenas a respiração, é um dos importantes focos referidos pelo Buddha. Mas apenas concentração e tranquilização não são suficientes. Ao sairmos do estado concentrativo, as impurezas ressurgem. É preciso praticar Vipassana.
Vipassana é a meditação que treina nossa mente a ver a realidade com clareza, como ela é: insatisfatória (dukkha), impermanente (anicca), destituída de substancia própria (anatta). Vendo diretamente que nosso corpo e mente têm estas três características, cultivamos o não-apego, a amorosidade e a sabedoria.
Samatha e Vipassana são os meios hábeis da meditação do Budismo Theravada, as duas asas do vôo de libertação.
Saiba mais em:
Bhante Henepola Gunaratana. Mindfulness in Plain English. USA: Wisdom, 2002.
Bhikkhu Bodhi. Dois Estilos de Meditação Vipassana (2000). http://www.acessoaoinsight.net/
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http://casadedharmaorg.blogspot.com/
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A Fisiologia da Meditação
É possível misturar Yoga e meditação budista?
Bhante Yogavacara Rahula
The Bhavana Magazine, vol. 6 no. 1, Inverno 2005, USA
Tradução: Arthur Shaker – Casa de Dharma
Tem sido uma crença largamente sustentada entre os budistas Theravada tradicionais que a prática de yoga e o Budismo não se misturam – ou não deveriam ser misturadas. A Yoga provém dos Vedas e da tradição Hindu, com sua crença central no atman ou supremo self, o que parece ser diametralmente oposto ao ensinamento do Buddha sobre anatta ou o não-self. Além disso, existe o estigma do Buda ter praticado yoga como parte da auto-mortificação, e depois tendo ao final rejeitado a auto-mortificação como algo fútil. Também não ajuda o fato, no Ocidente, da yoga ser praticada principalmente como um sistema de exercícios para a saúde, a energia, ou o relaxamento, para não mencionar a boa aparência, como é visto nos inúmeros vídeos, nas coloridas revistas e na infinidade de declarações de celebridades.
Em alguns centros de meditação vipassana existem regras contra os exercícios de yoga durante os retiros intensivos. Tais exercícios são considerados uma distração para o puro focamento interior, ou uma fuga do lide com a dor física de uma longa meditação sentado, ou do lide com o tédio. Eu mesmo experienciei estas atitudes vindas de outros, durante meu treinamento inicial na Ásia, e também quando comecei a ensinar os retiros de vipassana nos quais incluí alguns exercícios e respirações yóguicas. Pode haver certa verdade na idéia de que algumas práticas de yoga podem não ser aplicáveis a algumas formas de meditação budista. Ainda assim, isso não significa que devamos “jogar a criança fora junto com a água do banho”.
O próprio Buddha, em trechos de abertura de alguns suttas importantes em Pali, recomendava sentar com as pernas cruzadas (se presume que seja a postura de yoga do lótus completo), e manter a espinha ereta quando se inicia a meditação sentado. E algumas outras pequenas recomendações referentes às condições físicas específicas (além da boa saúde e meditação andando) são mencionadas nos textos em Pali, o mais antigo dos ensinamentos do Buddha. Na escola Nyingma do Budismo Tibetano, um sistema de exercícios de conscientização física, chamado Kum Nye, tem sido desenvolvido e ensinado aos praticantes ocidentais. Muitos budistas chineses praticam T’ai Chi, Qi Gong e outras artes marciais. Mas, por outro lado, o exercício físico como um suporte para o desenvolvimento meditativo-espiritual tem sido largamente negligenciado por budistas, e algumas vezes olhado com desdém. Isto tem levado alguns meditantes budistas sinceros a se tornar “yogis reservados”, que não querem ser vistos fazendo yoga.
Crescendo o reconhecimento
Ainda assim, o reconhecimento e a popularidade da prática do Hatha Yoga entre meditantes budistas ocidentais vêm aumentando. Alguns poucos anos atrás, a importante revista Yoga Journal publicou um vasto artigo sobre a prática de yoga para meditantes budistas. Mesmo alguns proeminentes professores ocidentais do Dharma têm recentemente se manifestado com apoio a esta prática.
Esta prática circunscreve-se basicamente à noção da yoga como um sistema de benéficos exercícios corporais e respiratórios, de modo a promover a saúde, a cura de problemas físicos, a incrementar a energia física e assim por diante, todos os quais são saudáveis para a meditação. Meditantes antigos, assim como os iniciantes que sofreram de rigidez, preguiça, corpos doentes, agitação ou mentes sonolentas experimentaram notáveis, e algumas vezes estupendas melhoras em suas meditações após praticarem exercícios de yoga, mesmo que por um curto período de tempo.
Para sermos corretos, a yoga é uma antiga ciência espiritual do corpo e da mente, que tem também como seu objetivo, assim como o Budismo, a iluminação e moksha (a libertação das repetidas rodas de nascimento e morte no samsara). E análogo ao Budismo, a yoga tem sua própria versão do óctuplo caminho – Ashtanga Yoga (a Yoga dos oito ramos). Asana e pranayama (a postura e o controle da respiração), que se refere à yoga popular, são o terceiro e quarto estágio do caminho óctuplo. Elas precedem as elevadas “práticas interiores” da concentração e meditação. A purificação, o fortalecimento e o equilíbrio da respiração, da circulação, dos sistemas nervoso e glandular são vistos como o pré-requisito necessário para que a meditação profunda progrida de modo estável rumo à realização e à iluminação. Se a meta Hindu-yoga da auto-realização e moksha é igual à iluminação e liberação budista, isto é algo para além do escopo deste artigo, e bem poderia ser um tema de debate entre os eruditos.
O que provavelmente não é uma questão de debate é a conexão entre corpo e mente, ao menos no nível relativo em que a maioria de nós vive e medita na maior parte do tempo. O corpo influi na mente e a mente influi no corpo. Quando você está doente, com uma dor crônica, ou se sentindo fraco, você sente mais dificuldade de pôr esforço para meditar. Se o corpo é rígido, com uma pobre circulação de sangue e de força vital; se você não consegue manter a espinha ereta, e sentar-se é desconfortável, então a meditação é menos proveitosa, mais dolorosa, desencorajante, e seu progresso será lento. Apenas aqueles que já atingiram um alto grau de desenvolvimento meditativo podem talvez transcender esta relação corpo/mente.
Dor física e letargia são os dois maiores obstáculos que emperram o iniciante na meditação. Uma prática regular de Hatha Yoga pode ajudar a corrigir e aliviar alguns dos obstáculos físicos e bloqueios energéticos que tornam a meditação mais difícil do que precisaria ser. (E isto também se aplica às outras disciplinas do corpo/energia, como o T’ai Chi e Qi Cong, ambos os quais vêm também ganhando um modesto número de seguidores entre os meditantes budistas do Ocidente).
Plasma Cósmico
O maior objetivo ou efeito da Hatha Yoga é purificar e condicionar o corpo/ mente/ sistema nervoso, de tal modo que ele se torna um veículo propício para a prática da meditação. A meditação acontece através do sistema nervoso. A mente é afetada pelo estado do sistema nervoso. A purificação e o fortalecimento do corpo permite que você progrida na meditação sem os indevidos obstáculos físicos como a circulação pobre, a inabilidade de manter a coluna ereta, a dor de juntas duras ou músculos tensos, baixa energia e assim por diante. A Hatha Yoga ajuda a gerar e a circular uma generosa quantidade de força vital, chamada prana ( ou chi em chinês) por todo o sistema corpo/ mente/ sistema nervoso.
Você pode pensar em prana como a eletricidade cósmica invisível que pervade o universo e sustenta todas as formas vivas. Cada estrela é um sol e todas as suas energias combinadas pervadem todo o sistema solar. Como há milhões de sóis pelo universo, não é difícil imaginar este conceito de prana. Todos sabemos o que acontece quando o contato com a luz solar é interrompido por um tempo muito longo. O prana não é oxigênio, hidrogênio ou nitrogênio, mas é o que dá vida a estes elementos essenciais, que mantêm nossas células vivas.
O prana é referido na yoga como o “Plasma Cósmico”. Nosso corpo, ou qualquer corpo material, é feito de bilhões de células. A força vital prânica tem de passar por cada célula para mantê-la energizada. É análogo ao processo como uma bateria é mantida carregada pela estável corrente fluindo do polo negativo para o positivo. Se o fluxo de corrente for interrompido, a bateria perde seu poder e descarrega. Doença e dores, e mesmo problemas mentais podem surgir quando a força vital é insuficiente e não está circulando apropriadamente para manter as defesas do corpo e outras funções vitais. Os exercícios físicos e respiratórios na Hatha Yoga são indicados para manter esta força vital prânica fluindo pelo corpo de modo harmonioso e para alcançar um perfeito equilíbrio.
O corpo recebe a maior parte deste prana através do processo respiratório. Quantidades menores provém também através da comida e da água que ingerimos. O prana circula através do corpo por inumeráveis e invisíveis canais sutis chamados nadis, que permitem que a força vital chegue a todas as áreas e células do corpo. Na anatomia da Yoga, esses nadis passam através do maior nervo pléxico (como o plexo solar) situado na coluna. Estes nervos pléxicos estão associados a centros de energias chamados chakras, os quais têm características emocionais e psíquicas associadas a eles.
A circulação do prana se torna inadequada e inibida devido à respiração pobre e superficial, à postura curvada, a rigidez e a falta de flexibilidade dos tecidos musculares e das juntas. O fluxo de prana também é afetado pelas emoções negativas como a raiva, a luxúria, o estress, a ansiedade e o medo. Quando o prana é inadequado, perturbado ou preso, pode surgir todos os tipos de dores e problemas psicológicos. Restabelecer um fluxo livre e adequado desta força vital é da maior importância para a saúde global do corpo/ mente/ sistema nervoso. Isto é verdadeiro e pertinente principalmente para as pessoas que estão começando a meditar, ou que têm meditado, mas sentem que seu progresso está estagnando ou decaindo; eles estão meditando mais, porém usufruindo menos.
Três partes
O princípio básico da respiração yóguica é aprender como respirar nas três principais partes dos pulmões. Isto é chamado a respiração nas três partes ou a respiração completa (vibhaga pranayama). Os pulmões têm três lóbulos principais: o inferior ou lóbulos abdominais, o médio ou lóbulos intracostais e o superior ou lóbulos claviculares. Cada um desses lóbulos afeta o fluxo da força prânica vital para uma parte específica do corpo. O ar nos lóbulos inferiores afeta o fluxo do prana para a pélvis, quadris e pernas; a respiração do lóbulo médio afeta toda a parte do tronco do corpo e os órgãos vitais ali alocados; a respiração no lóbulo superior envia para o pescoço, cabeça/ cérebro e os braços. Se nós não respiramos suficientemente nestes três lóbulos, estas partes corporais correspondentes não recebem força vital suficiente para um funcionamento conveniente. Como resultado, muitos problemas associados podem surgir.
É fato que a maioria das pessoas, em condições normais, respira usando apenas um décimo da capacidade pulmonar; usualmente apenas uma pequena porção nos lóbulos inferiores e médios. Raramente o ar chega até os lóbulos superiores, a não ser que se esteja fazendo um forte esforço. A Natureza fez os pulmões em seu tamanho por uma boa razão: para usar! Mas devido às posturas curvadas e ao estress moderno, às neuroses e outros estados emocionais confusos e turbulentos, a respiração na maioria das pessoas é curta, rápida e superficial.
Por causa da respiração curta e superficial, o corpo precisa respirar rapidamente, de modo a trazer mais oxigênio para manter as células vivas. De um ponto de vista da yoga, isto não é saudável. A respiração saudável é a lenta, profunda e completa, a qual irriga uniformemente todo o corpo (incluindo o cérebro) com ondas suaves de eletricidade cósmica. O ritmo ideal de respiração é: quatro a oito segundos para inspirar nos três lóbulos, prender a respiração por três segundos (para permitir a completa absorção do oxigênio no sangue), permitindo a expiração entre quatro e oito segundos, e pausando entre um e dois segundos antes de inspirar novamente.
Treinando-se a respirar desse modo, mesmo que por três ou cinco minutos, permite trazer mais oxigênio e força vital, e melhor distribuição pelo corpo de uma maneira mais relaxada e branda. Como resultado, o ritmo da respiração e do coração diminuem. Esta é uma das principais razões pela qual os yogis praticam a respiração pranayama – para regular, purificar e diminuir a respiração, de modo a facilitar a prática da meditação profunda. Respirar nesta maneira regular também ajuda, enquanto uma técnica inicial de concentração, a trazer a atenção para dentro, tirando a mente do mundo exterior e dos nossos pensamentos.
Além da respiração profunda, o corpo em si precisa ser forte e flexível de modo a poder sustentar e distribuir a força vital de uma maneira a mais efetiva, especialmente em termos de apoio à meditação.
Asana (literalmente “sentar firme”) é a terceira etapa do óctuplo caminho da yoga. Tradicionalmente, esta postura sentada é uma das várias posições sentadas de pernas cruzadas, especificamente o padma asana ou postura de lótus. Para desenvolver a concentração profunda (samadhi), o corpo deve ser mantido estável, com a coluna ereta, por longos períodos de tempo (de uma a três horas). Isto é para que a respiração e a energia prânica possam fluir livremente, permitindo que a mente se torne calma, concentrada e focada. Mas, se as juntas e os tecidos musculares forem rígidos e inflexíveis, então o sangue e a força vital terão dificuldades de penetrá-los. Torpor, desconforto e dor surgirão facilmente, para perturbar a mente, bloqueando a concentração.
É aqui que entram os exercícios de yoga.
A Plena Atenção Fluente
Existem dois principais modos de se fazer os exercícios de Yoga. As posturas podem ser sustentadas por certo período de tempo, usualmente de 30 segundos a três minutos; ou podem ser feitas com movimentos rítmicos em coordenação com a respiração lenta e profunda. Neste último método, adota-se uma posição com uma inspiração lenta (4 a 6 segundos), mantendo a posição com a respiração por alguns momentos, e então retornando à posição inicial ou à uma direção oposta com uma expiração lenta (4 a 6 segundos). Você faz uma pausa por um momento ou dois, e então a seqüência é repetida duas vezes mais, num total de três repetições. Então, você faz uma longa pausa para relaxar e sentir as sensações corporais sutis, antes de ir para diferentes exercícios feitos no mesmo modo fluente e plenamente atento.
É este estilo de praticar os exercícios de yoga, acompanhados com a respiração lenta e profunda, que eu concluí ser de grande benefício, especialmente para a prática da meditação vipassana focada no corpo. A consciência da respiração e do corpo é a primeira fundação da plena atenção. Coordenar a respiração regular e lenta com a repetição de movimentos simples de se curvar e alongar gera um poderosa, mas acalmante corrente de sensação de força vital, que pode ser sentida claramente. Tranqüiliza o sistema nervoso naturalmente e ajuda a mente a se tornar calma e concentrada. Se praticada imediatamente antes de sentar-se em meditação, isto gera uma consciência do corpo respiratório suave e boa. Você se sente bem assentado, criando o espaço para a meditação profunda, ou mesmo ocupando efetivamente a almofada já em meditação.
Em Yoga, o corpo é visto como um templo, uma vez que ele tem que estar preparado o suficiente para sustentar o desenvolvimento da consciência espiritual. A mente deve funcionar através do corpo/mente/sistema nervoso, de modo a experimentar e compreender com acuidade o mundo condicionado em sua tríplice característica (anicca [impermanência], dukkha [insatisfatoriedade], anatta [não-eu]), de modo a transcender o apego e o agarrar-se. Se a respiração e a circulação forem falhas, isto atrapalhará o sistema nervoso e outros órgãos vitais. Isto, por sua vez, fará surgir muitas perturbações na mente e no corpo. Isto dificulta o desenvolvimento da plena atenção, da concentração e da sabedoria.
Isto é, em resumo, a fisiologia da meditação. Isto é o benefício da yoga. Devido ao pequeno espaço, só é possível dizer um pouco sobre este tópico. Há outros aspectos da yoga que oferecem técnicas que podem ser benéficas para qualquer um, especialmente os iniciantes, e praticantes de meditação de todo tipo. Convém notar que nem todos talvez precisem destas técnicas. Buda nos lembra que nunca devemos negligenciar a meditação interior ou profunda por causa de uma obsessiva atenção em purificar o corpo. Em todas as coisas, deve-se encontrar o caminho do meio.