domingo, 13 de março de 2011

a Espiritualidade indígena
e os 500 e tantos anos da ambição moderna

Carta aos amigos indígenas

Arthur Shaker


Amigos. Os povos indígenas têm enfrentado muitos sofrimentos desde os últimos quinhentos e tantos anos da ambição moderna. Forças escuras vieram se movimentando pelo mundo já faz um bom tempo, trazendo muita dificuldade para os povos tradicionais de toda parte do mundo. Talvez ainda haja um tempo difícil. O que são essas forças escuras e como lidar com elas?

Foi a ambição que chegou aqui nas Américas, e na África e na Ásia há quinhentos e tantos anos atrás. A ambição é uma doença que queima dentro da mente dos homens desde os tempos mais antigos. De onde vem a ambição? O ser humano tem dentro dele o fogo,como que uma energia espiritual, que nos liga  ao Invisível. Esta energia pode conduzir nosso caminho espiritual ou ser o fogo da cobiça. Mas quando não entendemos corretamente o que é esse fogo e como dominá-lo, esse fogo vira ambição que engana e destrói. É isso que acontece com o mundo moderno.

Esse fogo é sabedoria e poder, luz e calor. Os Mbyá-Guarani ensinam que Ñamandu Ru Ete, quando criava o mundo, disse a Karai Ru Ete, o dono do fogo, para colocar pelo alto da cabeça dos humanos o fogo sagrado, tataendy, para trazer a força. Mas para esse fogo não criar um calor muito grande e perigoso, Ñamandu disse a Tupã Ru Ete, o senhor das águas e do trovão, para colocar no coração dos humanos a temperança, a moderação, yvára ñemboro’y.

Dominando esse fogo, os xamãs conseguem viajar e sonhar com outros mundos, mais profundos. Mas, conhecer e controlar esse fogo é difícil, precisa de muito esforço e orientação correta. Um povo tradicional tem os poderes para isso. Quando falamos tradicional, Tradição, alguns pensadores modernos ficam agitados, não querem entender. Pensam que é coisa atrasada, ultrapassada, contra o progresso. Mas não é isso. Os povos tradicionais são os que têm como fundamento e direção as verdades profundas que os seus criadores espirituais trouxeram do magnífico mundo do Transcendente, ou daqueles que alcançaram a Iluminação, como o Buddha. Isto é uma Tradição espiritual.

 
Alguns pensadores modernos dizem que os povos indígenas são muito diferentes um do outro, por isso não é possível falar em “povos tradicionais”, pois um não tem nada em comum com o outro. E não tendo nada em comum, não seria possível reunir os povos indígenas. É verdade que há muitas diferenças entre os povos indígenas, e essas diferenças são importantes e devem ser respeitadas. Os Sioux da América do Norte são diferentes dos índios Maya da Guatemala, os Xavante do Brasil são diferentes dos Aymara do Peru, são muitos os povos indígenas, com línguas e tradições diferentes. Mas todos falam que a origem do seu povo, e dos animais e plantas, é um princípio espiritual profundo.


Estou usando palavras para falar desse mundo espiritual, palavras como espírito, espiritual, espiritualidade. Não são nomes das línguas indígenas, e por isso não traduzem corretamente o pensamento indígena, e por isso devem ser consideradas com cuidado. Mas servem para nosso início de diálogo.

É verdade que cada povo indígena tem seu jeito de viver e se comunicar com o mundo dos espíritos. Mas aí está também uma verdade que é a base de todos os povos indígenas: todos falam que seus criadores tinham um grande poder espiritual, que todos os seres sencientes têm consciência, todos falam que este mundo está ligado ao Invisível. Os povos indígenas são diferentes, mas todos vieram do Invisível. É como o arco-íris no céu: são muitas cores, mas todas vêm da Luz branca, que passando pelas águas das nuvens, se abre em muitas cores. Será que o Invisível não é o Grande Mistério da origem de todos os povos e animais e plantas e seres de um vasto reino cosmológico?

Tudo que é vivo tem dentro dele esse fogo do Invisível. É esse fogo que faz tudo nascer, crescer e ficar alegre e dançar contente. Muitas tradições espirituais têm presente seus seres de poderes como criadorres do seu mundo. E  que quando os seres de poder criaram o mundo, eles ensinaram para seu povo as leis de viver de um jeito que esse fogo não queimasse tudo. São as leis da Tradição, para defender os humanos, as árvores e animais e conversar com os os vários reinos espirituais. Nas tradições antigas da Índia (o Hinduismo e Budismo), essa Lei que sustenta e está presente em tudo, chamamos de Dharma (Dhamma). Na tradição hindu também está presente seus seres criadores. Na tradição ensinada pelo Buddha, entretanto, não há essa mesma concepção  de um deus criador, ou de uma alma ou espírito eterno. Não queremos ignorar que há semelhanças, mas também algumas diferenças entre as cosmologias das tradições espirituais e métodos diferentes para alcançar a realização espiritual. Mas também vemos que há uma noção aproximativa importante, a verdade da Realidade Última e Plena. E para realizá=la, devemos compreender e viver segundo as leis espirituais próprias de cada tradição espiritual. O mundo moderno esqueceu-se dessas leis, o fogo virou ambição e tomou conta do pensamento geral, como uma jibóia de boca bem grande comendo tudo sem parar, nunca está satisfeita, até que um dia explode.

Quando falamos em mundo moderno, não estamos falando de países, raça, cor de pele, pois lutamos contra qualquer tipo de racismo e preconceito. Quando falamos em mundo moderno, estamos nos referindo a um tipo de mentalidade, a mentalidade moderna que começou cinco séculos atrás no Ocidente, e que foi se espalhando pelo mundo, e que é dominada por uma visão e uma atitude materialista, e desespiritualizada perante a vida e os povos tradicionais.

Esta ambição da civilização moderna é uma semente que já estava plantada dentro do mundo desde o seu começo. Os homens de sabedoria da Índia dizem que o mundo nasce já com todas as sementes que vão brotar. No começo o mundo é mais brilhante, brotam as sementes de mais poder e luz espiritual, o mundo estava mais perto da magnífica origem. Por isso, dizem muitos povos indígenas, nos tempos muito antigos a palavra era criadora, era só dizer e as coisas apareciam. Os Xavante contam que no tempo dos criadores todos tinham poder, mas havia alguns seres especiais, que tinham muito mais poder, eram os criadores. Podiam criar só com a vontade, pensavam e se criava os alimentos e os animais, já com os nomes.




Muitas leis começaram a ser quebradas, isso era inevitável pela própria tendência do mundo, e com isso muito desse poder espiritual foi se perdendo. O ciclo cósmico vai se des-enrolando e vão brotando mundos com menos poder e luz, cada vez se afastando mais desse poder espiritual, se materializando em velocidade crescente. Até parar, aí é o fim de um mundo. Muitas tradições já apareceram e desapareceram.

Não é que uma tradição se acabe, ela apenas volta para dentro do Grande Mistério Invisível. Não ouvi nenhum povo tradicional dizer que o mundo vai ficando mais luminoso. Não se encontra entre os povos tradicionais essa idéia do progresso e da evolução. Será que essa teoria é plenamente provada, ou é apenas uma idéia inventada pelo pensamento ocidental moderno? Para os povos tradicionais, o que encontramos é uma visão oposta. A tradição hindu, por exemplo, diz que o Cosmos caminha para baixo. O materialismo vem crescendo muito, a ambição vai tomando conta de tudo, destruindo a Natureza e os povos indígenas. Essa doença hoje já se espalhou pelo mundo inteiro.

Não foi a expansão dessa ambição que trouxe a invasão das Américas, a África e a Ásia há cinco séculos atrás? Isso não faz parte dessa tendência cósmica para baixo? Nada é por acaso. Diz a tradição hindu que estamos já há muito tempo na quarta e última etapa desse ciclo, fase chamada de Kali Yuga, a Idade Escura. Esta verdade também aparece em muitas tradições indígenas. A espiritualidade do mundo e dos homens vai se perdendo rapidamente, o tempo passa correndo cada vez mais.

Cada vez mais escuro e pesado, o mundo vai sendo puxado para baixo, como a correnteza do rio arrastando tudo. Para lutar contra essa correnteza, os povos tradicionais têm seus rituais e conhecimentos para defenderem o equilíbrio da vida na Terra e manter a comunicação com o mundo espiritual. No Budismo, ritos não são importantes, o incentivo está no caminho de purificação da mente, prtaicando o Nobre Caminho da  virtude, da concentração e da sabedoria. Isso inclui o espeito e proteção pela terra e por todos os seres vivos. Mas o que é preocupante é que talvez chegue o tempo em que não vai dar mais para proteger o mundo.

Olhando para a história do Ocidente, vemos que esses povos ocidentais também tinham suas leis espirituais no Cristianismo. Mas essas leis foram esquecidas, e os valores cristãos abandonados. Diz a história que quando um outro povo guerreiro fechou a passagem do comércio do Ocidente por terra, o comércio ficou difícil. Então os grandes comerciantes dos países ocidentais resolveram se aliar com os governantes e deram muito dinheiro para os navios procurarem caminhos pelo mar para o comércio. Começaram as grandes navegações, procurando terras e riquezas. A ambição começou a crescer.

O Cristianismo ensinava que se deveria viver uma vida de respeito e amizade com os outros, e que o pensamento deveria estar sempre no Deus. Que não se deveria ter muita ambição com as coisas materiais, mas se esforçar para seguir o exemplo do Cristo e alcançar o reino dos céus, onde tudo é bom. Mas se foi esquecendo disso. A tradição religiosa dos colonizadores começou a enfraquecer. Riqueza e lucro virou o grande desejo deles. Queriam ter bastante lucro, tomar as terras e as riquezas dos outros, só pensavam nisso. Foi virando uma febre dentro da cabeça deles.

Aquelas sementes da ambição material que estavam guardadas dentro do mundo desde os tempos antigos começaram a querer crescer como fogo na floresta. E essa mentalidade abriu as portas para essas sementes terríveis crescerem com uma força violenta. Os antigos dizem que isso iria acontecer, que iria ter de acontecer, porque as sementes escuras também estão dentro deste mundo, iam ter de brotar e crescer e se espalhar até se esgotarem. As histórias dos povos antigos contam que já aconteceram coisas parecidas em outros tempos do passado. Mas agora o perigo é muito maior e está ameaçando o equilíbrio espiritual de toda a Terra. Por isso os antigos dizem que a essa mentalidade materialista moderna é a loucura e vai destruir este mundo.

O líder espiritual indígena Davi Kopenawa, do povo Yanomami, disse certa vez que rotukala, o mundo, está cansado. Que vai chegar a hora em que o nosso mundo vai explodir. Falou que um dia se iria lembrar dessas palavras dele, porque a poluição está aumentando, está chegando na floresta, está matando as árvores, está caindo nos rios e matando os peixes. A poluição cai na cidade e vai longe porque o vento leva. Falou que os índios que estão cuidando deste planeta estão ficando doentes, e quando rotukala cair encima da gente, não vai ter para onde correr e se esconder. Essa ambição moderna é como uma cobra querendo engolindo tudo. Quando todos os xamãs morrerem, dizem muitos líderes indígenas, o mundo vai virar, vai quebrar, e ninguém vai escapar. O céu vai explodir. Vai cair e achatar a Terra. Será que a humanidade quer isso para si?

O mundo moderno gosta muito de mostrar com orgulho seus produtos industriais, fala-se muito em progresso, desenvolvimento, mas será que quem trabalha dentro de uma fábrica acha esse tipo de trabalho uma maravilha? Os povos indígenas, alguma vez aceitaram esse jeito de trabalhar?

Junto com isso, surgiu um tipo de pensamento, onde os homens, a sociedade e a Natureza não têm mais significado espiritual, é como se fosse apenas matéria, sem consciência ou mente. Muitos povos tradicionais falam que nosso mundo visível é só uma aparência, uma sombra do outro mundo magnífico e luminoso, o Invisível. Nosso mundo é como um espelho que só reflete um pouco do brilhante mundo transcendente. São muitos os mundos povoados de seres divinos, devas enfeitados, esses mundos são como camadas de luz até o Grande Mistério. Nenhum povo tradicional diz que só tem esse mundo material visível. Nosso mundo é só a superfície de um Oceano Luminoso Infinito.

Muitos pensadores da sociedade moderna dizem que esse conhecimento dos povos indígenas não é ciência, é só uma “crença”. Estuda-se muito os povos indígenas de todas as partes do mundo, mas será que se entendeu corretamente? Porque muitos pensadores chamam de “crença” a sabedoria dos povos indígenas? Será que não se está usando essa palavra “crença” para diminuir o valor do conhecimento dos povos tradicionais? Como o pensamento moderno não tem mais nenhuma ligação com o Invisível, quer-se com isso reduzir a força da sabedoria indígena, rotulando com o nome pejorativo de “crenças religiosas”. Às vezes até dizem que essas “crenças indígenas” devem ser respeitadas porque são o pensamento dos povos indígenas, mas no fundo muitos acham que o conhecimento indígena não tem a mesma força de verdade da ciência moderna. No fundo, ainda se pensa que o pensamento moderno fez um grande progresso no conhecimento, deixando para trás o conhecimento espiritual dos povos tradicionais e criando “o verdadeiro conhecimento científico”. Mas o que é um “verdadeiro conhecimento científico”?

Quando estudamos de perto, percebemos que é só no pensamento moderno que encontramos a idéia de que existe apenas esse mundo visível, e que o homem veio do macaco. O conhecimento materialista é colocado como “o científico e verdadeiro”, enquanto que o conhecimento dos povos antigos seria “crenças religiosas” e “não-científico”. Mas será isto mesmo? Ou não seriam dois tipos de ciências, onde no pensamento moderno o mundo visível não tem mais ligação com a Raiz Invisível, enquanto as ciências dos povos tradicionais, pelo contrário, estão sempre vendo este mundo ligado ao Invisível? Quer dizer que talvez o conflito não seja entre “ciência” e “crença religiosa”, mas entre dois tipos de ciência: uma que não tem espírito e outro em que tudo tem uma ligação com o Invisível, o sagrado. Não é que a ciência moderna esteja totalmente errada. Ela tem uma visão quantitativa dos fenômenos e baseado nisso ela criou a tecnologia moderna. Mas o problema é que esta visão quantitativa é só a superfície dos fenômenos, por isso ela não pode pretender ser a visão única e a mais correta dos fenômenos, pois ela não tem a qualidade e profundidade do conhecimento espiritual tradicional.

Por exemplo, o Sol. Para a ciência moderna, o Sol é apenas uma massa de gases explodindo e produzindo energia em forma de luz e calor. Mas para o povo indígena Desâna, o Sol é mais que isso. De acordo com seus relatos míticos, em seu livro Antes o Mundo não existia, o Sol é a criação de Yebá bëlo, a avó do universo, e seu bisneto, Yebá ngoaman. Com seu cetro-maracá, yéi waí ngoá, enfeitado com mahá weá iëhse (araras, muitas penas) e com abé põn mihi (sol, brincos), a ponta do bastão-maracá se transforma em um rosto humano que irradia luz. Era o Sol, sendo criado, aparecendo.

Estamos hoje vivendo uma grande crise ecológica. Muitos estão preocupados com a rápida destruição do meio ambiente. Isto é porque a civilização moderna cortou a ligação entre a Natureza e o Invisível. Tirou da Natureza sua qualidade espiritual e transformou a Natureza em um objeto de consumo, apenas uma matéria  que serve só como matéria-prima para a produção de mercadorias. Muitas medidas estão sendo pedidas para defender o meio ambiente, isto é importante, mas é preciso mostrar que a Natureza está sendo destruída por causa da grande ambição de consumo que tomou conta do mundo. Muitos querem salvar a Natureza, mas não querem diminuir seu apetite consumista. O que chamamos hoje de “crise ecológica” é também conseqüência da visão desespiritualizada do mundo moderno.

O mundo moderno virou as costas para seu objetivo e responsabilidade espiritual pelo planeta. Por isso a Terra está cansada. Por isso os xamãs dizem que quando eles acabarem, o mundo acabará, porque são eles que ainda lutam para defender o equilíbrio espiritual do mundo. Mas tudo neste mundo tem limite.

Não foi apenas da Natureza que foi tirada a espiritualidade. A mentalidade moderna também inventou uma sociedade regrada apenas pela visão materialista. A mentalidade moderna inventou uma sociedade que não é mais governada por verdades espirituais, mas por leis onde quem manda é o poder econômico. Neste modelo de sociedade ainda se trata os povos indígenas com discriminação e preconceito, forçando muitas vezes os povos indígenas a aceitarem leis que não são as leis que seus criadores espirituais ensinaram. Quando um povo indígena reclama o direito de seguir suas próprias leis, e afirma que é um povo com identidade própria, aí se vê que liberdade, igualdade e fraternidade nem sempre chega até ao direito indígena.

Será que a mentalidade moderna também não obscureceu a visão espiritual do homem? Como se o homem fosse apenas corpo e cérebro, uma barriga com muita fome e uma cabeça em que só funciona o pensamento e as sensações. Isso é o que vemos, a mentalidade do racionalismo. O racionalismo é uma forma de ver o mundo apenas como "matéria", sem a mente. O pensamento é uma qualidade humana importante, mas a razão sozinha é suficiente? A razão só trabalha corretamente quando é orientada pela sabedoria, que mora talvez não apenas no cérebro, mas no coração interior profundo.

Sem o entendimento de nossa natureza espiritual mais profunda, o fogo interior se transforma em loucura que destrói o mundo. É isso que estamos vendo. A violência sobre os povos indígenas desde há muito tempo não é apenas uma violência física e mental. É a violência contra as verdades espirituais que estão na raiz da humanidade.

Amigos indígenas:

Possam vocês continuarem com a coragem e sabedoria para proteger suas tradições, e superar as dificuldades destes tempos.

Possam todos os seres deste mundo despertar para as verdades profundas, e se orientando por elas, protegerem a si mesmas e a todos os seres, e superarem os sofrimentos do corpo e da mente, sofrimentos criados pela cobiça, pelo ódio e pela ignorância.