BUDISMO - Ensinamentos Básicos Introdutórios
Arthur Shaker
Arthur Shaker
A origem histórica e mítica de
Siddhartha Gautama. A busca pelas derradeiras purificações até se tornar um
Buddha. As Quatro Nobres Verdades. Buddha e a questão do sistema de castas do
Hinduísmo. A perspectiva budista sobre o renascimento e reencarnação. As
principais características das várias escolas budistas que se desdobraram na
Ásia, após a morte do Buddha.
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Os Grandes Discípulos do
Buddha
Sinopses do livro The Great
Disciples of the Buddha,
Nyanaponika Thera and Helmut Hecker, edited by Bhikkhu Bodhi.
Boston: Wisdom, 2007.
Com autorização do BPS Buddhist Pali Society, Kandy, Sri Lanka, 7 de março de 2018
1
Possam esses que foram os grandes discípulos
do Buddha nos inspirarem e nortearem nossos caminhos, com seus ensinamentos e
notáveis exemplos. Para aqueles interessados em maiores informações, incentivamos
fortemente irem à própria fonte, o belo livro referido. Muita gratidão e
méritos ao generoso doador desse livro.
Através de breves sinopses,
seguiremos alguns ângulos de suas vidas, obras e legados: Sariputta, MahaMoggallana,
Mahakassapa, Ananda, Anuruddha, Mahakaccana, as Nobres mulheres discípulas,
Angulimala, Anathapindika. E o chefe de família Citta, o Bhikkhu Citta, e o pai
e mãe Nakula.
O livro inicia com o Venerável
Sariputta. Junto com MahaMoggallana, são arahants considerados os dois maiores
discípulos do Buddha: Sariputta à direita, MahaMoggallana à esquerda do Buddha.
Sariputta, por suas elevadas qualidades cognitivas, é referido como o
Comandante-Guia (Marshall) do Dhamma; Mogallana, o Mestre dos Poderes
Psíquicos.
A história de ambos se inicia antes
do Buddha Shakyamuni ter aparecido no mundo. Segundo os Jatakas (relatos das
vidas passadas do Buddha), os dois eram amigos, de nome Upatissa e Kolita,
filhos de duas mulheres brâmanes de famílias muito amigas. Jovens, ambos já
tinham uma mente instruída e maestria em todas as ciências, e cada um 500
jovens seguidores brâmanes. Mas, durante um festival anual, viram o espectro da
mortalidade humana, se desencantaram dos festivais, e ansiando pelo caminho da
libertação da roda dos renascimentos, abandonaram seus lares, e se tornaram
ascetas ordenados e instruídos pelo asceta andarilho Sanjaya.
Em curto tempo, aprenderam toda a
doutrina de Sanjaya, mas insatisfeitos com a limitação desses ensinamentos, seguiram
adiante, passando por muitos ascetas sábios ou brâmanes, sem que fossem respondidas
suas questões. Separaram-se, com a promessa de se comunicarem assim que um
encontrasse o caminho da Imortalidade. Coube a Upatissa cruzar com o caminho de
Assaji, o primeiro dos cinco discípulos do Abençoado. Os dois primeiros versos
de Assaji abriram a pura visão do Dhamma para Upatissa, o primeiro lampejo da
Não-morte, o caminho da entrada-na-corrente:
Das coisas que surgem
de uma causa
O Tathagata explicou
a causa!
E ao final dos outros dois versos,
ele já ouvira como um entrante-na-corrente:
E também o que é sua
cessação:
Esta é a doutrina do
Grande Recluso”.
2
Imediatamente, Upatissa foi ao
encontro de seu amigo Kolita, que, ouvindo os mesmos versos, também entrou na
fruição da entrada-na-corrente. Kolita quis que fossem imediatamente à procura
do Mestre, mas Upatissa, que sempre respeitava quem havia sido seu professor,
decidiu que fossem a Sanjaya, e o incentivassem a captar aquela verdade, e caso
isso não acontecesse, que ele fosse junto ouvir o Buddha e assim ele penetraria
o caminho e a fruição.
Sanjaya recusou seguí-los,
argumentando que, se tornando um discípulo, perderia seu status de professor. E
que se tolos havia muitos, e sábios poucos, “então os sábios irão ao sábio
recluso Gotama e os tolos virão a mim. Idem, eu não os seguirei”. E os dois se
foram, dizendo que um dia ele compreenderá seu engano. Após a partida deles, um
cisma ocorreu entre os discípulos de Sanjaya, seu mosteiro ficou vazio, e com
isso ele vomitou sangue quente.
E os dois amigos foram ao Buddha,
receberam ordenação, mas não se tornaram logo arahants, como os outros: um
longo período de treinamento preparatório era necessário para preencherem seu
destino pessoal, o de servir o Abençoado como seus principais discípulos, doravante
Upatissa referido como Sariputta e Kolita como Mahamoggallana.
O
que está envolvido nesta condição, nesta vontade, aspiração, destino tão
elevado, de alguém fazer um voto (e se dedicar a isto) de se tornar um
principal discípulo do Buddha? Um importante tema para nossa reflexão.
Após a ordenação, Mahamoggallana se
retira para intensiva meditação e austeridades, e no 7º dia alcança os três
elevados caminhos e chega ao ápice da perfeição de um discípulo principal.
Sariputta alcança o arahato apenas em tempo posterior ao de Mahamoggallana, 15
dias após sua ordenação, chegando ao ápice do conhecimento referente à
perfeição do discípulo, e realizando o arahato junto com os quatro
conhecimentos analíticos (patisambhida-ñaña).
Assim como aos reis é exigido extensas preparações para quando viajam,
similarmente se dá para se tornar o discípulo principal de um Buddha.
No mesmo dia, perante a assembléia
dos monges, Buddha outorga aos dois o lugar de principais discípulos. Alguns monges viram isto com desagrado e
murmúrios, afinal os dois foram os últimos a serem ordenados, não seria como
que passar por sobre grandes monges, mais antigos, como que por uma preferência
do Buddha?
Ao que o Buddha esclarece que ele
outorga a cada um de acordo com o que cada um tem como aspiração. Muitos éons
atrás (medida muito longa de tempo), na época do Buddha Anomadassi, Sariputta e
Mogallana fizeram esta aspiração pelo lugar de principais discípulos e agora as
condições se tornaram maduras para isto.
Isto
nos remete a um ponto fundamental da perspectiva budista, não apenas como visão
geral, mas no que cada um de nós deve refletir para si: podemos definir as
aspirações para nosso destino à longo prazo, e as frutificações seguirão a lei
do kamma.
E assim fizera Sariputta.
Incontáveis tempos atrás, nascera como Sarada, em uma rica família bramânica,
renunciando a seus bens em busca da libertação; e o futuro Moggallana nascia
numa rica família como Sirivaddhana. Naquele tempo, surgia no mundo o Buddha
Anomadassi, o 18º Buddha, na contagem anterior ao atual Buddha Gotama. Ele viu
o “lugar” especial do destino de Sarada, foi até ele, que reconheceu ser o
visitante o Iluminado, e Sarada ingressou na ordem monástica. Durante uma
semana em que o Mestre
entrava no estado meditativo de realização da cessação da percepção, sensação e
outros processos mentais, Sarada honrou o Buddha mantendo sobre sua cabeça um
ornamento de flores. Sarada não alcançou o arahato ou outro estágio de
santidade, mas viu surgir em sua mente a aspiração de se tornar no futuro o
principal discípulo de um Buddha.
Buddha Anomadassi, ouvindo essa
aspiração de Sarada, e, lançando sua visão para o futuro, viu que esta
aspiração não seria estéril. E confirmou-lhe que, num futuro longínquo,
surgiria um Buddha de nome Gotama, e que Sarada lhe seria seu principal
discípulo, com o nome de Sariputta.
Em seguida, dedicaram-se às boas
ações, Sarada em sua vida ascética meditativa e Sirivaddhana, como devoto
leigo, cuidando das necessidades da Sangha e fazendo caridades. Este renasce na
esfera celestial sensual, e Sarada, tendo maestrado as realizações de absorção
e os brahmaviharas, renasce no reino
de Brahma.
3
Segundo os Jatakas (narrações a
partir das 550 vidas anteriores do Buddha Gotama), as relações deles com o
Bodhisatta aparecem ao longo dessas vidas em variadas formas. Muitas vezes como animais:
como chefe de cervos, um de seus filhos como o Sariputta e o outro como o
futuro invejoso sobrinho Devadatta; o Bodhisatta como um ganso real que resgata
seus jovens filhos Sariputta e Moggallana de um desastre; como uma perdiz
preceptora de seus amigos, um macaco (Sariputta) e um elefante (Moggallana);
como um sábio coelho que ensina o valor da ética e da generosidade para um
macaco (Sariputta), um chacal (Moggallana) e uma lontra (Ananda). Testado sobre
sua determinação por Sakka, rei dos devas, disfarçado num brâmane faminto, o
coelho está resolvido a se lançar ao fogo para prover o brâmane com uma
refeição.
Em muitas ocasiões os dois futuros
discípulos foram de vital ajuda ao Bodhisatta: certa vez, como um picapau
(Sariputta) e uma tartaruga (Moggallana), libertaram o gamo (Bodhisatta), preso
numa armadilha. Mas houve situações trágicas, como quando de uma vez em que,
como uma perdiz que ensinava os Veda aos jovens brâmanes, o Bodhisatta é morto
e comido por um malvado asceta (Devadatta). Seus amigos, o tigre (Moggallana) e
o leão (Sariputta) descobrem isto, e o tigre, em sua ferocidade (o leão
Sariputta era de temperamento mais compassivo) mata o asceta. Em outros Jatakas,
é narrado eles renascerem em formas celestiais, como Sakka, Canda (o deus lua),
Suriya (o deus sol); como príncipes dos Nagas (serpentes semi divinas); como o
virtuoso príncipe Mahapudama, salvo do precipício pelo espírito da montanha
(Sariputta). Ou o Bodhisatta como o herói, exemplo supremo da virtude e
sabedoria, e Sariputta como seu amigo, ou aluno, filho, irmão, como condutor da
biga de guerra do rei (Bodhisatta), ou o general que, suplicando que o rei
(Bodhisatta) não se vingue, cobre-lhe os membros amputados pelo maligno rei
Kalabi (Devadatta) que o testava em sua paciência.
Uma
outra observação: como poderíamos compreender seus nascimentos no reino animal,
uma vez que, numa primeira perspectiva, esse tipo de renascimento denotaria
frutificações de maus kammas?
Frequentemente nos Jatakas longos,
Bodhisatta ingressa na vida ascética, seguido de Sariputta, inclinação que se
conclui na derradeira existência apenas quando adentram na vida sem lar. Mas
nem sempre Sariputta apóia as decisões de renúncia do Bodhisatta. Em uma de
suas vidas como rei, seu filho mais velho (Sariputta) e o mais novo (Rahula)
suplicam-lhe que abandone a idéia de se tornar um renunciante, exigindo do
Bodhisatta uma árdua luta interior para superar seu apego aos seus filhos. Em
outra vida, entretanto, quando o Bodhisatta vacila em assumir a renúncia, desta
vez Sariputta, como o asceta Narada, com um poder místico, aparece-lhe e o
encoraja a permanecer firme na decisão.
Assim fluem nos ventos do kamma
esses dois nobres seres, no rumo das aspirações plantadas em passados longínquos. Após
incontáveis vidas de prática das dez perfeições, de maturação das virtudes e
mútuas amizades e confianças, é chegada a hora da atualização do objetivo: há
2.500 anos atrás, na Índia, um emergirá como o Buddha Gotama, e o outro como
seu mais eminente discípulo, o Venerável Sariputta, Comandante do Dhamma.
Sariputta
Em certos suttas (DN 14, SN 47), o
Buddha declara que todos os Buddhas têm uma dupla de excelentes discípulos maiores,
como fator inerente da natureza da Ordem transmissora do Buddha. Três são suas
funções básicas:
- Ajudar o Mestre
na consolidação do Dhamma e sua máxima acessibilidade aos seres.
- Servir como
modelos exemplares e supervisores no treinamento dos monges.
- Assistir a
administração da Sangha, principalmente na ausência do Buddha.
A delegação de responsabilidade não
significa uma via democrática, nem uma via para status ou privilégios: Buddha é
a autoridade última e fonte única dos ensinamentos, mas que como o Rei do
Dhamma (dhammaraja), delega a
supervisores tarefas de treinamento. Mais que privilégios, são imensas e pesadas
responsabilidades, um compartilhar na compaixão que pesa sobre o Buddha, e no
trabalho cooperativo para que o Dhamma se torne “bem sucedido e próspero, extendido, acessível, difundido,
bem proclamado entre devas e humanos” (DN 16; SN 51:10).
Interessante observarmos ser uma
dupla, a de assistentes principais: um pela excelência em sabedoria (mahapañña) – Sariputta, outro pela
versatilidade no exercício do poder espiritual (iddhi) – Mahamoggallana. Estão aqui presentes os arquétipos da
presença do Dhamma no mundo: Sabedoria e
Poder. Reencontramos essas realizações arquetípicas nas figuras do Monge e
o Guerreiro, o Sacerdote e o Rei, Krishna e Arjuna. Mas isso se aplica a cada
um de nós: o cultivo da sabedoria espiritual (pañña), e a energia (viryia),
a coragem, o destemor, a determinação guerreira (adithana), necessária para a nossa luta interna, dentro de cada um,
a luta entre nossas tendências saudáveis e as não-saudáveis.
A tarefa espiritual de Sariputta,
por sua via de realização, é a de sistematização da doutrina e a análise
detalhada de seus conteúdos, desenhando as sutis implicações do Dhamma e
explicando seus significados com uma riqueza de detalhes. A tarefa especial de
Mahamoggallana se fundamenta em seus poderes espirituais (portanto, não
mundanos, não dirigidos para o domínio de outros ou ao auto engrandecimento) –
poderes advindos da maestria da concentração (samadhi), que abre o profundo conhecimento das forças fundamentais
que governam mente e matéria e suas sutis interconexões. Esses poderes são
usados para remover os obstáculos para o estabelecimento seguro da Ordem
monástica no mundo, e apoiar e transformar aqueles seres não facilmente
sensibilizados pela perspectiva gentil e transformadora da instrução verbal.
Sariputta e Mahamoggallana, por suas
realizações, são o modelo de realização para os monges, e professores ideais
para os quais os jovens monges podem se dirigir para a orientação e instrução.
Cabia a eles supervisionarem os assuntos da Sangha, sob a direção direta do
Abençoado, e em sua
ausência. Foi o Ven. Sariputta quem primeiro pediu ao Buddha
que estabelecesse o código das regras monásticas (Vinaya). Foi pela pouca
ênfase no ensino do Dhamma, pelo não estabelecimento das regras aos discípulos,
e pela não recitação do Patimokkha, que a Ordem monástica de alguns Buddhas
anteriores não durou muito tempo, lhes explicou o Buddha. Mas como o menos
desenvolvido dos discípulos era já um entrante-na-corrente, Buddha não iria
estabelecer essas precauções antes que os sinais de corrupção começassem a
aparecer na Sangha.
Frequentemente o Buddha encarregava
os dois para missões especiais: trazer de volta jovens monges arrebanhados pelo
seu cobiçoso sobrinho Devadatta; restaurar a ordem da Sangha ante à situações de
má-conduta de certos monges, pronunciando seus banimentos, quando, a despeito
das advertências, se recusavam a seguir a disciplina.
As excelências das
qualidades de Sariputta
Uma de suas proeminências era o de
muito ajudar os outros bhikkhus, seja oferecendo ajuda material (amisanuggaha) - cuidando do mosteiro,
dos doentes e suas necessidades; nas andanças, ao invés de ser o primeiro do
grupo, ficava para trás, ajudando os noviços e idosos, para só depois partirem
com eles; seja oferecendo a ajuda do Dhamma (dhammanuggaha) – por exemplo, com sermões a monges em situações
difíceis, como o caso de Samitigutta, sofrendo de lepra, para quem Sariputta
lhe dá a contemplação das sensações como objeto de meditação, após a qual
Samitigutta desenvolve insight, realiza os seis poderes supranormais (chalabhiñña) como um Arahant. Ou para o
enfermo leigo Anathapindika, sofrendo de severas dores, para quem Sariputta
lembra das libertações dos maus renascimentos que Anathapindika realizou como
um entrante-na-corrente, e da certeza de sua iluminação, ao que ao ouvir-lhe, a
sua dor diminui e ele se recupera de sua enfermidade. Ou no seu leito de morte,
para quem Sariputta dá um sermão sobre o não-apego a todos os fenômenos
condicionados. Anathapindika falece, renasce no céu de Tushita e em seu corpo
celeste reaparece para o Abençoado, recitando um verso em homenagem ao seu
principal discípulo. Sariputta combina as qualidades de um professor perfeito e
um perfeito amigo, sempre pronto a guiá-los à compreensão da mente humana e ao
interesse simpatético por outras pessoas. Sariputta era perseverante e com
muita paciência instruía novos grupos de discípulos centenas e milhares de
vezes até que eles se estabelecessem na fruição da entrada-na-corrente. Só
depois disso ele orientava o discípulo a seguir para outros professores.
Em suas excelentes qualidades, se
inclui a paciência, o não ressentimento, a capacidade de suportar ofensas. Sua
humildade era tão grande quanto sua paciência: estava sempre aberto a receber
conselhos e correções de qualquer um, não apenas com aceitação reverente, mas
também com gratitude. Sobre isso, Buddha contou o Alinacitta Jataka (Jat. 156),
no qual Sariputta era um grato elefante que dedicara sua vida a ajudar um grupo
de carpinteiros que o cuidaram quando ele estava ferido. Sua humildade e
tolerância se distinguiram em certas ocasiões em que invejosos monges lançaram
calúnias sobre ele (e Moggallana); ao final, com remorso o caluniador pede-lhe
perdão, e Sariputta lhe perdoa e também pede-lhe perdão se por acaso o tivesse
ofendido em algum modo.
E então Buddha recita este verso:
Sem
ressentimento como a terra, firme como a pilastra de um portão
Equilibrado
e forte nos votos
Com
a mente sem impurezas como uma lagoa
Para
alguém assim, o ciclo de nascimentos não mais existe”
(Dhammapada,
95)
O cultivo do perdão, pela meditação
do perdão, conforme nos foi ensinado pelo Bhante Buddharakkhita, é um
importante treinamento para superarmos o ressentimento, a mágoa, o orgulho do
ego; para o cultivo de metta (bondade-amizade amorosa) por nós mesmos e pelos
outros (em nossas faltas, criadas pela fraqueza de nossa plena atenção):
Eu
perdôo a mim mesmo, pelas minhas ações do corpo, fala e mente, que intencional
ou não intencionalmente, tenham criado algum sofrimento para alguém.
Eu
perdôo a todos aqueles que, por suas ações do corpo, fala e mente, que
intencional ou não intencionalmente, tenham criado algum sofrimento para mim.
Algumas vezes o
caluniador, mesmo após a advertência do Buddha, persistia na falsa acusação,
como foi o caso do monge Kokalika, que ao final teve seu corpo todo coberto de
furúnculos, até morrer, e renasceu no inferno, fruto de suas próprias ações
kármicas. Este incidente, que revela a importância do arrependimento, é
relatado no SN 6:10; Suttanipata: Mahavagga (10); Anguttara Nikaya (10,89) e
Takkariya Jataka (Jat. 481).
Qualidades como gratidão, bondade,
solidariedade e paciência renderam ao Ven. Sariputta muitas amizades profundas
que duraram por toda sua vida de monge, como a de Mogallana e Ananda, que o
admiravam e estimavam profundamente como um grande amigo, diante de cuja morte,
Ananda disse com emoção: “Quando o nobre amigo (Sariputta) se foi, o mundo para
mim mergulhou na escuridão”, conforme consta de modo comovente no Cunda Sutta
(SN 47).
Sariputta tinha três irmãos (Cunda,
Upasena e Revata) e três irmãs (Cala, Upacala e Sisipacala); todos os seis se
ordenaram e alcançaram o arahato. Foi apenas próximo ao final de sua vida que
ele conseguiu trazer ao Dhamma sua mãe, uma brâmane hostil aos ensinamentos do
Buddha. Há muitas conversações registradas entre Sariputta e Moggallana,
Ananda, Anurudha, Mahakotthita, Upavana, Samadhi, Savittha, Bhumija e muitos
outros monges; Sariputta sempre entusiasta em encontrar nobres monges.
O Meditador
Sua entrada no Dhamma se deu não
pelo caminho das absorções meditativas, mas pelo insight direto e espontâneo
sobre a condicionalidade de todos os fenômenos e o elemento incondicionado que
está para além da teia das causas e efeitos. Ao se tornar discípulo do Buddha,
entretanto, alcançou a maestria dos estágios da absorção meditativa, as nove
realizações meditativas: os quatro jhanas materiais sutis, os quatro estados
imateriais, e a cessação da percepção e sensação; e ouvindo o sermão do Buddha
para Dighanakha, surgiu-lhe o conhecimento final, libertando-o das impurezas
pelo não-apego. Os super poderes, não almejados por Sariputta, vieram-lhe como
que espontaneamente em seu processo de realização do arahato.
A expressão maior de sua sabedoria era
a sua facilidade nos quatro conhecimentos analíticos (patisambhida-ñaña):
- O conhecimento
analítico do significado: insight especial sobre o significado,
implicações e ramificações das doutrinas, bem como sobre os efeitos que
podem surgir de causas específicas;
- O conhecimento analítico
da doutrina: insight especial sobre as próprias doutrinas, suas
interconexões no quadro geral do Dhamma e causas originadoras dos efeitos;
- O conhecimento analítico
da linguagem: entendimento da linguagem, gramática e etimologia;
- O conhecimento analítico
da perspicácia: habilidade no manejo dos três conhecimentos referidos,
quando na exposição do Dhamma para o despertar de outros.
O Girador da Roda do
Dhamma
Sua habilidade como expositor do
Dhamma:
·
Mahahatthipadopama
Sutta
(O Grande Sermão no Símile da Pegada do Elefante, MN 28): Assim como a pegada
do elefante contém as pegadas de todos os outros animais, do mesmo modo as
Quatro Nobres Verdades contêm tudo que é saudável.
·
Sammaditthi Sutta (Sermão sobre a
Visão Correta, MN 29): sobre os cursos da ação saudável e não-saudável, os
quatro nutrimentos, as Quatro Nobres Verdades, os Doze fatores da originação
dependente e as impurezas. Uma obra prima de ensinamento.
·
Samacitta Sutta (AN 2: 35): ouvido
pelos “devas da mente tranqüila”. Sobre o resíduo dos renascimentos, que
aguardam os discípulos entrantes-na-corrente, uma-vez-retornantes, e
não-retornantes.
·
Sangiti
Sutta (Recital) e Dasuttara Sutta (A
série décupla) (DN 33 e 34): Compilação de termos doutrinais.
Compilação de termos doutrinais
Trabalhos Canônicos
·
Niddesa
(Khuddaka Nikaya), explicações de palavras, contextos, instruções lingüísticas,
versos em honra ao
Buddha , questões.
·
Patisambhidamagga
(tradução de Bhikkhu Ñanamoli, “O Caminho da Discriminação”, PTS, 1982), 30 tratados
sobre os tipos de conhecimento, e visões especulativas errôneas.
O
Abhidhamma
Ensinado pelo Buddha por três meses
no céu de Tavatimsa (o reino celeste dos 33, segundo a cosmologia budista) para
os devas dos 10.000 mundos, neles incluída a Rainha Maya, mãe do Buddha,
renascida como deva no céu de Tusita. Retornando, Buddha ensina o Abhidhamma
para o Ven. Sariputta, que retransmite o Abhidhamma (o 3º do Tipitaka, contendo
as estruturas conceituais dos Suttas) aos seus 500 discípulos.
O Parinibbana do Ven.
Sariputta
Sua última dívida foi paga em seu leito de
morte. Quando o Ven. Sariputta viu a proximidade de sua morte, pediu permissão
ao Buddha e se dirigiu à sua casa natal, onde pôde inspirar sua mãe brâmane,
até então hostil aos ensinamentos do Buddha, e ela se tornou uma
entrante-na-corrente.
As chamas da pira de sua cremação
foram apagadas pelo sênior Anurudha e o Sênior Cunda (seu irmão mais novo)
reuniu as relíquias e retornou para onde o Buddha se encontrava. Esses eventos
se encontram relatados no Cunda Sutta (SN 47:13). Tomando das relíquias em suas
mãos, o Buddha proferiu versos em honra às virtudes do seu grande discípulo, e
pediu que fosse erigido uma estupa (relicário) para as relíquias. E se dirigiu
a Rajagaha. Nesse tempo, o Ven. Mahamoggalana também havia falecido, e o Buddha
tomou suas relíquias e uma estupa foi erigida para elas. E indo a Ukkacela, nas
margens do Ganges, proferiu o Ukkacela Sutta (SN 47:14) sobre o Parinibbana de
Sariputta e Mahamoggallana.
Os Sermões de Sariputta
Majjhima
Nikaya
- Dhammadayada Sutta (MN 3):
Herdeiros no Dhamma
- Anangana Sutta (MN5): Sem
manchas
- Sammadittthi Sutta (MN 9): Visão Correta
- Mahahatthipadopama Sutta (MN 28): O
Grande Sermão sobre o Simile das Pegadas do Elefante
- Mahavedalla Sutta (MN43): A
Grande Série de Questões e Respostas
- Gulissani Sutta (MN 69): Sermão para Gulissani
- Dhanañjani Sutta (MN97):
Sermão para Dhanañjani
- Sevitabbasevitabba Sutta (MN 114): O que
ser cultivado e o que não ser cultivado
- Anathapindikovada Sutta (MN 143):
Sermão para Anathapindika
Digha
Nikaya
- Sampasadaniya Sutta (DN 28): Sermão
de inspiração na fé
- Sangiti Sutta (DN
33) e Dasuttara Sutta (DN 34):
Recitação Doutrinal e Sermão da Serie Décupla
Anguttara
Nikaya
- 2.35
- 3.21
- 4.79
- 4.158
- 4.167-68
- 4.172
- 4.173
- 4.174
- 4.175
- 4.179
- 5.165
- 5.167
- 6.14-15
- 6.41
- 7.66
- 9.6
- 9.11
- 9.13
- 9.14
- 9.26
- 9.34
- 10.7
- 10.65
- 10.66
- 10.67-8
- 10.90
Samyutta
Nikaya
Nidana
Samyutta
- 24
- 25
- 31
- 32
22.
Khandha Samyutta
- 1
- 2
- 122-23
- 126
28.
Sariputta Samyutta
- 1-9
- 10
35.
Salatayana Samyutta
- 232
- 38
- 1-2
- 3-16
48.
Indriya Samyutta
- 44
- 48-50
55.
Sotapatti Samyutta
- 55
Maha Moggallana
(do
texto de Hellmuth Hecker)
Vimos anteriormente a trajetória de
vidas que conduzem Sariputta e Maha Moggallana a se tornarem os principais
discípulos do Buddha Gotama.
Após obter a ordenação, Moggallana
se retira para a floresta, e com grande zelo medita sentado ou andando, mas
apesar de sua forte determinação, se via constantemente dominado pela
sonolência. O calor dos trópicos, o esforço de seus muitos anos de vida andarillha
e as tensões internas levaram seu corpo à fadiga. O Buddha, percebendo em sua
solicitude e com sua visão supranormal, as dificuldades do novo monge, lhe
aparece e lhe orienta em como superar a sonolência: não dar atenção a ela,
refletir sobre o Ensinamento, repeti-lo, puxar as orelhas, levantar-se e lavar
os olhos e olhar em todas as direções e para as estrelas e constelações,
prestar atenção à percepção da luz do dia e da noite, e com isto cultivar uma
mente plena de brilho, caminhar com plena atenção, deitar a postura do leão
sobre o lado direito do corpo, mantendo na mente o pensamento sobre o acordar,
e, ao acordar, levantar-se rapidamente, pensando: “Não devo indulgir no
conforto do descanso e deitar, no prazer do sono” (DN2).
Após ter recebido essas instruções
do Buddha, Moggallana lhe pergunta sobre como eliminar a sede ardente do
desejo, ao que o Buddha lhe orienta:
“Aqui, Moggallana, um monge aprende
isto: ‘A nada convém se apegar!’ Quando um monge aprendeu que a nada convém se
apegar, ele conhece tudo diretamente; quando ele compreende plenamente tudo,
qualquer sensação que ele experimente, seja prazerosa, dolorosa, ou neutra, ele
permanece contemplando a impermanência em todas essas sensações, contemplando a
não-paixão, contemplando a cessação, contemplando o abandono. Assim
permanecendo, ele não se apega a nada do mundo; não se apegando ele não se
agita; e sem agitação ele pessoalmente alcança a completa extinção das
impurezas. Ele conhece: “O renascimento cessou, a vida santa foi vivida, o que
tinha que ser feito foi feito, não há mais esse ou aquele estado”.
Tendo recebido essas instruções
pessoais (conforme descrito em AN 7:58), Moggallana retoma com ardor sua
prática, supera os cinco obstáculos, e alcança progressivamente os quatro jhanas
materiais (rupajhanas), as quatro
absorções imateriais (arupajhanas), e
a cessação da percepção e da sensação (saññavedayita
nirodha). Então ele alcança a “concentração da mente sem sinal”, livre de
tudo que marca a existência condicionada (SN 40: 2-9). Mas essas realizações
ainda têm certo apego sutil. Ajudado pelas instruções do Buddha, ele enfrenta e
supera esses grilhões mais sutis e alcança o fruto final, e se torna um
arahant, na perfeita liberação da mente e libertação pela sabedoria.
Os arahants se distinguem no que se
refere aos dois tipos baseados em suas proficiências na concentração:
- Liberados em
ambos os modos (ubhatobhagavimutta):
liberados do corpo material através das absorções imateriais, e de todas
as impurezas pela via do arahato. Estes alcançam as oito libertações (citta vimokkha), que incluem as
quatro realizações imateriais e a cessação. Sariputta e Moggallana eram
arahants deste tipo.
- Liberados pela
sabedoria (paññavimutta).
Carecem da maestria das oito libertações, mas destruíram todas as
impurezas através da sabedoria.
Moggallana maestrou não apenas os
sucessivos planos da concentração meditativa, mas também explorou os “caminhos
do poder psíquico” (iddhipada),
obtendo os abhinñña (modos de
conhecimento supra normais). Tudo isto em apenas uma semana, o que revela a
intensidade e profundidade de sua determinação, que lhe permitiu num tempo
aparentemente curto, trazer à sua mente enormes éons passados de contração e
expansão dos mundos. Sua penetração foi rápida (khippabhiñña), mas difícil (dukkha-patipada),
o que requereu a intensa ajuda do Buddha; já Sariputta precisou de duas
semanas, mas seu progresso foi suave (sukkha-patipada),
mas independente e superior quanto ao escopo de seu conhecimento.
Segundo os Jatakas, ao menos por
trinta vidas, Moggallana, Sariputta e o Bodhisatta estiveram juntos. Algumas
vezes como irmãos, amigos ou ministros, ou seus discípulos ascetas, seus
professores, filho e general do Bodhisatta. Quando animais, geralmente
Sariputta nascia em espécies animais superiores: cobra e rato, pássaro e
tartaruga, leão e tigre, macaco e elefante, macaco e chacal, homem e chacal. O
mesmo quando nascidos como humanos: príncipe e ministro, ministro e filho de um
escavo, condutor da carruagem do Bodhisatta e do rei Ananda, sábio asceta
Narada e o deus-lua. Quando ambos eram ascetas ou deidades, geralmente eram do
mesmo status. Em uma vez, Sariputta era apenas o deus-lua e Moggallana o
superior deus-sol; Sariputta o rei dos nagas e Moggallana o rei de seus
inimigos, os supannas. A única vez que Moggallana aparece sem Sariputta foi
como Sakkha, rei dos desuses. Certa vez, ambos aparecem como comerciantes
avarentos que enterram muito e renascem como cobra e rato, perto de seu tesouro
enterrado. Certa vez, Moggalana renasce como um chacal, e, ao entrar, movido
pela gula, pelo intestino para o estomago de um elefante morto, não consegue
sair, sofrendo com isto de um medo mortal, símbolo dos perigos do deleite
sensual. E certa vez, Moggalana renasce como um guardador do celeiro de grãos e
Sariputta como comerciante, ambos observando cuidadosamente a lei do
não-roubar.
Os Poderes Psíquicos
de Moggallana
Segundo o autor deste texto-base,
muitos intérpretes ocidentais veem o Budismo como essencialmente um método
pragmático de praticas psicológicas livres das tradicionais amarras da
religião. E que as dimensões supra racionais das maravilhas notáveis do Budismo
seriam dispensáveis e frutos de interpolações tardias. Mas nos suttas
encontramos frequentes descrições sobre os poderes supra normais do Buddha e
seus discípulos arahants, que contradizem essa visão racionalista desses
intérpretes, que tentam expurgar do Budismo esses aspectos (e eventos)
supranaturais e “miraculosos”, sob o pretexto da natureza racionalista do
Budismo, ante ao suposto dogmatismo e “misticismo” do Cristianismo.
Se é certo, por um lado, que o
Buddha adverte sobre os limites e perigos da fascinação pelos poderes
psíquicos, por outro lado, os suttas vêem de modo positivo a aquisição dos
poderes supranormais como ampliadores da estatura e completude daquelas pessoas
realizadas. Para aqueles cujas mentes ainda estão sob o domínio da ambição
pessoa, poderes podem ser terríveis perigos na delusão de um self. Mas para
aqueles ricos em compaixão e clara visão sobre a ilusão do “eu-meu”, esses
poderes podem ser ferramentas valiosas a serviço do Sasana (termo de difícil
tradução, algo como “a transmissão da Doutrina”, ou “Dispensation” como alguns
tradutores apresentam para a língua inglesa).
Encontramos nos suttas menção sobre
um conjunto de seis faculdades supranormais, ou supraconhecimentos (chalabhiñña), possuídos por muitos
arahants. Cinco desses poderes são considerados mundanos: os conhecimentos dos
modos do poder psíquico (iddhividha-nãna);
o conhecimento do ouvido divino (dibbasotadhatu-nãna); o conhecimento sobre a
mente de outros (cetopariya-ñana); o conhecimento da rememoração das vidas
passadas (pubbe-nivasanussati-ñana); e o conhecimento pelo olho divino sobre o desaparecer e renascer dos seres
(dibbacakkhu, cutupatañana). Esses poderes podem ser alcançados por yoguis
e místicos que maestraram as meditações de absorção, mas não são requerimentos
nem indicações da libertação. Apenas o sexto, o conhecimento da destruição das
impurezas (asavakkhaya-nãna) é a realização
supramundana de que todas as impurezas foram totalmente erradicadas e não mais
ressurgem. É o conhecimento dos arahants e sua garantia da libertação final.
Segundo o Buddha, os cinco primeiros
estão incluídos nos “frutos da reclusão” em que culmina o sistema de
treinamento mental (DN2), bem como benefícios da observância dos preceitos
(MN6), poderes realizados pelo próprio Buddha, que lhe permitiria, se assim
quisesse, viver até o final do éon (DN2; SN 51:10). O sexto supraconhecimento é
fruto do insight, enquanto o cinco supraconhecimentos mundanos provêm da
concentração. Nos suttas, o Buddha os apresenta apenas após explicar os quatro
jhanas, pré-requisitos por que abrem na consciência vias de acesso a esses
conhecimentos, purificando e clareando a mente de suas obscuridades de
pensamentos e humores que encobrem a luminosidade da mente, drena sua potência
e a torna rígida e inoperante. Quando a mente se torna brilhante (DN2) devido
aos quatro jhanas, ela desvela domínios ocultos do conhecimento normalmente
cobertos por camadas impenetráveis de obscuridade criadas pela ignorância. Para
os que conseguem esses acessos, como o Buddha e Moggallana, seus horizontes se
tornam incomensuráveis, transcendendo todas as fronteiras e limitações, graças
a esses conhecimentos, adquiridos na base das praticas dos “quatro caminhos do
poder/sucesso” (iddhipada).
Do ponto de vista prático, essas
quatro vias demandam o cultivo da concentração através da vontade (chanda), energia (viriya), mente ou concentração (citta)
e investigação (vimamsa). Cada uma
delas deve vir acompanhada pelas “forças volitivas do esforço” (padhanasankhara), que constróem uma
imensa energia psíquica. Com frequência, o Buddha nos incentiva a fazer surgir
o importante fator da energia, necessária para a concentração e o insight
libertadores. A realidade material – descrita pela Física quântica como uma
manifestação da energia (não há “coisas sólidas”, apenas fluxos incessantes e
cambiantes de energias) – é apenas um ínfimo nível dos possíveis mundos
condicionados. Estes se revelam aos sábios capazes de transcender os limites
das faculdades sensoriais comuns, e penetrar as relações subjacentes entre
mente e forma, o que lhes confere poderes de controle sobre os fenômenos,
controles que aparecem aos olhos comuns como “maravilhas” e “milagres”.
O Ven. Moggallana maestrou esses
poderes amplamente, por isso o Buddha o nomeou o mais excelente discípulo entre
os que possuíam os poderes psíquicos (AN 1:14). Outros proeminentes discípulos
também maestraram certos poderes, mas apenas em uma ou duas áreas, como: o
monge Anuruddha e a monja Sakula – divino olho; o monge Sobhita e a monja
Bhadda Kapilani – rememoração de vidas passadas; o monge Sagala – exercício do
elemento fogo; Cula Panthaka – manifestar-se em múltiplos corpos; Pilindavaccha
– comunicação com seres celestes. Mesmo a monja Uppalavansa, a mais excelente
entre as monjas no exercício dos poderes psíquicos, não ultrapassava a
compreensiva maestria de Moggallana sobre as faculdades psíquicas:
Penetração na mente de outros
Certa vez, após o Buddha ter se
recusado a recitar o Patimokkha por haver impureza na Assembléia dos monges,
foi Moggallana que localizou com sua mente a presença de um monge corrupto, e o
retirou.
Divino ouvido
Certa vez, Moggallana esclarece para
Sariputta, que ele Moggallana e o Buddha, dirigindo um para o outro o divino
olho e o divino ouvido, se engajaram numa reflexão do Dhamma sobre a faculdade
mental da energia. Ao que Sariputta afirma que assim como o Buddha, Moggallana
poderia viver por todo um eon, se quisesse. Com seu divino ouvido, Moggallana
podia também ouvir as vozes dos não-humanos, as deidades, espíritos, etc. e
receber mensagens deles.
Divino olho
Moggallana, com seu divino olho, era
capaz de perceber o Buddha à longa distancia. Certa vez, Moggallana vê um
demônio maligno (yakkha) estapear
Sariputta na cabeça, quando este estava meditando, mas Sariputta não pôde ver.
Moggallana usava seu divino olho
principalmente para observar a operação da lei do kamma e seus frutos, segundo
relatos reunidos em dois livros do Cânone Páli, o Petavattha (51 relatos, sobre
o reino dos fantasmas) e o Vimanavathu (85 relatos, sobre as moradas celestes)
Viagem no corpo mental
Moggallana podia corporalmente
partir rapidamente do mundo humano e reaparecer num reino celeste.
Repetidamente ele usava desse poder para ensinar outros seres, com o fêz sobre
os fatores da entrada-na-corrente, para os devas do reino dos Trinta e Três. No
sutta 37 do MN, Moggallana confronta Sakka, rei do reino dos Trinta e Três, que
se achava muito poderoso e imortal, ao que Moggalana questiona Sakka sobre se
este havia entendido o ensinamento sobre a extinção do desejo-sede ardente.
Moggallana aparece ao Buddha quando
este estava ensinando o Abhidhamma por três meses num dos reinos celestes, e
lhe informa sobre os acontecimentos na Sangha, pedindo-lhe instruções (Jataka
483).
Certa vez, através de
questionamentos e seus suprapoderes, Moggallana abala a auto segurança de uma
deidade Brahma, que acreeditava que nenhum asceta poderia penetrar em seu reino
(SN 6:5). Em uma outra ocasião, ele aparece para um Brahma chamado Tissa – que
tinha sido anteriormente um monge e falecera recentemente – e lhe instrui sobre
a entrada-na-corrente e a realização da libertação final (AN 4:34; 753).
Locomoção supranormal
Certa vez, Buddha pede a Moggallana
que use de seus poderes e estremeça um mosteiro onde monges, negligentes, se
ocupavam de assuntos mundanos, ao que estes retornam à prática e aos
ensinamentos. Buddha lhes explica que é no desenvolvimento das quatro vias do
poder que reside a fonte dos poderes de Moggallana (SN 51:14; Jataka 299).
Certa vez, ao visitar Sakka, rei dos
deuses, e ver que este vivia cativo dos prazeres sensuais celestiais, se
esquecendo do Dhamma, Mogallana faz estremecer o palácio celestial, ao que
Sakka relembra o ensinamento do Buddha sobre a extinção do desejo, ensinamento
que o Buddha havia dado a Moggallana para a realização do arahato (MN37).
Apenas numa ocasião Buddha desaprovara a sugestão de Moggallana para o uso de
seus supra poderes. De modo geral, Buddha recomendava que um monge não exibisse
poderes supranormais apenas para impressionar os leigos (Vin 2:110-112).
O Poder de Transformação
Certa vez, quando o Buddha junto com
cem monges visitava reino celeste dos Trinta-e-Três, passaram sobre o teto da
serpente real Nandopananda, o que a enfureceu, e por vingança, a leva a rodear
o Monte Sineru e envolvê-lo em escuridão. Foi Moggallana
que a enfrentou numa terrível batalha de fogo e fumaça, e se transformando em
supanna, a águia celeste e arquinimiga da serpente naga, subjuga-a e a traz
triunfalmente ao Buddha.
Como muitos outros arahants
discípulos do Buddha, Moggallana deixa no Theragatha 63 versos testemunhos de
seus triunfos sobre as vicissitudes da vida.
Os últimos dias, e a
morte de Moggallana
Embora Sariputta e Moggalana fossem
inseparáveis, a morte deles, bem como onde alcançaram o arahato, ocorreu em lugares diferentes. Meio
ano antes do Parinibbana de Buddha, na lua cheia do mês Kattika
(outubro/novembro), Sariputta faleceu. Logo após, Moggallana tem um marcante
encontro com Mara, o Maligno Tentador e Senhor da Morte (MN 50)
Neste sutta, Moggallana narra que certa vez ele era um
Mara de nome Dusi, Mara era seu sobrinho, filho de sua irmã Kati. Segundo a
cosmologia budista, a posição de Mara é fixa, e assumível por diferentes
indivíduos segundo seus kammas (B.Bodhi, The Middle Lenght Discourses of the
Buddha, nota 517, p. 1248). Naquele tempo, o Buddha era Kakusandha (que seria
sucedido pelo Buddha Konagama, Kassapa e Gotama). Como todos os Buddhas,
Kakusandha possuía um par de principais discípulos, Vidhura (“o Inigualável”) e
Sanjiva (“o Sobrevivente”).
Então
Mara Dusi toma possessão dos brâmanes chefes de família, fazendo-os imaginar
cenas de condutas impróprias dos bhikkhus virtuosos, de modo que os brâmanes
lançassem ofensas, denegrições sobre a meditação dos bhikkhus. Assim, isso
faria surgir na mente deles impurezas mentais (raiva, desânimo), e não
escapariam do samsara. Buscando orientação do Buddha, o Abençoado lhes
recomenda a irradiação dos quatro brahmaviharas como antídotos.
Frustrado
Mara Dusi tenta a via da bajulação com pseudo-honras aos bhikkhus, de modo que
eles caíssem no apego ao elogio, complacência e negligência. O Buddha
Kakusandha lhes orienta a contemplação das impurezas do corpo (para a superação
do desejo sexual), à percepção da repulsividade do alimento (para o lide com o
apego aos sabores), à percepção do desencantamento para com o mundo (para a superação
da atração do mundo) e a contemplação da impermanência de todas aas formações
(para a superação da embriaguez pelo ganho, honra e elogio).
Novamente frustrado, Mara Dusi tomou possessão de um
menino e quando Kakusandha caminhava com o Ven. Vidhura, Mara Dusi joga uma pedra na
cabeça de Vidhura, fazendo o sangue jorrar pelo profundo ferimento. Ao que
Kakusandha decide pôr um limite aos desvairios de Mara Dusi: com o olhar de
elefante (que vira todo o corpo para olhar), o Abençoado mira Mara, e devido ao
seu pesado mau kamma, Mara morre e ressurge no Grande Inferno de Avici, aonde,
por ter atacado um arahant, ele, de Senhor dos Infernos agora se torna vítima
dos infernos, e queima com sensações dolorosíssimas por dez milênios.
Assim, esse encontro atual com Mara traz mais uma vez
para a mente de Moggallana (e nos serve de alerta) os terrores do samsara, do
qual ele estava agora liberto para sempre. Moggallana, desse modo, afirmando a
Mara:” Eu te vejo, Mara, não pensa que não te vejo”, pune Mara, que desaparece.
Pouco depois, Moggallana sente que se esgotava o tempo de
sua última existência. Que não havia razão para estender a duração de sua vida
(embora ele poderia, se quisesse), e calmamente permite que a impermanência
siga seu curso. Moggallana falece na quinzena após a morte de Sariputta, na lua
nova do mês Kattika (outono), ambos com 84 anos; Buddha falece na noite da lua
cheia do mês Vesakha (maio), com 80 anos, meio ano após a morte de seus dois
principais discípulos.
Diferentemente do Buddha e Sariputta, que tiveram morte
serena, a de Moggallna foi relativamente terrível. As circunstâncias de sua
morte estão relatadas no Comentário do Dhammapada (versos 137-140) e no
Comentário dos Jatakas (Jat 523). Um grupo de ascetas rivais invejosos e frustrados
com as perdas de popularidade e saídas de muitos de seus membros, devido aos
poderes de Moggallana, contratam assassinos para matá-lo. Por várias vezes eles
tentam, mas Moggallana, graças aos seus poderes, escapa. Não por medo da morte,
mas para oferecer aos assassinos um tempo de reconsideração sobre o crime,
dados os efeitos de um renascimento infernal pelas temíveis consequências
kammicas. Mas o desejo pelo dinheiro do crime faz os assassinos persistirem no
intento. E, numa das vezes, Moggallana subitamente perde o domínio psíquico
sobre o corpo, devido à maturação de uma sua ação kammica num passado de
longínquos éons, pela qual teria levado seus pais à morte. Moggallana realiza
que não tinha opção senão aceitar seu destino.
Os assassinos o matam, reduzem seus ossos a pedaços, e
fogem. Mas Moggallana, ainda graças a seus poderes, recobra a consciência, e
pelo poder da meditação, eleva-se aos ares e aparece diante do Buddha,
anunciando que atingiria o Nibbana final. O Buddha pede-lhe que dê um sermão final
aos monges, e ele o faz. Com uma mostra final de maravilhas e prestando
homenagem ao Abençoado, retorna à Montanha Negra e entra no Nibbana sem
resíduo. O kamma passado afetou-lhe o corpo, mas não abalou sua mente, pois não
mais se identificava com sua personalidade empírica, e os cinco agregados que
outros identificavam como “Moggallana” era tão estrangeiro quanto um corpo
inanimado. O fecho de sua vida mostrou que a lei do kamma tem mais poder que os
do mestre dos poderes psíquicos; apenas um Buddha pode controlar as
consequências kammicas sobre seu corpo em tal extensão que nada poderia causar
sua morte prematura.
Buddha declara que a excelência de seus dois principais
discípulos era tal que após a morte deles, a Assembléia dos monges parecia
vazia. Mas não há lamentação da parte do Abençoado. E que, aqueles que treinam
no Nobre Óctuplo Caminho, e têm as Três Jóias como único refúgio, transcenderão
os reinos da escuridão do samsara. Isto o Mestre nos garante.
*******
KARMA e RENASCIMENTO
Bhante Yogavacara
Rahula ©
Cap. III, em The
Way to Peace and Hapiness,
Sri Lanka, Buddhist Cultural Centre, 1997. Com autorização do autor
Sri Lanka, Buddhist Cultural Centre, 1997. Com autorização do autor
Tradução:
Teresa A. Kerr
Revisão:
Arthur Shaker
A
palavra Karma (kamma em Páli) significa
ação ou volição. Karma é normalmente usado como uma designação para a lei de
causa e efeito que opera através das ações. São as ações feitas por uma pessoa
através de seu corpo, fala, e seus pensamentos. As impressões ou a memória
dessas ações, ou Karma, são gravadas, assim falando, na mente subconsciente.
Nós temos essas tendências acumuladas como base para nossas decisões presentes
e futuras em ações de corpo, fala e pensamentos, os quais são Karma
resultantes, ou impressões residuais, de todas nossas atividades kármicas
passadas. Por causa disso, somos condicionados a experienciar a sensação dos
objetos da mesma maneira como no passado. Assim, ficamos enredados e enraizados
em fortes padrões habituais de ação do corpo, fala e pensamento dos quais é difícil,
mas não impossível, ficarmos livres deles.
Portanto,
vemos que o Karma, a lei de causa e efeito, é de extrema importância. Vê-se que
ninguém irá escapar dos resultados de suas ações, por essa razão os seres que
acumulam resíduos de suas ações e pensamentos por sua vez se tornam um
verdadeiro depósito ou base para experiências futuras. Cada pessoa se entrelaça
em sua própria teia de destino, seja bom ou mau[1],
agradável ou doloroso. Cada pessoa é o arquiteto de seu próprio futuro.
Isso
em contraste com a ideia de um todo poderoso Deus que atua como um agente
externo julgando as ações de uma pessoa na morte, e de acordo com isso,
sentenciando a pessoa a um eterno céu agradável ou a um eterno sofrimento no
inferno. Dessa forma, a lei do karma é Deus nesse sentido, pois cria as futuras
circunstâncias acessórias e apropriadas para ajustar a vibração da mente da
pessoa naquele tempo. Se a mente de uma pessoa está com ódio, cobiça, apego,
etc., então de acordo com isso é atraída para uma manifestação das condições
nas quais irá satisfazer-se com aqueles objetivos. Se a mente de uma pessoa
está com amor, compaixão, bondade, desapego, felicidade, etc., então da mesma
forma irá ser atraída, e manifestar-se, nas condições apropriadas.
O
Desperto resumiu isso nos seguintes versos:
Todos os seres são
donos de suas ações
São os herdeiros de
suas ações
Suas ações são as
entranhas da qual surgiram
Suas ações são seu
refúgio
Qualquer ação que façam
– boas ou más
Delas serão seus
herdeiros[2].
É o Karma que faz o
mundo girar
O Karma mantém-se em
movimento na vida das pessoas
Todos os seres são
atados ao Karma
Como a cavilha à roda
da carroça[3].
A mente é a precursora
de todas as condições
A mente é o patrão,
todas as coisas são executadas pela mente;
Se uma pessoa age ou
fala com uma mente maléfica,
Então os efeitos irão
segui-la, como uma roda
De uma carroça segue o
casco do boi que a puxa.
Mas se uma pessoa age
ou fala com pureza, com uma mente saudável,
Então a felicidade e a
paz seguirão aquela pessoa
Como sua sombra que
nunca a abandona[4].
Nem no céu, nem no meio
do oceano, nem na caverna de uma montanha,
Encontrará aquele local
na terra onde,
Possa uma pessoa
escapar das conseqüências de suas ações maléficas[5].
O
que se segue é parte desse discurso do Buddha a seu discípulo mais próximo,
Ananda:
“Onde
houver sido feitas ações, Ananda, bem estar pessoal e tristeza surgirão em
consequência das intenções que houver nas ações. Onde houver fala, onde houver
pensamentos, bem estar ou tristeza surgirão em consequência das intenções que
houver na fala e nos pensamentos. Nós mesmos, Ananda, planejamos aquelas ações
condicionadas (sob a influência de) ignorância e cobiça, das quais irão surgir
bem estar pessoal, ou outros planejam aquelas ações que nós fazemos (sob
impulso ou sugestão) por causa da ignorância e cobiça, das quais surgirão bem
estar e tristeza pessoais.
Nós
fazemos isso deliberadamente ou ignorantemente (não conhecendo as consequências),
das quais nos dois casos surge bem estar ou tristezas pessoais.
Assim
também será onde houver tido fala ou pensamento. Seja que nós tenhamos
planejado e feito, ou outros tenham planejado e nós fizermos, dos quais irá
surgir tristeza ou bem estar pessoal.
Em
todos esses casos ignorância irá se seguir (por causa da ignorância, ações são
feitas). Mas, a partir (pela sabedoria) do completo desaparecimento e extinção
da ignorância e apego, aquelas ações, fala e pensamentos, Ananda, não são
feitas a partir das quais irá trazer tristeza ou bem estar pessoal”[6].
(A
energia kármica é então diminuída e cessa de modo que os resultados que se
teria que experienciar serão também enfraquecidos e cortados).
Quando
o Karma é referido como uma lei, não significa algo promulgado pelo Estado ou
alguma entidade governamental. Isso iria implicar na existência de um executor
de uma lei. É uma lei no sentido que é um constante modo de ação. É pela
natureza da ação que irá produzir certos resultados. Essa natureza é também
chamada de lei.
É
nesse sentido que falamos da lei da gravidade a qual causa a queda de uma fruta
da árvore ao solo quando está madura. Não há um poder supremo ou ser o qual
comanda que a fruta caia, mas novamente, é uma maneira constante de ação.
E
é do mesmo modo nos assuntos humanos, onde a mesma lei de causa e efeito
trabalha da mesma forma. Nenhum poder independente ou criativo está envolvido:
a lei natural dita que os atos humanos também fazem surgir consequências
específicas. Portanto, todos os estados, sejam físicos ou mentais, ocorrem na
sequência natural dependentes da lei natural; assim, quando uma pessoa morre,
como todos iremos morrer, a ocorrência nada mais é do que um efeito de sua
causa, a qual é o nascimento. Ignorando as causas, falamos de “acaso”, mas
sabemos que o mundo não é governado pelo caos. Portanto, nosso aparecimento
nesse mundo e nosso desaparecimento novamente não são arbitrários, do mesmo
modo como o surgimento e a destruição inevitável de uma árvore.
RENASCIMENTO
Todas
nossas ações passadas de corpo, fala e pensamento, todos os sentimentos,
percepções, formações mentais, etc., que experienciamos, deixaram suas
impressões em nosso subconsciente continuum de vida. A pessoa comum,
entretanto, é normalmente muito ocupada com problemas pessoais e prestando
muita atenção ao seu mundo atual, ou criando fantasias sobre o futuro. Dessa
forma, o acesso à sua memória subconsciente onde estão todas essas impressões
do passado, incluindo as vidas passadas, é extremamente limitado e confinado.
Assim é por que a maioria das pessoas não pode se lembrar de seu passado, 5 ou
10 anos atrás, com exceção das principais experiências, ficando ignoradas as
impressões das vidas anteriores. Entretanto, todas elas continuam impressas no
subconsciente.
Mesmo
hoje, em diversos países, como a Índia, Tibet, Sri Lanka há somente poucas
pessoas que se lembram de uma ou mais vidas. Algumas delas têm sido descritas
muito precisamente com detalhes, e foram examinadas e verificadas como sendo
extraordinariamente confiáveis[7].
Há ainda casos sob hipnose no qual o sujeito volta no tempo, mesmo no passado
distante de vidas anteriores, e se lembra de coisas com detalhes
extraordinários.
Se
na hora da morte, a pessoa ainda estiver envolvida com o processo da produção
kármica de cobiça, apego e vir-a-ser, então essa força de apego (o sankhara) irá se manifestar em outra
existência para seu próprio uso, em outro corpo com os órgãos do sentido. No
momento da morte a mente normalmente está atraída ao plano de existência o qual
é de acordo com a personalidade expressa nos hábitos e tendências acumuladas.
Essa consciência, que surge no último momento antes da morte, toma um objeto
produzido normalmente na mente, ou o qual é induzido de fora, como seu “sinal
do destino” (gati nimitta) ou um
cartão desenhado. Esse “sinal do destino” está usualmente de acordo com as tendências
habituais mais fortes as quais foram exercitadas durante a vida que agora está
terminando. Isto comumente condiciona o reino do renascimento onde a mente irá
se manifestar.
Algumas
vezes, esse sinal é o resultado de alguma ação negativa pesada executada em
uma, 2, 3 ou até mais vidas anteriores a essa atual. Mas somente agora vêm à
superfície para determinar o futuro plano de existência[8].
Essa
consciência, chamada de “consciência de religação” (patisandhi-viññana) a qual se manifesta em outra existência,
carrega com ela, poderíamos assim dizer, todos os sankharas ou tendências habituais da mente, que foram acumuladas no
passado devido à ignorância e apego, e que não foram exauridas.
Na
noite da Grande Iluminação do Buddha, quando ele estava em profunda meditação,
sua consciência estava perfeitamente quieta e direcionada, livre dos distúrbios
exteriores e agitações mentais. Ele então teve acesso ao seu depósito total de
impressões kármicas do passado. Assim, foi capaz de recordar perfeitamente, com
exatos detalhes, todas suas ações prévias de corpo, fala e pensamento, todas
suas experiências desde o momento exato que nasceu. Até mesmo pode recordar o
último pensamento de sua vida anterior (a consciência de religação), e ele em
ordem continuamente reversa lembrou de cada pensamento, sentimento, percepção e
ação de vidas anteriores.
Ele
pôde voltar para trás através de centenas, milhares de existência anteriores,
na medida em que sua energia mental ou força kármica, naquele tempo ainda sob a
delusão do “self”, perpassava pelos infinitos ciclos de nascimento e morte.
Dessa forma, ele viu perfeitamente as razões e condições pelas quais a força
kármica se manifestou e permaneceu se manifestando daquele modo – agora aqui
nesse mundo como um ser humano ou um animal, outra vez como um fantasma
faminto, outra vez no inferno, e então novamente como um ser humano, um rico e
próspero rei ou um mendigo destituído ou nascido cego, mudo ou mentalmente
retardado, ou nascido no mundo dos devas ou Brahmas, etc. O que se segue é uma
descrição vívida dado pelo Buddha de como ele realizou isto diretamente durante
a noite de seu Despertar.
“Assim,
com a mente tranquila, purificada, clarificada sem manchas, sem impurezas,
pronta para o trabalho, fixa inamovível, eu dirigi minha mente para o
conhecimento e lembranças das antigas moradas. Eu me lembrei de uma variedade
de tantas moradias assim; um nascimento, 2 nascimentos, 3. . . 4. . . . 5. . .
. 20 . . . 30. . . . 50. . . . 100. . . . mil . . cem mil nascimentos e muitos éons
da integração e desintegração do mundo. Assim era meu nome, tendo tal e tal
família, tendo tal e tal cor, fui alimentado, tais e tais experiências de
prazer e de dor foram minhas, e assim a duração da vida se findou. Depois
disso, vim a ser em um outro estado, quando tive um nome, tendo tal e tal
família, tal e tal cor, fui nutrido tendo tal e tal experiência agradável e
dolorosa, assim a vida terminou. Depois disso eu surgi aqui. Assim eu me lembro
de diversas moradias em todos os seus modos e detalhes. Este, monges, foi o
primeiro conhecimento realizado por mim nas primeiras horas da Noite. A
ignorância foi descartada, o conhecimento surgiu, a escuridão foi descartada, a
luz surgiu, na medida em que eu permanecia diligente, ardente, resoluto e calmo.
Então
com a mente composta, purificada, pronta, fixa, inamovível, eu dirigi minha
mente para o conhecimento do surgir e desaparecer dos seres. Com a visão dos
Devas purificada e superior à do homem comum, eu vi seres que passaram desse
plano (morreram) e vieram a renascer; eu compreendi que os seres são valorosos,
excelentes, feios, agradáveis, belos, de acordo com as consequências de suas
ações, e eu pensei: Realmente, esses seres valiosos que são possuidores da
conduta errada de corpo, fala e pensamento, zombadores dos homens religiosos,
mantendo visões errôneas, incorrendo em ações que são consequências das visões
errôneas – esses, cujo corpo é destruído após a morte, surgiram em um estado de
sofrimento, um mau nascimento, o abismo, o Inferno Niraya. Mas, esses valiosos
seres que eram possuidores da boa conduta de corpo, fala e pensamento, que
procuraram o conhecimento e instrução dos sábios, praticaram o que é bom, tendo
visões corretas, agiram em consequência de suas visões corretas – esses seres,
na dissolução do corpo após a morte, surgiram num bom nascimento, um mundo
celestial. Assim eu vi com a visão dos Devas purificada e superior à do homem
comum, o surgimento e morte dos seres de acordo com seus Karmas. Esse foi o
segundo conhecimento realizado por mim no meio da noite. A ignorância foi
descartada, o conhecimento surgiu, a escuridão dispersada, a luz surgiu, na
medida em que eu permanecia diligente, ardente, resoluto e calmo”[9].
Esse
renascimento não deve ser mal compreendido como do tipo de uma substância
permanente ou “alma” individual que transmigra de um corpo para outro corpo,
desse mundo para o próximo. É apenas o desmembramento dos 5 agregados, a
separação do corpo e mente, não funcionando mais como uma unidade, sustentando
um ao outro. A mente precisa ter um corpo através do qual funciona e satisfaz
seus desejos. Quando a ultima consciência da morte se religa com outra
existência, por exemplo, no útero de uma mãe humana ou um animal, então outro
corpo com órgãos dos sentidos será desenvolvido com as influências dos sankharas que foram transportados pela
consciência de religação. Assim, os 5 agregados podem mais uma vez serem
reunidos para continuar a corrente das experiência sensoriais uma vez mais,
através da roda de nascimento, doença, sofrimento, velhice e morte, assim por
diante, ad infinitum.
A
seguir alguns itens das “Perguntas do Rei Milinda”, relativos ao fenômeno do
renascimento.
“Nagasena,
porque esse “nome” (mente) não renasceu separado da “forma” (corpo). Porque
eles devem nascer juntos?”
“Porque,
ó Rei, essas condições, nome e forma, estão conectadas uma com a outra e
aparecem juntas. Como a galinha não põe o ovo separado da casca, mas ambas
surgem de um ovo, os dois sendo intimamente dependentes um do outro, assim, se
não houvesse “nome” não haveria “forma”, isso é o nome da forma. Se não há
forma, então qual é o uso do nome? O que é significado como nome nessa
expressão, sendo intimamente dependente do que é significado por forma, surgem
juntos, e isso é através de tempos imemoriais, sua natureza”[10].
“Aquele
que renasceu, Nagasena, permanece o mesmo ou se torna outro?”
“Nem
o mesmo nem outro, ó Rei”.
“Dê-me
um exemplo, Nagasena”.
“Agora,
o que você pensa, ó Rei? Você era uma vez um bebê, uma coisa tenra, e pequeno,
deitado de costas. Você hoje que cresceu é a mesma pessoa?
“Não,
aquela criança era uma coisa, eu sou outra.”
“A
pessoa que vai para a escola é a mesma que terminou sua escolaridade, ou outra?
Aquele que cometeu um crime é um, e outro o que foi punido tendo suas mãos cortadas
fora?”
“Certamente
não, Nagasena. Mas o que o Senhor diria disso?”
“Eu
diria, ó Rei, que sou a mesma pessoa, agora que cresci, como era quando era
pequeno, tenro como um bebê. Eu sou a mesma pessoa que começou e terminou sua
escolaridade. É a mesma pessoa que cometeu um crime e foi punido. Todos esses
estados estão incluídos em uma pessoa através desse corpo.”
“Dê-me
um exemplo, Senhor.”
“Ó
Rei, supondo que um homem acenda uma lamparina e que ela queima toda a noite.
Agora é a mesma chama que queima na primeira hora da noite como a da segunda,
ou é a mesma chama que queima na segunda e na terceira hora da noite?”
“Não,
Nagasena, a chama vem da mesma lamparina através de toda a noite.”
“Da
mesma forma ó Rei, a continuidade de uma pessoa ou coisa é mantida. Um nasce,
outro morre, e o renascimento é como se fosse simultâneo. Assim nem é o mesmo
nem é outro, o homem que vai para a ultima fase de seu “self-Eu-consciência”.
“Ó
Rei, é como o leite, o qual alguém retira da vaca, que depois de um tempo,
primeiro se torna coalhada, e da coalhada vira manteiga, e da manteiga para o
ghee. Agora, seria certo dizer que o leite era o mesmo como coalhada, ou como
manteiga ou ghee?”
“Certamente
não, Nagasena, mas foram produzidos dele”.
“Assim
da mesma forma, ó Rei, é a continuidade de uma pessoa ou coisa mantida. Uma
pessoa nasce, outra morre e o renascimento é como se fosse simultaneamente.
Assim nem é como o mesmo nem como outro que o ser vai para a última fase de seu
eu-consciência”[11].
“Onde
não há a transmigração (da alma), Nagasena, pode haver o renascimento?”
“Sim,
pode. Supondo, ó Rei, que um homem acenda a chama de uma lâmpada a partir de
outra lâmpada, ele pode dizer que a chama transmigra de uma lâmpada para
outra?”
“Certamente
não, Senhor!”
“Da
mesma forma, ó Rei, o renascimento se realiza sem qualquer transmigração (da
alma). Além disso, você se lembra ter aprendido um verso quando você era um
menino, do seu professor?”
“Sim,
eu me lembro ter aprendido muitos”.
“Bem
então, aqueles versos transmigraram do seu professor para você?”
“Certamente
não, Senhor!”
“Assim,
ó Rei, o renascimento acontece sem transmigração”[12].
“O
que é que renasce?”
“Nome
e forma renascem.”
“É
o mesmo nome e forma que renascem?”
“Não,
mas através desse nome e forma, o Karma é produzido, bom e mau, e através
dessas ações outro nome e forma renascem”.
“Se
é assim, Senhor, não poderia o novo ser ser libertado do Karma maléfico
produzido na vida passada?”
“Não.
Supondo, ó Rei, que um homem roubou uma manga de uma mangueira, e o homem que
plantou a árvore pegou-o e trouxe-o diante de você para ser julgado pelo crime.
Suponha que o ladrão diga: “Sua Majestade, eu não roubei a manga deste homem. A
árvore que ele plantou no solo como uma semente é diferente agora, e não a
mesma. Eu não mereço ser punido!” Ó Rei, você iria sentenciar aquele homem como
culpado e puní-lo?”
“Certamente,
Senhor, ele seria culpado e mereceria ser punido porque a despeito de qualquer
coisa que ele diga, a manga que ele tirou da árvore vem daquela que o
proprietário plantou no solo como uma semente e a qual ele cuidou.”
“Assim,
ó Rei, boas ações e más ações são feitas pelo mesmo nome e forma, e são outras
as que renascem. Mas o ser que sucede não está livre ou liberto do Karma gerado
nas existências passadas”.
“Ou
suponha que um homem numa floresta deixe uma lamparina para ir buscar água, e
um veado passa correndo e derruba a lâmpada pondo fogo e queimando toda a
floresta. Aquele homem seria responsabilizado pelo fogo na floresta?”
“Sim,
porque não importa o que possa dizer, o fogo na floresta foi feito pela chama
da lamparina deixada por ele”.
“Da
mesma forma, ó Rei, é um nome e forma que morre (a lamparina) e outro nome e
forma (o fogo na floresta) foi produzido. O fogo na floresta é o resultado da
chama da lamparina, portanto ele é culpado de ter queimado a floresta”[13].
O
Buddha colocou que a causa e a condição de toda essa corrida de uma existência
à outra existência, desse mundo ao próximo mundo, são a cobiça sensorial, o
ódio e a delusão. Isso é mostrado nos seguintes discursos:
“Verdadeiramente,
monges, devido à cobiça sensorial, condicionados pela cobiça sensorial,
impelidos, inteiramente movidos pela cobiça sensorial, reis lutam com reis,
príncipes com príncipes, sacerdotes com sacerdotes, cidadãos com cidadãos,
fazendeiros com fazendeiros. Mães brigam com filhos, o filho com a mãe, pai
briga com o filho, filho com o pai; irmão briga com irmão, irmã com irmã, irmão
com irmã, amigo briga com amigo. Assim se dá a discórdia, brigas e lutas,
promovidas pela cobiça sensorial, eles lutam uns com os outros com os punhos,
paus, ou armas, e por isso eles morrem ou sofrem dores mortais.
E
assim, devido à cobiça sensorial, as pessoas arrombam as casas, roubam, pilham,
saqueiam, cometem roubos nas estradas, seduzem as mulheres dos outros. Então os
legisladores pegam essas pessoas e infligem neles várias formas de punição. E
por isso eles ficam sujeitos à morte e à dor mortal. Agora, essa é a miséria da
cobiça sensorial, o fruto do sofrimento nessa vida, devido à cobiça sensorial.
E,
assim, pessoas tomam o maligno caminho em ações, palavras e pensamentos; e
assim, na hora da dissolução do corpo após a morte, elas caem em um estado de
existência inferior, um estado de sofrimento na perdição, nos abismos do
inferno. Mas essa é a miséria da cobiça sensorial, o fruto do sofrimento no
futuro, devido à cobiça sensorial”[14].
“Monges,
há 3 condições-raízes envolvidas na feitura das ações, a saber: cobiça, ódio e
delusão. As ações que são feitas com cobiça, ódio e delusão, que surgiram
através da cobiça, ódio e delusão, produzidas por cobiça, ódio e delusão, essas
ações irão frutificar aonde quer que o ser renasça, e onde a ação florescer,
ali o ser colhe o fruto da ação, seja nessa vida ou na próxima vida, ou em
vidas futuras.
O
mesmo se dá com as sementes ilesas e não estragadas, não danificadas pelo vento
e pelo sol, saudáveis e bem preservadas, as quais após serem colocadas no solo
rico e num terreno bem preparado, regadas com muita chuva, irão crescer e
desenvolver completamente”[15].
A
destruição dos seres vivos, tomar pertences de outros homens, a incorreta
indulgência sexual, mentir, trapacear, falar rude, linguagem vulgar, conversa
vazia e sem sentido, o uso de bebidas intoxicantes que levam ao entorpecimento
e assim por diante, se cometidos e praticados com frequência, levam ao
renascimento no inferno ou no mundo animal, ou no mundo dos fantasmas famintos.
Até mesmo o menor dos resultados de qualquer desses atos leva à circunstâncias
desafortunadas, mesmo se renascer como um ser humano.
Os
seres são possuidores e herdeiros de suas ações ... as ações dividem os seres
em superiores e inferiores.
Existe
aquele, mulher ou homem, que destrói seres humanos, é cruel, dedicado a
machucar e a matar, sem amor pelas coisas vivas. Através de tais ações, realizadas
ou por realizar, essa pessoa, na dissolução do seu corpo na morte, irá cair em
um estado inferior de existência, num curso de vida maléfico, na perdição ou
inferno... ou se renascer como um ser humano, ele terá, não importa onde, uma
vida curta.
E
ele se move sorrateiramente em suas ações de corpo, fala e pensamento.
Sorrateiros são seus trabalhos, palavras e pensamentos, sorrateiros seus
caminhos e posses. Mas eu digo a vocês, monges, qualquer um que persegue
caminhos e objetos sorrateiros, terá que esperar dois desses resultados: se
atormentar no inferno ou nascer entre os animais que se arrastam.
Existe
aquele que tem o hábito de causar dor a outros através dos punhos, pedra, pau
ou espada. Através de tais ações irá cair num estado inferior... ou se,
renascendo como ser humano, ele terá, onde quer que esteja, muitas doenças.
Existe
aquele que tem um temperamento esquentado, rapidamente entra na raiva; à menor
coisa que lhe é dita ele fica enfurecido, é bravo, teimoso, mostra excitamento,
ódio e suspeita. Através de tais ações irá cair num estado inferior ... ou se
nascer entre os seres humanos terá uma aparência feia.
Existe
aquele que é invejoso, cheio de ciúmes e animosidade. Sente inveja do que os
outros recebem como presentes, hospitalidade, honra, veneração, respeito
salutar, e oferendas. Através de tais ações ou pensamentos ele irá cair num
estado inferior... ou, se nascer como um ser humano ele irá, onde quer que
seja, possuir somente pouca influência.
Existe
aquele que é arrogante e cheio de vaidade. Ele não saúda quem deveria, nem se
levanta para quem deveria, nem respeita ou honra os que são devidos, nem dá
presentes para os que deveriam receber presentes. Através de tais ações e
pensamentos irá cair num estado inferior ... ou se renascer como ser humano,
ele irá, onde quer que seja, nascer num berço inferior.
Existe
aquele que não visita um homem sábio e santo e coloca a ele tais perguntas “O
quê, ó Venerável Senhor, é kármicamente benéfico, o quê é kármicamente não
benéfico, o quê é que tem valor, o quê não tem valor? O quê se deve praticar e
o quê não? Qual prática me levará à tristeza e ao sofrimento, e qual me levará
à felicidade e bençãos?
Não
obtendo ajuda e conselhos dos homens sábios, permanecendo nas trevas sobre
essas coisas, ele irá cair em um estado inferior de existência ... ou se nascer
como um ser humano, ele irá, onde quer que seja, ter pouca inteligência”[16].
A
seguir uma história de 2 monges no tempo de Buddha, que tinham a visão da
clarividência e estavam descendo uma certa montanha, onde normalmente moravam,
para entrar na vila abaixo e começar a fazer a sua ronda de mendicância.
“Agora
o venerável Mogallana, descendo a montanha e passando por certo lugar, sorriu.
Então o venerável Lakkhana disse a ele: “Porque razão, qual é a causa, amigo
Moggallana, porque agora você deu um sorriso?”
“Exatamente
agora, amigo Lakkhana, enquanto eu estava descendo, vi um esqueleto[17]
indo através do ar, e urubus, corvos e falcões voando atrás dele, pegando seus
ossos, arrancando partes dele, enquanto ele lançava gritos de dor. Para mim,
amigo, veio esse pensamento: Ó, mas isso é maravilhoso, isso é fantástico, que
uma pessoa irá ter tal forma (dificuldade)”[18].
Esse ser era um açougueiro (em sua vida passada) nessa vila de Rajagaha. Ele,
pelo efeito de seu trabalho, sofreu por muitos anos no purgatório, e agora pelo
efeito remanescente, ele adquiriu uma personalidade (existência como um peta) desse tipo.
Em
dias diferentes ... eu vi um homem afundando sua cabeça num fosso cheio de
estrume. Aquele ser era um adúltero ... eu vi um homem afundando num fosso de
estrume comendo estrume com ambas as mãos. Aquele ser era um Brahmin. Ele, no
tempo de Kassapa Buddha, convidou a ordem dos monges para uma refeição. Então
enchendo suas tigelas de estrume, disse: “Oh, deixe que meus mestres comam seu
recheio e levem o restante embora! ... Eu vi um homem com tronco sem cabeça
indo pelos ares; seus olhos e boca estavam em seu peito. Esse
ser era um bandido chamado Harika ... eu vi um monge indo pelos ares, seu manto,
seu cinto, sua vasilha e também seu corpo estavam pegando fogo, queimando ele
estava gritando de dor e tristeza. Ele foi um monge maléfico durante o tempo de
Buddha Kassapa ... Para mim, amigo, veio esse pensamento: ‘Ó, mas isso é
maravilhoso, isso é fantástico, que tal pessoa tenha tal aspecto’”.
Então
o Buddha dirigiu-se aos monges: “Monges, vivam a vida de visão, do insight,
pois o discípulo irá saber ou irá ver ou irá testemunhar coisas como essas. Eu
também, monges, tenho já visto estas coisas antes. Essas pessoas foram agentes
maléficos em suas vidas anteriores aqui em Rajagaha. Mas pelos
efeitos de suas ações maléficas (akusala-kamma),
eles sofreram por muitos anos no purgatório. Agora, pelo efeito remanescente de
suas ações, eles adquiriram personalidades condizentes àquele tipo.
“Portanto,
monges, sejam atentos em seus pensamentos, fala e ações, assim irão se
emaranhar menos numa dificuldade semelhante, após a morte de seu corpo”[19].
Assim
é com o renascimento dos seres: irão renascer de acordo com suas ações. E tendo
renascido irão experienciar o resultado de suas ações. Portanto, eu declaro:
seres são possuidores e herdeiros de suas ações, suas ações são o útero de onde
irão nascer, eles estão ligados às suas ações, suas ações são seu refúgio. Aquelas
ações que fizerem, boas ou más, de tais ações serão os herdeiros[20].
Monges,
vamos supor que um pano esteja manchado e sujo, e molhado e mergulhado em tinta
ou algo assim. Seja azul ou amarelo ou vermelho ou rosa, estará impuro em cor. E por quê isso? Porque
o pano não estava limpo. Assim também quando a mente está manchada, um infeliz
destino numa existência futura deve ser esperado.
E
quais são as impurezas da mente? Luxúria e cobiça incorreta são as impurezas da
mente. Inveja, ciúmes, hipocrisia, teimosia, fraude, presunção e orgulho, são
as impurezas da mente. Arrogância, vaidade e negligência são as impurezas da
mente.
Mas,
monges, vamos supor que um pano esteja limpo e brilhante e molhado em alguma
tinta ... ele estará puro e perfeito em cor. E por quê isso? Porque o pano estava limpo.
Assim também, quando a mente está pura e livre das impurezas, uma destinação
feliz numa existência futura deve ser esperada”[21].
Entretanto,
nada do que aqui foi dito implica numa predestinação absoluta, que anule a necessidade
de se ocupar sobre qualquer coisa, ou de se deixar de fazer o bem ou refrear do
mal. Não podemos apagar todas as nossas impressões acumuladas no passado. Nós
podemos, entretanto, começar a conferir e controlar a entrada presente de Karma
não-saudável, que poderá dar surgimento futuramente à dor e desconforto. Nós
podemos diminuir o efeito do Karma passado não-saudável realizando e acumulando
agora muito Karma saudável. Isso pode ajudar muito a combater ou enfraquecer os
efeitos dos Karmas não-saudáveis e condicionará o surgimento de felicidade e
situações confortáveis no futuro.
O
Buddha também disse que é muito difícil e raro obter um renascimento no mundo
dos seres humanos. Isso é devido à maneira em que os seres sencientes são
distribuídos através dos reinos samsáricos. O número de seres humanos é somente
uma pequena fração do número total dos seres nos reinos celestiais, infernais,
ou existindo como animais e espíritos. Os sutta abaixo descrevem a dificuldade
e raridade de se ter um nascimento humano.
A
PONTA DA UNHA
“Então
o Abençoado pegou com a ponta dos dedos um pouco de areia e mostrou aos monges
desse modo: ‘O que vocês pensam, monges? Qual é o maior, um pouco dessa areia
em meus dedos ou toda a areia em todos os oceanos?”
“Senhor,
toda a areia em todos os oceanos é maior. É quase nada o pouco de areia
mostrado pelo Abençoado em
seus dedos. Não se pode calcular em comparação, não é nem uma
fração quando comparado com toda a areia em todos os oceanos – essa quantidade
pouca de areia na unha do Abençoado”.
Da
mesma forma, são os seres que renascem entre os humanos, um pequeno número
comparado com o grande número que renascem em outro lugar e não entre os
humanos.”
A
TARTARUGA NO MAR
Uma
vez o Abençoado contou a seguinte história.
“Há,
monges, nas profundezas do grande oceano, uma tartaruga cega e ela nada sem
parar em todas as direções, onde sua cabeça a levar. Há também uma roda de
carroça, um anel de madeira que flutua sem cessar na superfície do grande
oceano, sendo carregado em todas as direções pela maré, correntes e ventos.
“Então
a tartaruga vem à superfície para respirar apenas uma vez a cada cem anos. E
por acaso acontece que o anel de madeira está precisamente no local e quando a
tartaruga cega vem à superfície do oceano, e coloca sua cabeça justamente
através do centro daquele anel.
“Agora,
monges, é possível que isso possa acontecer?”
“É
quase impossível, Senhor, na usual verdade, mas com o tempo tão vasto, pode-se
admitir que em algum tempo ou outro talvez isso possa acontecer, desde que a
tartaruga cega viva o suficiente e o aro de madeira não se rompa e quebre antes
que tal coincidência aconteça”.
“O
acontecimento de tão estranho fato, monges, não deve ser considerado como
difícil; existe algo ainda maior, mais difícil, centenas de vezes, milhares de
vezes mais difícil do que isso. E o que é?
“É
a obtenção da oportunidade de renascer no mundo dos humanos, obter renascimento
humano outra vez, após ter tido uma vez perdido e ter renascido em qualquer dos
reinos inferiores de miséria. A ocorrência da união da cabeça da tartaruga com
a roda de madeira não é mencionada como dificuldade em comparação com isso,
porque somente os que realizam boas ações e se abstém de fazer o mal podem
obter a existência no mundo dos homens e deuses. Os seres nos mundos inferiores
não podem discernir o que é virtuoso e o que não é virtuoso, o que é meritório
e o que não é, e consequentemente vivem uma vida de mortalidade e deméritos,
atormentando uns aos outros com todo seu poder. Portanto, monges, a oportunidade
dos seres renascerem como ser humano, após ter caído em um dos reinos
inferiores, é extremamente difícil e ocorre raramente”.
O
reino humano da existência é o único lugar, de todos os vários reinos
samsáricos, no qual os seres podem praticar o Dharma de modo a se libertarem da
roda incessante de nascimento e morte. Isso porque nos reinos inferiores –
inferno, mundo dos fantasmas famintos e espíritos sem corpo, e o mundo animal –
o sofrimento é tão grande e a ignorância desses seres é tão grosseira que os
tornam incapazes de praticar e moralidade e meditação necessárias para a
Liberação. Nos mundos celestiais há demasiados prazeres sensoriais e
preocupação. Os seres nesses reinos não vêem necessidade de praticar porque
eles são estranhos ao sofrimento e não podem saber que seu êxtase é somente
temporário. Nos mundos sem forma os seres são principalmente semi-conscientes;
eles não conseguem pensar ou raciocinar, assim é impossível para eles
praticarem o Dharma.
No
mundo dos humanos há um equilíbrio entre prazer e sofrimento, e os humanos têm
a habilidade de raciocinar e experienciar o que é saudável e o que não é
saudável do ponto de vista de causa e efeito. Nós também temos a oportunidade
de entrar em contato com os Ensinamentos do Dharma e de visitar os entendidos e
sábios que podem nos ensinar e nos inspirar.
Nos
outros reinos isso é extremamente difícil e pouco provável. Devemos, portanto,
perceber que essa oportunidade de ter um nascimento como humano é muito
afortunado e raro. Devemos fazer o melhor uso dessa vida e fazer seriamente
todo o esforço para estudar e colocar em prática as várias essencialidades do
Dharma – moralidade, purificação mental, e o desenvolvimento da sabedoria. Isso
irá acumular de modo firme e evitar a possibilidade de renascimento nos reinos
inferiores de miséria, e nos levará finalmente à Iluminação e a Liberação do samsara.
Estes
ciclos de existência repetida, samsara,
são bem ilustradas por alguns sermões do Buddha:
“Incalculável
é o início deste trajeto. Não é revelado o ponto mais inicial desta constante
corrida e passagem dos seres cobertos pela ignorância e atados pelo apego.
Como
uma vara atirada pelo ar, cai algumas vezes sobre uma ponta, algumas vezes de
lado, algumas vezes sobre a outra ponta, assim também os seres obstruídos pela
ignorância e manchados pela cobiça e apego migram pelos ciclos do nascimento e
morte, indo do mundo (dos humanos) para outro mundo, e noutra vez indo de outro
mundo para este. Portanto, durante muito tempo, monges, eu e vocês
experienciamos sofrimento, dor e morte e os cemitérios cresceram, um tempo
suficiente para vocês se tornarem cansados, desapaixonados, desapegados e
libertos de todas as coisas condicionadas.
Por
muitos anos, monges, vocês experienciaram a morte da mãe, do filho, da filha,
experienciaram a ruína, a perda da riqueza, das posses, experienciaram a
calamidade da doença, da fome, enchente, lamentação, pesar, e desespero. Grande
é a corrente de lágrimas derramadas por vocês – choro e lágrimas sobre uma ou
todas essas coisas enquanto correm em círculos dessa forma por muitos anos,
sendo afligidos pelo que é indesejável e separados do que é desejável – muito
mais do que as águas nos quatro grandes oceanos.
Por
muitos anos o sangue fluiu, sangue derramado pelas perdas das suas cabeças
cortadas por ladrões, saqueadores das vilas, adúlteros, assassinos – mais
sangue do que as águas nos quatro grandes oceanos. Por muitos anos o sangue
fluiu pela perda de suas cabeças quando nasceram como boi, búfalo, carneiros,
cabras, galinhas, como feras, como aves de caça, como porco – mais sangue do
que as águas nos quatro grandes oceanos.
Por
muitos éons, vocês têm sofrido com doenças, dores, desastres, e morte, e os
cemitérios cresceram. Assim, é bastante suficiente para vocês se desapegarem de
todas as coisas do mundo, suficiente para perderem todas as paixões e apegos a
elas, suficiente para serem libertos delas.
Não
é uma coisa fácil encontrar um ser que durante esse longo éon não tenha uma vez
ou outra sido sua mãe, pai, irmão, irmão, ou amigo, etc. Se um homem fizesse
dessa grande terra umas bolas de argila do tamanho de uma grão de milho, e ele
as colocasse lado a lado dizendo, ‘Esse é meu pai, esse é o pai do meu pai’, e
assim por diante, essa grande terra logo seria insuficiente diante dos tantos
pais dos pais deste homem. Isto por quê? Porque incalculável é o início deste
trajeto, e não é revelado o ponto mais inicial desta constante corrida e
passagem dos seres cobertos pela ignorância e atados pelo apego e cobiça”.
Certa
vez um monge veio até o Abençoado e perguntou:
“Quão
longo é um éon, Senhor?”
“Longo,
amigo, é um éon. Não é fácil saber quão longo, muitos anos, muitos séculos,
milhares de séculos”.
“Pode
isto ser contado, Senhor, por uma parábola?”
“Sim,
amigo. Suponha que haja um grande penhasco, uma montanha de uma milha de
largura, uma milha de comprimento, e uma milha de altura, sem fenda ou
abertura, uma rocha sólida. E suponha que um homem no final de cada cem anos
golpeie uma vez com um pedaço de seda macia. Bem, aquela grande montanha de
pedra dessa forma seria logo apagada e reduzida a nada, antes que um éon de
tempo tenha decorrido. Assim, amigo, é um éon. E de éons assim longos, mais de
um se passaram, mais do que cem, mais do que mil, mais do que milhões se
passaram. Não é uma coisa fácil contá-los. Por quê isso?
“Incalculável
é o inicio desse trajeto, atravessando por ciclos de nascimento e morte”.
“Se
um simples ser humano, durante sua correria por um simples éon através desses
ciclos de nascimento e morte, amontoasse todos os ossos, e os ossos não se
tornassem pó, iria surgir uma pilha de ossos tão grande como essa grande
montanha”.
“Assim
por um longe tempo, amigo, você tem experienciado sofrimento, dor e morte e os
cemitérios aumentaram de tamanho, longo o suficiente para você ter se tornado
desapegado e exausto de todas as coisas condicionadas, longo o suficiente para
você ter se desapegado e se soltado deles”.
“Quando,
monges, vocês carregam um pesado fardo (quando vocês vêem pessoas e animais
doentes, deformados, famintos, sendo mal tratados e morrendo, etc.) ou aquilo
que seja duro de suportar, então vocês devem refletir: “Nós também temos sofrido
dessa forma por longo tempo”.
“E
também, quando sustentamos o que é próspero e feliz, etc., então devemos
refletir: “Nós também temos nos alegrado dessa forma por muito tempo (mas isso
sempre tem um fim, e então o sofrimento surge novamente). Porque é assim?”
“Incalculável
é o início desse percurso ... ”
“Chegará
um tempo em que os poderosos oceanos secarão, desaparecerão e se tornarão pó.
Chegará um tempo em que a poderosa Terra será devorada e consumida pelo fogo,
perecerá e não mais existirá. Mas ainda assim não haverá fim para o sofrimento
dos seres que, obstruídos pela ignorância e enganados pela cobiça, estarão
correndo apressados através desse ciclo de nascimentos e mortes, samsara”.
Monges,
a lei bem proclamada por mim é sincera, livre, evidente e despida de
palavreados vãos. Nesta lei, bem clara, qualquer um que tenha fé nesse Dhamma,
amor por esse Dhamma, quem considerar suas instruções, estará destinado ao
reino celestial (não renascerá nos reinos inferiores) pelo menos, ou atingirá o
Nibbana.
O
que deve ser feito por compaixão para os discípulos, por um professor que busca
seu bem estar, eu tenho feito para vocês (ensinando sobre o Karma e
renascimento, e como se libertar). Aqui estão as raízes das árvores, aqui estão
os lugares vazios e calmos. Meditem, monges, não demorem, para que não se
lastimem depois. Esta é minha instrução para vocês”.
Nascimento
e morte, como aqui explicado, descreve principalmente as existências sucessivas
em vários corpos pelos quais uma unidade individual de “Eu-consciência”
kármicamente-energizado se manifesta através dos ciclos samsáricos. Num nível
mais profundo, entretanto, nascimento e morte se aplicam ao surgir e
desaparecer do conjunto dos cinco aspectos da experiência sensorial da
consciência, momento a momento, em cada momento-mental sucessivo. Isto é o
nascimento e morte no sentido verdadeiro.
No
sentido último, a vida dos seres é extremamente curta, tão curta quanto o
surgir e desaparecer de cada momento de consciência.
Assim
como a roda da carroça quando rolando, rola somente num ponto por vez, quando
ela está parada, descansa somente num ponto. Assim também a vida dos seres dura
somente por um simples momento de consciência. Quando um momento de consciência
cessa, é dito que o ser cessou.
Vida, prazeres
pessoais, dor, apenas estes
Juntam-se num momento
de consciência que tremula.
Cessados os agregados
dos vivos ou mortos
São semelhantes, indo
para não mais retornar (do mesmo modo).
Se a consciência não
surgir,
Nenhum mundo (da
experiência sensorial) nasce.
Quando a consciência
está presente, o mundo vive;
Quando a consciência se
dissolve, o mundo morre.
É
dito que o Buddha podia ver, com seus olhos de Sabedoria, que a consciência
surge e desaparece milhões de vezes num piscar de olho. Se a consciência
acontece tão rapidamente, não é de se surpreender que ela pareça ser um tênue
fenômeno fluindo e que a sensação do “self” ou “eu”, por detrás desse processo,
pareça sólido. É como um rolo de filme passando através de um projetor, e o
filme sendo projetado numa tela. Embora o rolo de filme seja feito de
fotogramas individuais e separados, dá a aparência ilusória de ser uma imagem
longa e contínua. É por isso que as pessoas são enganadas no pensamento de que
é um “eu” permanente e substancial que é consciente. Elas não conseguem ver a
natureza efêmera e cambiante disso, como realmente é. Esse processo só pode ser
penetrado através da meditação, com uma atenção calma e aguda, e assim se obter
um lampejo sobre isto. Cessar o nascimento e morte da mente condicionada é
cessar o sofrimento, é recuperar o estado natural da mente, o Imortal, Nibbana.
Referências
Todas
as referências são da edição do Tipitaka do
Pali Text Society, salvo aquelas porventura especificadas. As abreviações
usadas nas notas são:
S.
– Samyutta Nikaya
A.
– Anguttara Nikaya
D.
– Digha Nikaya
M.
– Majjhima Nikaya
Vism.
– Visuddhimagga
Dhp.
– Dhammapada
U.
– Udana
Iti. – Iti Vuttaka
QKM – Questions of King Milinda
B.P.S. – Buddhist Publication Society
O
número de sentenças das citações usadas no texto foi modificado, de modo a
eliminar repetições desnecessárias e a conformar à sintaxe e pontuação moderna,
mas de nenhum modo foi alterada a significação e magnitude das mesmas.
(Observações do autor)
Notas
[1]
Bom, mau, maligno, significando neste sentido o que é hábil ou inábil, causando
dor ou felicidade no futuro, baseado nas ações presentes.
[2]
Citado no B.P.S. Wheel series # 208-211, Anguttara
Anthology, p.12.
[3]
Adaptado e elaborado do M. 141 (vol. III, pp. 296 – 297)
[4]
Extraído de S. XII, 23; (Vol. II, p.27)
[5]
Extraído de S. XII, 20; (Vol. II, p.22)
[6]
Elaboração do S. XII, 3; (Vol. II, p.5)
[7]
Elaboração do S. XII, 44; (Vol. II, p.51)
[8]
Adaptado do S. XII, 11; (Vol. II, p.8)
[9]
Extraído de S. XII, 64; (Vol. II, p.71-72)
[10]
Sinopse de S. XII, 2, 12; (Vol. II, p.9-11)
[11]
Condensado de S. XII, 4, 38; (Vol. II, p.45)
[12]
Reunido e condensado de S. XII, 52, 53, & 58; (Vol. II, p.59, 60, 62)
[13] D. 9, in Sacred Books of the Buddhists, (Vol. II, “Dialogues of the Buddha”,
pp. 254-255), e in Maurice Walshe, Thus I
Have Heard: The Long Discourses of the Buddha, (Wisdom Publications, 1987,
pp. 164 – 165)
[14]
Veja M. 63, (Vol. II, pp.97-101)
[15]
Extraído de S. LVI, i; (Vol. V, p. 370)
[16]
S. XII, 18; (Vol. II, p. 17-19)
[17]
S. XII, 47; (Vol. II, p. 53)
[18]
De Universal Light, um pequeno livro
comido pelos vermes, encontrado numa biblioteca do Hermitage Island, Kandy, Sri
Lanka. Autor e data de publicação desconhecidos.
[19]
Parafrase de S. XII, 60; (Vol. II, p. 64)
[20]
Condensação de A. III, 134; (Vol. I, pp. 264-265)
[21]
Consolidado e elaborado de S. XII, 82-83; (Vol. II, pp. 93-94)
*******
A
Marcha dos Tempos
nos
ensinamentos do Buddha
Cakkavati – Sihanada
Sutta: O
Rugir do Leão no Girar a Roda
sutta 26 Digha Nikaya (1)
1.
“ASSIM EU OUVI. Certa vez, o Abençoado estava entre os Magadhans em Matula.
Então ele disse: ‘Monges!’ ‘Abençoado’, eles responderam, e o Abençoado disse: ‘Monges, sejam ilhas para vocês mesmos,
sejam um refúgio para vocês mesmos, sem outro refúgio. Que o Dhamma seja seu
refúgio, que o Dhamma seja seu refúgio, sem outro refúgio. E como um monge
habita como um refúgio dentro de si mesmo, como um refúgio dentro de si mesmo
sem outro refúgio, como o Dhamma como seu refúgio, sem outro refúgio? Aqui, um
monge permanece contemplando o corpo como corpo, ardente, consciente e
plenamente atento, tendo abandonado a cobiça e o pesar pelo mundo, ele
permanece contemplando as sensações como sensações,ele permanece contemplando a
mente como a mente...ele permanece contemplando os dhammas como dhammas,
ardente, claramente consciente e plenamente atento, tendo posto de lado o
desejo e o apego pelo mundo.
Mantenham-se em suas próprias
proteções, em seus domínios ancestrais. Se fizerem isto, então Mara não
encontrará onde se alojar, não encontrará suporte. É apenas pela construção de
estados saudáveis que esse mérito aumenta’.
2.
‘Certa vez, monges, havia um monarca girador-da-roda, chamado Dalhanemi, um
justo monarca da lei, conquistador das quatro direções, que havia estabelecido
a segurança de seu reino e que era possuidor dos sete tesouros. São eles: o
Tesouro da Roda, o Tesouro de Elefante, o Tesouro de Cavalo, o Tesouro de Jóia,
o Tesouro de Mulher, o Tesouro de Chefe de família, e o sétimo, o Tesouro de
Conselheiro (2). Ele possui mais de mil filhos que são heróis, de estatura
heróica, conquistadores dos exércitos hostis. Ele habita tendo conquistado as
terras, rodeadas pelo mar, sem o uso do bastão ou da espada, mas pela lei’.
No
Digha Nikaya 3, 1.5, Buddha explica ao brâmane Ambatha que se ele, o Buddha
tivesse escolhido seguir o caminho da vida de chefe de família, ele se tornaria
o monarca justo-que-gira-a Roda, e com isso teria todos os domínios, tal qual
referido neste sutta. E se escolhesse abandonar a vida de chefe de família e
seguir o caminho dos sem-lar, então ele se tornaria um Arahant, um plenamente iluminado
Buddha, aquele que retira o véu (da ignorância) sobre o mundo.
A
figura do monarca justo-que-gira-a-Roda refere-se ao Chakravartin, o
arquétipo-modelo do Rei justo. Como função real, se situa abaixo do poder
espiritual, o lugar dos Buddhas. Por isso, Buddha renuncia ao lugar do Monarca
Universal, para se tornar o Plenamente Iluminado (3).
3. ‘E,
após muitas centenas e milhares de anos, o Rei Dalhanemi disse à certa pessoa:
“Meu bom homem, sempre que você ver que o sagrado Tesouro-da-Roda tiver se
deslizado de sua posição, me notifique”. “Sim, senhor”, ele respondeu. E após
muitas centenas e milhares de anos o homem viu que o sagrado Tesouro-da-Roda
havia se deslizado de sua posição. Vendo isto, ele notificou o fato ao Rei.
Então o Rei Dalhanemi dirigiu-se ao seu filho mais velho, o príncipe herdeiro,
e disse: “Meu filho, o sagrado Tesouro-da-Roda deslizou de sua posição. E ouvi
dizer que quando isto acontecesse ao monarca-que-gira-a-Roda, ele não teria muito
mais o que viver. Eu já tive preenchido os prazeres humanos, agora é hora de
buscar os prazeres celestes. Você, meu filho, tome conta dessas terras rodeadas
pelo oceano. Cortarei meus cabelos e barba, vestirei mantos amarelos, e
seguirei da vida familiar para vida sem lar”. E, tendo coroado seu filho mais
velho na devida forma de rei, o Rei Dalhanemi cortou seus cabelos e barba,
vestiu mantos amarelos, e seguiu da vida familiar para vida sem lar. E, sete
dias após o sábio rei ter seguido para esse caminho, o sagrado Tesouro-da-Roda
desapareceu’.
‘Então um certo homem veio ao
consagrado Rei Khattiya e disse: “Senhor, você precisa saber que o sagrado
Tesouro-da-Roda desapareceu”. Com isto, o Rei ficou pesaroso e se sentiu
triste. Ele foi ao sábio da corte real e lhe contou o fato. E o sábio
disse-lhe: “Meu filho, você não precisa ficar pesaroso ou se sentir triste pelo
desaparecimento do Tesouro-da-Roda. O Tesouro-da-Roda não é um objeto herdado
de seus pais. Mas agora, meu filho, você deve se transformar em um Ária
girador-da-roda. Daí então poderá ocorrer que, se você cumprir os deveres de um
Rei Ária girador-da-roda, no dia 15º do jejum, quando você tiver lavado sua a
cabeça e tive ido para o jejum à varanda no topo do seu palácio, o sagrado
Tesouro-da-Roda lhe aparecerá, com mil aros, com a pina, cubo e todos os
acessórios’.
5.
‘“Mas qual é, senhor, o dever de um monarca Ariya girador-da-roda?” “É este,
meu filho. Dependendo você mesmo no Dhamma, honrando-o, reverenciando-o,
estimando-o, homenageando-o e venerando-o, tendo o Dhamma como seu emblema e
bandeira, reconhecendo o Dhamma como seu mestre, você deve estabelecer a guarda
e proteção de acordo com o Dhamma para sua própria família, suas tropas, sua
nobreza e vassalos, para os brâmanes e chefes de família, seu povo da cidade e
do interior, ascetas e brâmanes, animais e pássaros. Que não prevaleça o crime
no seu reino, e para os necessitados ofereça bens. E quaisquer ascetas e
brâmanes que em seu reino tenham renunciado à vida da intoxicação sensual e que
sejam devotados à tolerância e gentileza, cada um domando a si mesmo, cada um
acalmando a si mesmo e cada um se esforçando para acabar com o apego, se de
tempos em tempos eles vierem até você e lhe consultar sobre o que é saudável e
o que é não saudável, o que é censurável e o que é não censurável, o que deve
ser seguido e o que não deve ser seguido, e qual ação levará à longo prazo ao
dano e lamentação, e o que levará ao bem estar e felicidade, você deverá ouvir
e dizer que evitem o mal e façam o bem. Isto, meu filho, é o dever do monarca
Ariya girador-da-roda”.
6.
‘“Sim, senhor”, disse o Rei, e ele cumpriu os deveres de monarca Ariya
girador-da-roda. E tendo feito isso, no 15º dia do jejum, tendo ele lavado sua
cabeça e subido à varanda no topo do palácio para o dia de jejum, o sagrado
Tesouro-da-Roda apareceu para ele, com mil aros, com a pina, cubo e todos os
acessórios. Então o Rei pensou: “Ouvi que, quando um devidamente consagrado Rei
Khattiya ver tal roda no dia de jejum do 15º dia, ele se tornará um monarca
girador-da-roda. Possa eu me tornar tal monarca”.
‘Então, erguendo-se de seu assento,
cobrindo um dos ombros com seu manto, o Rei tomou uma tigela de ouro em sua mão
esquerda, aspergiu a Roda com sua mão direita, e disse: “Que o Tesouro-da-Roda
gire, que o Tesouro-da-Roda conquiste!” A Roda girou para o leste, e o Rei a
seguiu com seu quádruplo exército. E em qualquer região que a Roda parasse, o
Rei se instalava com seu quádruplo exército. E aqueles que a ele se opunham na
região leste vieram e disseram: “Venha, Sua Majestade, bem vindo! Somos seus súditos, Sua Majestade. Governe-nos, Sua Majestade”. E o Rei dizia: “Não
tirem a vida (não matar). Não tomem o que não é dado. Não cometam má-conduta
sexual. Não mintam. Não tomem bebidas alcoólicas. Sejam moderados no comer”
(4). E os da região leste que a ele tinham se oposto se tornaram seus súditos’.
7. ‘Então
a Roda girou para o sul, oeste e norte ... (repete-se verso 6). Então o
Tesouro-da-Roda, tendo conquistado as terras de um lado do mar a outro,
retornou à capital do reino e parou diante do palácio do Rei, como que
adornando o palácio real’.
8. ‘E
um segundo monarca girador-da-roda fez o mesmo, e um terceiro, quarto, quinto,
sexto e um sétimo também... disse a um homem que visse se a Roda teria
deslizado de sua posição (como no verso 3). E sete dias depois que o sábio da
corte real tinha se retirado, a Roda desapareceu’.
9.
‘Então um homem veio ao Rei e disse: “Senhor, você deveria saber que o
Tesouro-da-Roda desapareceu”. Então por isto o Rei se lamentou e se sentiu
triste. Mas ele não foi ao sábio da corte real para lhe perguntar sobre os
deveres de um monarca girador-da-roda. Ao invés disso, ele regeu seu povo
segundo suas próprias idéias (5), e, tendo assim regido, o povo não prosperou tão
bem como havia sido sob a regência dos reis anteriores que haviam cumprido seus
deveres de um monarca girador-da-roda’.
‘Então os ministros, conselheiros,
tesoureiros, guardas e vigias, e os cantadores dos mantras vieram ao Rei e
disseram: “Senhor, como você tem regido o povo segundo suas próprias idéias, e,
diferentemente do modo como era regido pelos anteriores monarcas
giradores-da-roda, então o povo não prospera bem. Senhor, há ministros .... no
seu reino, incluindo a nós, que preservaram o conhecimento de como um monarca
girador-da-roda deve reger. Pergunte-nos, Sua Majestade, e nós lhe diremos”.
10.
‘Então o Rei ordenou que todos os ministros e os outros viessem juntos, e os consultou.
E eles explicaram ao Rei os deveres de um monarca girador-da-roda. E tendo
ouvido-os, o Rei estabeleceu a vigia e a proteção, mas não ofereceu bens aos
necessitados, e por conseqüência a pobreza se tornou freqüente. Devido ao
espalhamento da pobreza, um homem tomou o que não era dado, cometendo assim o
que era denominado de roubo. Eles o prenderam, e o trouxeram perante o Rei,
dizendo: “Sua Majestade, esse homem tomou o que não lhe foi dado, cometendo o
que é denominado de roubo”. O Rei disse-lhe: “É verdade que você tomou o que
não lhe é dado - o que é denominado de roubo?” “Sim, Sua Majestade”. “Por quê?”
“Sua Majestade, eu não tenho nada para me manter”. Então o Rei lhe deu alguns
bens, dizendo: “Com isto, meu bom homem, você pode se manter, manter sua mãe e
pai, esposa e filhos, desenvolver um trabalho, e faça oferendas aos ascetas e
brâmanes, que isto promoverá seu bem estar espiritual e conduzirá a um
renascimento feliz com frutos prazerosos numa esfera celeste”. “Muito bem, Sua
Majestade”, respondeu o homem’.
11. ‘E
exatamente do mesmo modo sucedeu com outro homem’.
12. ‘Então
o povo ouviu que o Rei estava distribuindo bens para aqueles que tomavam o que
não era dado, e pensaram: “Vamos supor que façamos o mesmo!” E então outro
homem tomou o que não era dado, e eles o levaram perante o Rei. O Rei lhe
perguntou por que fizera isso, e ele respondeu: “Sua Majestade, eu não tenho
nada para me manter”. E o Rei então pensou: “Se eu der bens a todos os que
tomarem o que não lhes é dado, o roubo aumentará mais e mais. É melhor que eu
dê um fim a isto de uma vez por todas, e corte-lhe a cabeça”. E ele ordenou aos
seus homens: “Amarrem os braços desse homem firmemente atrás com uma corda
forte, raspem bem sua cabeça, e levem-no pelas ruas e quarteirões sob um duro
som de um tambor e, ao final, pela pena capital, cortem-lhe a cabeça!” E eles
assim fizeram’.
13.
‘Tendo ouvido falar sobre isto, o povo pensou: “Então consigamos espadas
afiadas feitas por nós, tomaremos de qualquer um o que não é dado [o que é
chamado de roubo], daremos um fim a eles de uma vez por todas, e lhes
cortaremos as cabeças”. Assim, tendo obtido espadas afiadas, desencadearam
ataques criminosos nos vilarejos, vilas e cidades, se dedicaram a roubos nas
estradas, cortando as cabeças de suas vítimas’.
14. ‘Assim,
por não oferecer bens aos necessitados, a pobreza se espalhou; com o aumento da
pobreza, o roubo cresceu; com o aumento do roubo, o uso das armas cresceu; com
o aumento do uso das armas, os homicídios aumentaram – e com o aumento dos
homicídios, a duração da vida das pessoas diminuiu, a beleza deles diminuiu, e
como resultado do decréscimo da duração da vida e da beleza, os filhos daqueles
cuja duração de vida era de oitenta mil anos reduziu-se a apenas quarenta mil
anos’.
‘E um homem da geração daqueles que
viviam por quarenta mil anos tomou o que não lhe era dado. Ele foi trazido
perante o Rei, que lhe perguntou: “É verdade que você tomou o que não lhe é
dado - o que é denominado de roubo?” “Não, Sua Majestade”, respondeu, falando
assim uma deliberada mentira’.
15. ‘Assim,
por não oferecer bens aos necessitados, a pobreza se espalhou; com o aumento da
pobreza, o roubo cresceu; com o aumento do roubo, o uso das armas cresceu; com
o aumento do uso das armas, os homicídios aumentaram – e com o aumento dos
homicídios, a duração da vida das pessoas diminuiu, a beleza deles diminuiu, e
como resultado do decréscimo da duração da vida e da beleza, os filhos daqueles
cuja duração de vida era de quarenta mil anos reduziu-se à apenas vinte mil
anos’.
‘E um homem da geração daqueles que
viviam por vinte mil anos tomou o que não lhe era dado. Um outro homem
denunciou-o ao Rei, dizendo: “Senhor, aquele tal homem tomou o que não lhe era
dado”, falando assim maledicências sobre o outro’.
16. ‘Assim,
por não oferecer bens aos necessitados... a fala maledicente sobre outros
aumentou, e em conseqüência, a duração de vida do povo diminuiu, sua beleza
diminuiu, e como resultado do decréscimo da duração da vida e da beleza, os
filhos daqueles cuja duração de vida era de vinte mil anos reduziu-se a apenas
dez mil anos’.
‘E da geração que viveu por dez mil
anos, alguns eram bonitos, e outros feios. E aqueles que eram feios, invejosos
daqueles que eram bonitos, cometeram adultério com esposas de outros’.
17. ‘Assim,
por não oferecer bens aos necessitados,... a má-conduta sexual aumentou, e como
resultado do decréscimo da duração da vida e da beleza, os filhos daqueles cuja
duração de vida era de dez mil anos reduziu-se a apenas cinco mil anos’.
‘E entre aqueles da geração cuja
duração de vida era de cinco mil anos, duas coisas aumentaram: fala áspera e
conversa fútil, e em conseqüência, a duração de vida do povo diminuiu, sua
beleza diminuiu, e como resultado do decréscimo da duração da vida e da beleza,
os filhos daqueles cuja duração de vida era de cinco mil anos, alguns viveram
por dois mil e quinhentos anos, outros apenas por dois mil anos’.
‘E entre aqueles da geração cuja
duração de vida era de dois mil e quinhentos anos, a cobiça/conscupisciência e
o ódio aumentaram, e, em consequência, a duração de vida do povo diminuiu, sua
beleza diminuiu, e como resultado, os filhos daqueles cuja duração de vida era
de dois mil e quinhentos anos, viveram apenas por mil anos’. (6)
‘E entre aqueles da geração cuja
duração de vida era de mil anos, falsas visões (miccha ditthi) aumentaram ... e, como resultado, os filhos daqueles
cuja duração de vida era de mil anos, viveram apenas por quinhentos anos’.
‘E entre aqueles da geração cuja
duração de vida era de quinhentos anos, três coisas aumentaram: incesto, cobiça
excessiva e práticas incorretas (miccha
dhamma) (7)... e, como resultado, os filhos daqueles cuja duração de vida
era de quinhentos anos, alguns viveram por duzentos e cinquenta anos, outros
por apenas duzentos anos’.
‘E entre aqueles da geração cuja
duração de vida era de duzentos e cinquenta anos, três coisas aumentaram: falta
de respeito para com a mãe e o pai, para com os ascetas e brâmanes, e para com
o líder do clã’.
18. ‘Assim,
por não oferecer bens aos necessitados,... a falta de respeito para com a mãe e
o pai, para com os ascetas e brâmanes, e para com o líder do clã aumentaram, e,
em consequência, a duração de vida do povo diminuiu, sua beleza diminuiu, e
como resultado, os filhos daqueles cuja duração de vida era de duzentos e cinquenta
anos, viveram apenas por cem anos’.
19. ‘Bhikkhus,
virá o dia em que os filhos dessas pessoas terão duração de vida de dez anos. E
com eles, meninas poderão se casar com cinco anos de idade. E com eles, esses
sabores desaparecerão: ghee, manteiga, óleo de sésamo, açúcar grosso e sal.
Dentre esses, o grão de kudrusa (espécie de centeio) será o principal alimento,
assim como hoje são o arroz e o curry. E com eles, as dez vias da conduta moral
desaparecerão completamente, e as dez vias malignas prevalecerão
excessivamente: para aqueles de dez anos de duração de vida não haverá palavra
para “moral” (kusala, ações kammicas
saudáveis), assim como haveria alguém que aja de um modo ético? Aquelas pessoas
que não têm respeito por mãe e pai, por ascetas e brâmanes, pelo chefe do clã/grupo,
serão aqueles que gozarão de honra e prestígio. Como são agora as pessoas que
mostram respeito por mãe e pai, por ascetas e brâmanes, pelo chefe do
clã/grupo, que são estimados e honrados, assim será com aqueles que farão o
oposto’.
20. ‘Dentre
aqueles cuja duração de vida é de dez anos, nenhuma consideração haverá pela
mãe, pela tia, pela mãe da cunhada, pela esposa do professor ou por alguma das
esposas do pai e assim por diante – tudo será promíscuo no mundo, como bodes e
carneiros, galinhas e porcos, cães e chacais. Entre eles, prevalecerá feroz
ódio, feroz raiva e pensamentos homicidas, mãe contra filho e filho contra mãe,
pai contra o filho e filho contra o pai, irmão contra irmão, irmão contra irmã,
do mesmo modo como um caçador sente ódio contra os animais que caça...’(8)
21. ‘E
para aqueles de duração de vida de dez anos, haverá uma “pausa da espada” de
sete dias (ponto de virada), durante o qual eles se confundirão uns aos outros
como bestas selvagens. Afiadas espadas surgirão em suas mãos, e, pensando: “Há
uma besta selvagem”, eles tomarão a vida uns dos outros com essas espadas. Mas
haverá alguns seres que pensarão: “Que nós não matemos ou sejamos mortos por
ninguém. Dirijamo-nos a lugares de mato cerrado, ou a recônditos de selvas ou
de arvoredos, ou com rios de difícil travessia ou montanhas inacessíveis, e
vivamos das raízes e frutos da floresta” (9). E eles assim o farão por sete
dias. Então, ao final dos sete dias, eles emergirão de seus escondidos refúgios
e se regozijarão num mesmo acordo, dizendo: ”Bons seres, vejo que vocês estão
vivos!”. E ocorrerá a esses seres o pensamento: “É somente porque nós nos
tornamos viciados a caminhos malignos que sofremos esta perda de nossa parentela, então façamos
agora o bem! Quais coisas boas podemos fazer? Abstenhamo-nos de tirar a vida –
esta será uma boa prática”. Então eles se absterão de tirar a vida, e, tendo
assumido essa boa coisa, a praticarão. E através do compromisso com essas
coisas saudáveis, eles aumentarão sua duração de vida e beleza. E os filhos desses
cuja duração era de dez anos viverão por vinte anos’.
22. ‘Então
ocorrerá a estes seres: “É pelas práticas saudáveis que aumentamos nossa
duração de vida e beleza, então realizemos mais práticas saudáveis. Vamos nos
abster de tomar o que não é dado, abstenhamo-nos da má conduta sexual, da fala
falsa, da maledicência, da fala rude, da fala inútil, da cobiça, da má vontade,
das visões errôneas, abstenhamo-nos de três coisas: incesto, cobiça excessiva e
práticas abnormais, respeitemos nossas mães e pais, ascetas e brâmanes, e o
chefe do clã, e perseveremos nessas ações saudáveis’.
‘E eles farão essas coisas, e com
isso aumentarão em duração de vida e beleza. E os filhos desses cuja duração é
de vinte anos viverão até os quarenta, seus filhos viverão até os oitenta, os
filhos até cento e sessenta, seus filhos até trezentos e vinte, os filhos até
seiscentos e quarenta; os filhos desses cuja duração é de seiscentos e quarenta
anos viverão por dois mil anos, seus filhos por quatro mil anos, seus filhos
por oito mil anos e os filhos destes por vinte mil anos. Os filhos desses cuja
duração de vida é de vinte mil anos viverão por quarenta mil anos e seus filhos
chegarão aos oitenta mil anos’.
23. ‘Dentre
o povo com duração de vida de oitenta mil anos, as moças se tornarão aptas a se
casarem aos quinhentos anos. E tal povo conhecerá apenas três tipos de doenças:
cobiça, jejum e velhice. E no tempo desses povos o continente de Jambudipa será
poderoso e próspero, e os vilarejos, vilas e cidades estarão a uma pequena
distancia umas das outras. Este Jambudipa, como Avici (o mais inferior dos
infernos), será tão populoso quanto uma floresta repleta de juncos e
vegetações. E neste tempo a atual Varanasi será uma cidade régia chamada
Ketumati, poderosa e próspera, com uma multidão de pessoas e bem suprida. Em
Jambudipa haverá oitenta e quatro mil cidades regidas pela capital régia de
Ketumati’.
24. ‘E
no tempo do povo com a duração de oitenta mil anos, surgirá na capital Ketumati
um rei chamado Sankkha, um monarca-girador-da-roda, um justo monarca da lei,
conquistador das quatro direções (como o verso 2)’.
25. ‘E
naquele tempo do povo com a duração de oitenta mil anos, surgirá no mundo um
Abençoado Senhor, um Buddha Arahant plenamente iluminado chamado Metteya
(Maitreya, em sânscrito), dotado de sabedoria e conduta, o Benvindo, Conhecedor
dos mundos, incomparável Treinador dos homens a serem domados, Mestre dos
deuses e homens, iluminado e abençoado, assim como eu o sou agora. Ele
conhecerá profundamente por seu próprio super conhecimento, e proclamará, este
universo com seus devas e maras e Brahmas, seus ascetas e brâmanes, e esta
geração com seus príncipes e pessoas, assim como eu o faço agora. Ele ensinará
o Dhamma, apreciável em seu início, apreciável em seu meio, apreciável em seu
fim, em espírito e na letra, e proclamará, assim como eu o faço agora, a vida
santa em sua plenitude e pureza. Ele será assistido pela companhia de milhares
de monges assim como sou assistido pela companhia de centenas’.
26. ‘Então
o Rei Sankha re-erguerá o palácio ora erguido pelo Rei Maha-Panada, e tendo
vivido nele, renunciará a ele e o presenteará aos ascetas e brâmanes, aos
pedintes, aos andarilhos, aos destituídos. Então, raspando a cabeça e a barba,
vestirá mantos amarelos e seguirá adiante, da vida de família para os-sem-lar,
sob o supremo Buddha Metteya. Seguindo adiante, permanecerá em solitude,
recluso, ardente, impetuoso e resoluto, e não muito depois alcançará nesta
mesma vida, por seu próprio super conhecimento e resolução, aquele objetivo
inigualável da vida santa, pelo bem do que os jovens de boa família vão da vida
familiar para a vida-sem-lar, e nele habitará’.
27.
‘Monges, sejam ilhas para vocês mesmos, sejam um refúgio para vocês mesmos, sem
outro refúgio. Que o Dhamma seja seu refúgio, que o Dhamma seja seu refúgio,
sem outro refúgio. E como um monge habita como um refúgio dentro de si mesmo,
como um refúgio dentro de si mesmo sem outro refúgio, como o Dhamma como seu
refúgio, sem outro refúgio? Aqui, um monge permanece contemplando o corpo como
corpo, ardente, consciente e plenamente atento, tendo abandonado a cobiça e o
pesar pelo mundo, ele permanece contemplando as sensações como sensações, ele
permanece contemplando a mente como a mente ... ele permanece contemplando os
dhammas como dhammas, ardente, claramente consciente e plenamente atento, tendo
posto de lado o desejo e o apego pelo mundo’.
28. ‘Mantenham-se
em suas próprias proteções, em seus domínios ancestrais. Se fizerem isto, sua
duração de vida aumentará, sua beleza aumentará, sua felicidade aumentará, sua
riqueza aumentará, seu poder aumentará’.
‘E qual é a extensão de vida para um
monge? Aqui, um monge desenvolve o caminho ao poder que é concentração de
intenção acompanhada pelo esforço da vontade, o caminho ao poder que é
concentração de energia acompanhada pelo esforço da vontade, o caminho ao poder
que é concentração de consciência acompanhada pelo esforço da vontade, o
caminho ao poder que é concentração de investigação acompanhada pelo esforço da
vontade. Pela constante prática desses quatro caminhos ao poder, ele pode, se
quiser, viver por um século, ou a parte remanescente de um século. Isto é que
eu chamo a extensão de vida para um monge’.
‘E o que é a beleza para um monge?
Aqui, o monge pratica a conduta correta, a restrição de acordo com a
disciplina, ele é perfeito em comportamento e hábitos, vendo perigo na menor
falta, e treina segundo as regras de treinamento que assumiu. Isto é a beleza
para um monge’.
‘E o que é felicidade para um monge?
Aqui, um monge, desapegado dos desejos sensoriais, desapegado dos estados
mentais não saudáveis, entra e permanece no primeiro jhana, que é acompanhado
do pensamento e ponderação, nascido do desapego, preenchido de deleite e
felicidade. E com o cessar do pensamento e ponderação, pela obtenção da
tranquilidade interior e unifocamento da mente, ele entra e permanece no
segundo jhana, que é sem pensamento e ponderação, nascido da concentração,
preenchido com deleite e felicidade. E com o cessar do deleite, permanecendo
imperturbável, plenamente atento e claramente consciente, ele experimenta nele
a felicidade do qual o Nobre diz: “Feliz é aquele que permanece com
equanimidade”, ele entra no terceiro jhana. E, tendo abandonado o prazer e a
dor, e com a cessação da felicidade e tristeza anterior, ele entra e permanece
no quarto jhana, que está para além do prazer e da dor, e é purificado pela
equanimidade e plena atenção. Isto é felicidade para um monge’
‘E o que é riqueza para um monge?
Aqui, um monge, com um coração preenchido com amor-bondade, habita preenchendo
um quarto (do espaço), o segundo, o terceiro, o quarto. Assim, ele habita
preenchendo o mundo todo, acima, abaixo, de um lado a outro – em todo lugar,
sempre com a mente preenchida com amor-bondade, abundante, ilimitado, sem ódio
ou má-vontade. Então, com o seu coração preenchido com compaixão,... com seu
coração preenchido com alegria simpatética,... com o coração preenchido com
equanimidade,... ele habita preenchendo o mundo todo, acima, abaixo, de um lado
a outro – em todo lugar, sempre com a mente preenchida com equanimidade,
abundante, ilimitado, sem ódio ou má-vontade. Isto é riqueza para um monge’.
‘E o que é o poder para um monge?
Aqui, um monge, pela destruição das corrupções, ele entra e habita naquela
incorruptível libertação do coração e libertação pela sabedoria que ele
realizou, nesta mesma vida, através de seu próprio super conhecimento e
realização. Isto é o poder para um monge’.
‘Monges, eu não considero nenhum
poder tão difícil de conquistar quanto o poder de Mara. É apenas através dessa
construção de estados saudáveis que este mérito aumenta’.
Assim falou o Mestre, e os monges se
alegraram e regozijaram com estas palavras.
Notas
(1) The Long
Discourses of the Buddha – A Translation of the Digha Nikaya. Maurice Walshe.
Boston, Wisdom, 1996. (tradução do sutta para o português: Arthur Shaker , 2012).
(2) No
sutta 27, 1.12-17, do Digha Nikaya, assim são descritos cada um dos tesouros,
que correspondem a poderes, a serviço do Rei: o Tesouro de Elefante, de um
branco puro, com uma força séptupla, uma tromba real, e com o poder de viajar
pelo ar; o Tesouro de Cavalo, com o poder de viajar pelo ar; o Tesouro de Jóia,
de brilho imenso; o Tesouro de Mulher, de grande beleza, fala prazerosa,
fidelíssima, sempre pronta a lhe dar-lhe prazer; o Tesouro de Chefe de família,
com seu olho divino capaz de encontrar tesouros escondidos; e o Tesouro de
Conselheiro, sábio, experiente e competente para orientar o Rei sobre os
corretos procedimentos a seres tomados, evitados e divisados.
(3)
Sobre esse tema do Monarca Universal, Chakravartin, o que se situa no Centro do
Mundo e “faz girar a roda”, veja também René Guénon – O Rei do Mundo. Lisboa: Ed. Minerva, 1978.
(4)
Trata-se dos atuais cinco preceitos para os leigos (pañcasila), acrescido do preceito da moderação no comer.
(5)
Seguir “as próprias idéias” significa optar pela ignorância, pela visão
incorreta (miccha ditthi), em
detrimento da visão correta do Dhamma, e marca o início do processo de
degeneração da relação humana para com o Dhamma.
O processo
de degeneração e decadência pode ser compreendido em vários níveis. A
começar pelo corpo, é bastante evidente que os corpos dos seres tendem à
degradação, culminando com a morte. Ampliando esta mesma determinação, os
ciclos de humanidade, bem como do Cosmo, seguem a mesma lei. Isto não significa
que os seres estejam necessariamente fadados à degradação mental, pois isto
depende da lei do kamma. Caberia aos seres sencientes despertar para a compreensão
da natureza de dukhha desses ciclos de nascer e morrer, e pela prática do Nobre
Óctuplo Caminho, alcançar o Nibbana.
A
visão cíclica e descendente do ciclo humano e cósmico aparece formulada, de
modo mais detalhado, na tradição hindu, nas Leis de Manu, que divide o ciclo em
quatro fases ou yugas: Satya yuga, a idade da Verdade, Treta yuga, Dwâpara
yuga, e por último Kali yuga, a Idade Sombria, aquela em que estamos desde há
mais de seis mil anos, agora em sua última etapa. Os budistas tibetanos ainda
distinguem uma quinta fase cíclica no Kali yuga, “a Idade em que a corrupção
vai de mal a pior” (Tsong-Khapa, fundador da ordem de Dalai Lama e de acordo
com o testemunho de Marco Pallis, cf. referência em René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, nota 1, p.28.
Lisboa, Véga, 1977). Enquanto a Justiça e a Verdade reinam no Satya Yuga, já
nas fases subsequentes o avanço da des-espiritualização acelera-se, na medida
em que a duração temporal de cada fase diminui na proporção de 4:3:2:1. A
despeito do avanço tecnológico, o ciclo caminha para baixo. A referência baixo tem múltiplas significações:
materialização, maior dificuldade de acesso mental às verdades transcendentes,
racionalismo, desenfreamento do ignorante querer apossar das coisas, destruição
da Natureza, exteriorização, corrupção, entre outras.
Se a
tendência cósmica e humana é descendente e materializante, por outro lado, a
função de uma Tradição espiritual é a de oferecer os suportes de apoio para a
tendência oposta, a saída do samsara, a realização espiritual. Mas não são
tendências sucessivas, mas simultâneas, embora haja períodos de crise e
ruptura, com o desaparecimento de certas tradições, a emergência de novas
tradições revivificantes - (e nesta visão global se situaria a emergência de
tradições como o Cristianismo, o Buddhismo e outras) - e readaptações em
outras. Nisto residiria as concepções teístas sobre as chamadas “descidas
divinas”, os Avataras, que na tradição hindu são as sucessivas encarnações de
Vishnu, a face da conservação divina. No livro do Bhagavad-Gita, assim se
refere Krishna, considerado a oitava encarnação de Vishnu: “Sempre que o dharma [a Lei, Verdade, a
retitude, entre outras acepções] declina,
ó filho da dinastia dos Bharata, e há um aumento do adharma (vício,
destruição da verdade), então Eu me
manifesto” (sloka 7, cap. 4). Segundo os hindus, a próxima encarnação de
Vishnu será como Kalki-Avatara, que
desta vez virá para encerrar com fogo este ciclo da Humanidade, e o fim de um
ciclo significa o início de um novo ciclo. Esta noção do fecho deste ciclo em
fogo também aparece no Velho Testamento: “Porque, eis que o Senhor virá em
fogo; e os seus carros como um torvelinho; para tornar a sua ira em furor e a
sua repreensão em chamas de fogo” (Isaías, 66, 15).
Não
vamos, entretanto, encontrar no Budismo esta noção do Avatar, bem como também
nos sermões o Buddha não se refere a esta visão de um apocalipse em fogo. Mas,
guardadas as diferenças entre as concepções teístas e o Budismo não-teísta, há
uma afinidade nesta concepção das “presenças”, que no Budismo significa os
sucessivos Buddhas nos diferentes ciclos da humanidade, e também sobre o
processo de decadência progressiva dos ciclos da humanidade. O Cosmos se marca
por processos cíclicos de expansão e contração, e não por uma tendência linear
progressiva, como parece propor o evolucionismo darwiniano.
(6)
Segundo o Velho Testamento, Adão viveu 930 anos, Seth 912 anos, Matusalém 969,
Noé 950 anos, Abrahão 175 anos, José 110 anos, Moisés 120 anos. Também neste
sutta, Buddha relata a longevidade “daqueles tempos”, longevidade que vai
diminuindo à medida que a decadência avança. Mas a referencia temporal “anos”
não pode ser pensada com a mesma medida atual, pois o tempo no processo cósmico
não é homogêneo.
(7) O
Digha Commentary se refere a isso como “práticas sexuais incorretas”.
(8) ”E
o irmão entregará à morte o irmão, e o pai o filho; e levantar-se-ão os filhos
contra os pais, e os farão morrer” (Marcos, 13, 12). “E, por se multiplicar a
iniqüidade, o amor de muitos esfriará. Mas aquele que perseverar até ao fim
será salvo” (Mateus, 24, 12-13).
(9) A
escolha pela vida reclusa marca uma espécie de “ponto de regeneração”, cujo
arquétipo é o da Ariya Sangha, a Comunidade dos bhikkhus, e mais enfaticamente,
os monges de vida e prática nas florestas. Mas, mesmo neste âmbito, o
enfraquecimento e perda tende a ocorrer. Assim, quando Kassapa pergunta ao
Buddha por qual razão antes havia poucas regras, mas muitos monges
estabelecidos no conhecimento do arahato, enquanto agora havia mais regras, mas
poucos monges estabelecidos no conhecimento do arahato, o Buddha explica:
“Assim acontece, Kassapa, quando os
seres degradam e o verdadeiro Dhamma desaparece: então há mais regras e poucos
arahants. Mas não haverá o desaparecimento do verdadeiro Dhamma até que o falso
Dhamma surja no mundo. Mas quando o falso Dhamma surge no mundo, então o
verdadeiro Dhamma desaparece.
Mas, Kassapa, não é o colapso dos
quatro elementos – terra, água, fogo e ar - que faz o verdadeiro Dhamma
desaparecer. Nem é a razão do desaparecimento similar à sobrecarga que faz o
navio afundar. É a presença de atitudes daninhas que causa o obscurecimento e o
desaparecimento do verdadeiro Dhamma.
São estas as cinco atitudes: a falta
de respeito e consideração para com o Buddha, o Dhamma e a Sangha, para com
treinamento e a concentração meditativa, pela parte dos monges e monjas, e dos
devotos leigos homens e mulheres. Mas, enquanto houver respeito e consideração
para com essas cinco coisas, o verdadeiro Dhamma permanecerá livre de
obscurecimento e não desaparecerá” (SN 16:13).
Buddha
também se refere, no Samyutta Nikay, ao processo que leva ao desaparecimento
dos seus ensinamentos:
“Outrora, ó monges, os Dasaraharas
possuíam um tambor chamado o Convocador. Como começava a rachar, os Dasaraharas
nele cravavam sempre novas cavilhas: chegou o momento em que o tambor original
do Convocador tinha desaparecido: só restava uma armadura de cavilhas. É assim,
ó monges, que sucederá aos monges no futuro. Estes discursos pronunciados pelo
Descobridor da Verdade, profundos, profundos de significação, falando de um
outro mundo, tratando do vácuo: eles não escutarão mais tais como são pronunciados,
não prestarão atenção, não voltarão seus pensamentos para o profundo sar, e não
sustentarão que esses são ensinamentos dignos de ser estudados e possuídos.
Mas os discursos, ó monges, que são
feitos pelos poetas, que pertencem à poesia, que são uma pluralidade de
palavras de expressões, que são estranhos (isto é, exteriores ao ensinamento do
Buda), que são as palavras de discípulos: eis o que eles ouvirão tais como são
pronunciados e sustentarão que esses são ensinamentos dignos de ser estudados e
possuídos. É por esta razão que os discursos pronunciados pelo Descobridor da
Verdade, profundos, de significação, falando de um outro mundo, tratando da
vacuidade, acabarão por desaparecer”.
(SN II, 266-67, trad. Ananda K. Coomaraswamy,
p.65. O Pensamento Vivo de Buda. SP:
Martins, 1967)
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O Budismo, o Cristianismo e a Reencarnação
O Budismo, o Cristianismo e a Reencarnação
Arthur Shaker
Pergunta
- Poderíamos dizer que a linha divisória entre o Cristianismo e o
Budismo é que o Cristianismo descartou da verdade da reencarnação?
Resposta
- Não. A hipótese reencarnacionista apresenta uma série de
equívocos que necessitam ser esclarecidos e refutados. Sobre isso,
há bons textos de autores tradicionais (1). Não é que o
Cristianismo teria descartado a verdade da reencarnação, pois nunca houve esta ideia ou suposição, nem mesma base para esta interpretação no Cristianismo, e sim que houve no Ocidente uma apropriação confusa sobre o que supõe-se que estaria
nas Tradições orientais como “a verdade da reencarnação”.
Vejamos seus supostos.
O reencarnacionismo baseia-se na suposição
de que o indivíduo é uma realidade permanente que passa por
diferentes corpos, à semelhança de alguém que se mantendo o mesmo,
muda de casa em casa até chegar à perfeição divina. O indivíduo
continuaria sendo o mesmo indivíduo na outra encarnação, apenas
mudando de rosto e contexto. Esta ideia de que a individualidade é
uma coisa fixa, que iria buscando novas roupagens em seu caminho de
aperfeiçoamento está fortemente influenciada de uma interpretação criada na Europa do séc. XIX, por sua vez influenciada por outra
suposição também aí criada, a do Evolucionismo (2).
O evolucionismo pressupõe que “a vida”
teria brotado das formas mais simples, e por um processo que se
denominou de “seleção natural”, estas formas vieram se
metamorfoseando em formas mais complexas. A ameba evolui para uma
planta, daí para um animal, que evolui até o homem, que iria
evoluindo até encontrar a Deus. Influenciado por ideias darwinistas
e positivistas do progresso, sob uma visão linear do tempo, criou-se
este suposto da reencarnação. Parece bastante cômodo, esperançoso
e pode até justificar o caos atual como uma “etapa do progresso”.
No corpo doutrinal das Tradições, não
vamos encontrar nenhum fundamento para esta ideia de “um mesmo”
que evolui. Esta visão de um sujeito, que é o mesmo, mudando de
corpo em corpo, é totalmente oposta aos ensinamentos orientais. Para
o Hinduismo e o Budismo, que são as Tradições orientais que o
reencarnacionismo toma como supostas fontes, as individualidades são
agregados impermanentes de corpo, sensações, percepções,
pensamentos e consciência, que o Budismo chama de khandhas.
Sendo impermanentes, o que é que poderia passar de uma reencarnação
para a outra?
As doutrinas tradicionais referem-se aos
ciclos de renascimento, segundo diversos reinos existenciais ou
samsara.
O Budismo divide a existência segundo três mundos: celestial (dos
devas e asuras), nosso mundo (seres humanos e os outros reinos) e o
mundo infernal (os fantasmas atormentados ou pretas e os estados
infernais). No Cristianismo temos as nove hierarquias angélicas
(estados superiores do Ser), o mundo terrestre e os reinos infernais
(estados inferiores). Todos esses planos de existência, regidos pela
lei do dharma
e karma,
são condicionados, fenomênicos e impermanentes.
Se há um ressurgimento por esses estados
múltiplos, é preciso esclarecer desde início que não é a
individualidade que o faz. Sobre isso, há no Budismo um importante
diálogo, quando o rei Milinda pergunta ao mestre budista Nagarjuna
sobre a continuidade no pós-morte. Nagarjuna responde-lhe com o
exemplo da chama que passa de uma vela para outra. A chama que passa,
é a mesma ou é outra? A manga que nasce da árvore plantada da
semente de uma manga, é a mesma ou é outra? Não podemos dizer que
a chama (ou a árvore ou a manga que da árvore nasce) seja diferente
nem a mesma. Há continuidade (da chama), mas sem identidade.
Continuidade
sem identidade. Devido à
complexidade desta compreensão, muitos monges evitam comentar este
tema com leigos recém-ingressos. Este é um tema de profunda
meditação metafísica, que foi vulgarizado a título de
reencarnação, que seria uma simplificação grosseira da visão
metafísica sobre o renascimento e que serviria de simulacro de
entendimento para mentes preguiçosas. Já nos referimos como a
distorção de temas de elevado teor metafísico tradicional serviram
para a construção de correntes que se pretendem “popularizar” o conhecimento das Tradições.
Continuidade sem identidade. Muito vezes o
reencarnacionismo pretende se apoiar na concepção hindu de Atma
como o Si, o Self, confundida com o agregado psíquico, o Ego que
reencarna. Incorre-se no erro de considerar o ego uma entidade
permanente. Haveria uma segunda questão, se seria possível a
repetição da mesma experiência corporal, ainda que não fosse a
mesma entidade da individualidade egóica que reaparecesse no mundo
terrestre. Este parece ser o ponto que marca certa divergência mesmo
entre autores tradicionais orientais hindus e budistas. Aqueles que
sustentam a impossibilidade do renascimento no mundo corporal, como é
o caso de autores como René Guénon, tomam por fundamento a lei da
passagem única do ser por um mesmo estado (3), segundo a Lei da
Possibilidade Universal, que não admite repetição. Quanto à
interpretação moderna de reaparecimento em outros planetas ou
“planos astrais”, são ideias e termos alheios às doutrinas
tradicionais de modo geral.
Um dos argumentos usados pelos
reencarnacionistas, agora provindo não das doutrinas orientais, mas
supostamente do Cristianismo, seria a passagem do Novo Testamento em
que Cristo refere-se à necessidade de “nascermos de novo”.
Quando Cristo fala que devemos entrar no reino do céu como crianças,
ou nus, ou como mendigos, está se referindo ao imperativo de
despirmo-nos de nossa individualidade, véu útil até certo ponto,
teia de aranha que emaranha a partir de certo ponto. Tendo nascidos
para o corpo, temos agora de re-nascer para o Espírito. Renascer no
sentido inicial de regeneração psíquica, compreensão profunda das
tendências psíquicas geradas pela ignorância e apego, e recondução
das forças psíquicas para o centro do estado humano - a condição
primordial do Paraíso terrestre, através do apoio da influência
espiritual (oferecido pela Graça do batismo, no caso do
Cristianismo), para desta condição central galgar os estados
superiores até a libertação final. Cristo fala em renascer e não
em re-encarnar. Renascimento é muito outra coisa do que a
interpretação reencarnacionista sobre esse ensinamento de Cristo.
Só pode ”entrar no Céu” o que é do
Céu (se quisermos aproximar esta noção, em sua última instância,
com a noção budista do Incondicionado). O corpo e o mundo psíquico,
sendo agregados condicionados, não podem entrar no Céu, nem podem
reencarnar. O que renasce (reaparece) no mundo samsárico são as
tendências psíquicas, os sankharas.
Mas estas tendências psíquicas não têm individualidade. Do ponto
de vista da consciência, a hipótese reencarnacionista fortalece e
revela o apego de nosso ego que quer se perpetuar. Com a
desintegração do corpo, o agregado psíquico também se
desagregará, assim não existirá mais um ego. As tendencias
kármicas impulsionam o renascimento com novos agregados (corpo,
sensação, percepção, formações mentais e consciência).
Outro argumento de “prova do
reencarnacionismo” seria o reconhecimento que às vezes é feito
sobre lugares familiares. Aqui mais uma vez coloca-se a questão
científica de como um fato pode ser considerado prova de uma
construção teórica. O tão propalado “caráter científico” de
uma teoria pode ser apenas um modo equivocado de ligar fatos e
fenômenos a interpretações.
Certas doutrinas tradicionais ensinam que
quando um indivíduo morre, com a desagregação de seu psiquismo,
muitos resíduos psíquicos (ob,
na terminologia da tradição judaica) podem passar para outra
pessoa, o que explica o fenômeno do reconhecimento sem a necessária decorrência
da hipótese da reencarnação. O mesmo processo pode ocorrer em
membros da mesma família, que ao nascer recebem estes resíduos do
parente falecido, ou mesmo de hereditariedade de traços psíquicos
familiares. O mesmo processo de transferência se dá nos casos de
“sugestão”. E são exatamente esses mesmos resíduos psíquicos,
que os ritos tradicionais funerários procuram dissolver, é que são
atraídos pelos chamados “mediuns”, acreditando ser a
“comunicação com os mortos”, o que evidencia o quão ingênuas
e equivocadas são estas práticas decorrentes de uma visão
incorreta, à qual se soma os terríveis perigos a que estão
submetidos ao atraírem essas forças errantes, servindo muitas vezes
inconscientemente ao jogo de tendências tenebrosas, disfarçadas de
“espirituais”.
Encontramos alguns comentários de que no Budismo Tibetano os
Lamas se referem a si mesmos muitas vezes como encarnações de
outros Lamas. Talvez os tibetanos não tenham clareza sobre as
consequências do uso deste termo no Ocidente, aumentando com isso a
confusão e criando uma pseudo-identidade entre o Budismo Tibetano e as organizações reencarnacionistas ocidentais. Talvez melhor
entender que o que existiria seria uma influência espiritual que
perpassa estes Lamas. Esta influência espiritual, como a chama da
vela, se repõe no mundo como Compaixão, sem que possamos dizer que
um Dalai Lama seja reencarnação, enquanto individualidade, do Dalai
Lama anterior. É o Dharma que se repõe para benefício dos seres.
Como individualidades não há substância que se repita. O mesmo
poderíamos dizer de Siddharta Gautama. A individualidade de
Shakyamuni não é o tema de veneração dos budistas, mas sim o
Dhamma (Dharma), que o Buddha Shakyamuni vai novamente realizar, é
para este Dhamma, a Verdade, que os budistas prestam homenagens.
Quando estávamos no mosteiro de Suan Mokkh, na Tailândia, por
ocasião do Vesak, data que o Budismo Theravada comemora a Iluminação
de Buddha, ouvimos Buddhadasa Bikkhu, que era o preceptor espiritual
deste mosteiro, dizer em seu sermão a todos, monges e leigos
tailandeses e ocidentais, de modo bem claro e ao estilo Zen: “Todo
ano vocês vêm aqui pedir-me bênçãos. O que vocês fazem com
tanta benção? Penduram no cabide e guardam no armário? Vocês
devem buscar o Dhamma, o Buddha-Dhamma que está dentro de vocês”.
O reencarnacionismo, conscientemente ou
não, se alimenta e realimenta a ideologia do “progresso” e da
“tendência de aperfeiçoamento da Natureza”. Esta hipótese da
tendência linear ascendente de “progresso” e “aperfeiçoamento”
é oposta à visão das grandes religiões, que ensinam sobre o
caráter cíclico do tempo e da manifestação, e a tendência
descendente, ”materializante” e descendente do Cosmos. Se o Mundo
caminhasse “naturalmente” para o alto, os Buddhas não
precisarias surgir no mundo e ensinar o Dhamma, ou Cristo não
precisaria ter vindo nem teria sido crucificado. Esta hipótese
“progressista” termina também por justificar socialmente a
agressão aos povos rotulados pelo mundo moderno como “primitivos,
atrasados, tradicionais”. Assim como a civilização moderna, por
seus esforços, teria evoluído até alcançar este degrau invejável,
que impõe por sedução e força a todos os povos, cada homem
poderia “evoluir” até chegar a Deus.
Dentre as correntes reencarnacionistas, há
até aquelas que consideram que mesmo Deus evolui. Fantástica esta
ideia, pois se Deus evoluísse não seria Deus, pois existiria algo
melhor que Ele a ser atingido e assim indefinidamente. O Princípio
Supremo que não é Supremo, sempre a lhe faltar algo! Há até
aquelas que afirmam estarmos na “metade do tempo da eternidade”
(sic); que nós teríamos chegado até esta metade da eternidade, a
outra metade da eternidade seria para que o próprio Deus se
completasse! O Princípio Supremo que evolui, a metade do tempo da
eternidade, é fantástica a total ignorância sobre princípios
básicos da Metafísica!
Crer que o caminho espiritual é uma
espécie de progresso, que pouco a pouco se vai chegando “perto de
Deus“, ou da Iluminação libertadora, é incorrer no mesmo erro de
colocar na mesma linha o mundo e a Transcendência, o tempo (ou outro
modo de duração) e a Eternidade. Do ponto de vista de uma
progressão matemática, nunca se chegará, pois sempre haverá uma
lacuna, uma descontinuidade entre o imperfeito e o Perfeito. Pois não
há medida entre a Manifestação e o Absoluto. Nunca se passará da
imperfeição para a Perfeição por um processo progressivo, só
através da iluminação, instantânea, um salto. Usando o simbolismo
matemático, a operação não seria a diferencial, que fosse
diminuindo as distâncias, mas a integral (4), o salto, o súbito, o
repente.
Pouco a pouco não se passa linearmente do
plano condicionado ao Absoluto, pois entre o Absoluto e o relativo
não há nenhuma medida ou passagem de continuidade. O equívoco da
visão “progressiva” é querer projetar sobre o Incondicionado os
parâmetros de espaço, tempo, e, portanto, distância, que definem o
condicionado e, rebaixando o Absoluto à imagem de um ponto na mesma
linha de nosso mundo, crer que a distância irá quantitativamente
diminuindo até chegarmos lá. Erro de matemática elementar, e
mostra o quanto o ensino da matemática perdeu as bases metafísicas
do que constitui a matemática tradicional.
O mesmo equívoco se aplica à ideia de
que, de reencarnação em reencarnação, aperfeiçoando-se pouco a
pouco se chega ao Deus. Pouco a pouco sempre faltará um pouco.
Quando no Budismo, assim como em outras Tradições, se diz que
devemos avançar “pouco a pouco”, é no sentido de incentivar no
praticante a paciência diante dos incontáveis obstáculos, e porque
a integração dos ensinamentos e dos estados de absorção
realizados (jhanas)
demanda uma operação assimilativa e não no sentido de que estados
do ser estejam em uma linha evolutiva (que estaria, portanto,
subordinada às condições de espaço e tempo) a ser percorrida pela
individualidade. Por isso se fala em iluminação, porque é
instantânea. É um raio, uma integração, não um "progresso".
A realização espiritual pode se dar a
partir de qualquer estado. Mas porque esperar ou projetar para um
futuro, desconhecido e de novos sofrimentos, a realização que pode ser aqui e agora? Não é inclusive mais econômico? Hoje em dia se
faz o culto do “homem econômico”, “da produção”, mas
quando se trata de realização espiritual não aplicam o senso de
economia, mas a querem em longas prestações, como um carnê que por
incontáveis ciclos se vai comprando com boas ações. Não seria
melhor a Felicidade já, como quem compra à vista, não tendo mais
dívida, nem com o quê se preocupar? Pois quem garante que o novo
renascimento não será em um estado pior que este humano?
É claro que existe um desenvolvimento
interior, obtido segundo as orientações próprias de cada Tradição.
No caso do Budismo consiste na observação e abandono dos apegos e
visões errôneas com que identificamos os cinco agregados do corpo,
sensação, percepção, formações mentais e consciência como “Isto sou eu,
isto é meu, isto é meu eu”. A superação destas delusões, que
estão enraizadas na ignorância, se dá através da prática do
Nobre Óctuplo Caminho: visão correta, pensamento correto, fala
correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto,
plena atenção correta e concentração correta. Estando no
Caminho, e não há caminho fora de uma Tradição, nunca se sabe em
que momento vai se dar o salto, por isso o melhor é trabalhar firme.
Diz um sutra budista: “Louvemos aquele que vive verdadeiramente
(empenha-se sem preguiça por todo o dia e a noite), mesmo que por
uma única noite”. Trabalhemos sem cessar contra a ignorância
sobre o que é nossa verdadeira natureza. O sábio hindu Ramana
Maharshi fazia do centro de sua prática a ininterrupta pergunta
básica: “Ko’ ham,
Quem sou eu?”
A substituição desta indagação central
por uma crença no “progresso espiritual” do “eu” é apenas
mais um truque do Ego, que ameaçado de ser desmascarado e perder o
trono da ilusão, finge aceitar a sua pequenez, o “pequeno Eu, o Eu
inferior”, e despindo-se da roupa pomposa, veste os humildes trajes
do asceta e prossegue alimentando o seu orgulho agora sob a bandeira
do “progresso espiritual” rumo ao “Eu superior”. Essa
engenhosa manobra foi bem analisada no livro “Materialismo
Espiritual”, do mestre tibetano Chogyam Trungpa. O uso de drogas, a
título de propiciar “o acesso às luzes espirituais”, refere-se
a este mesmo tipo de ilusão do Ego “evoluindo espiritualmente”
por estados alterados de consciência. A baixa qualidade intelectiva
no discernimento do que seja uma doutrina e prática tradicional é
um dado característico dos pseudo-caminhos, e por isso são de fácil
ingresso. Quando um cego conduz outro cego, os dois caem no buraco.
Não se trata de negar a ideia de Caminho,
nem que ele possa ser mais ou menos árduo ou longo conforme as
qualidades e empenho de cada um. A crítica é para esta idéia da
individualidade que permanece e vai crescendo e se espiritualizando.
Todos os agregados, incluindo a consciência, estão a todo segundo
nascendo e morrendo. A cada instante a consciência nasce, quando do
contato com os objetos mentais ou corporais, a cada instante a
consciência morre.
Nas palavras de um monge budista:
“A reencarnação é a ideia da
existência de um espírito separado do corpo; com a morte do corpo
esse mesmo espírito reassume uma outra forma material e segue
evoluindo. O renascimento na concepção budista não é a
transmigração de um espírito, de uma identidade substancial, mas a
continuidade de um processo, um fluxo do devir, no qual vidas
sucessivas estão conectadas umas às outras através de causas e
condições. Esse processo ou fluxo não ocorre apenas com a morte,
mas está presente constantemente nas nossas vidas. Nós estamos em
constante mudança; cada momento nas nossas vidas surge na
dependência do momento anterior, que deixou de existir. É como a
correnteza de um rio, fluindo em mudança contínua, sem cessar. Não
é possível entrar no mesmo rio duas vezes.
Para o Budismo, com a morte, a
consciência, com todas as suas tendências, preferências,
habilidades e características que foram desenvolvidas e
condicionadas nesta vida, se re-estabelece no embrião. Dessa
maneira, o ser cresce, nasce e desenvolve uma personalidade
condicionada pelas características que foram trazidas da vida
passada e pelo novo ambiente, além de outros fatores condicionantes
como a hereditariedade, etc. Essa personalidade está sujeita a
mudança e será modificada através do esforço consciente por
fatores condicionantes tais como a educação, a influência dos pais
e da sociedade, etc. Outra vez, com a morte, essa consciência irá
se re-estabelecer num novo embrião. Esse processo de renascimento
irá continuar até que as condições que o causarem persistam.
Quando essas condições deixarem de existir, ao invés de renascer,
a consciência alcançará um estado que é chamado nirvana, e esse é
o objetivo último no Budismo. (...)
Imagine as ondas de rádio. As ondas
de rádio não são compostas de palavras ou notas musicais, mas de
energia em distintas freqüências que são transmitidas através do
espaço, e atraídas e capturadas por um receptor no qual se
manifestam como palavras e música. Algo similar ocorre com a
consciência. Ao morrer, a energia mental cruza o espaço e se une ao
esperma e o óvulo para formar o novo ser. O embrião e a consciência
se desenvolvem através de uma relação de mútua dependência e
influência.
Todas
nossas ações passadas de corpo, fala e pensamento, todos os
sentimentos, percepções, formações mentais, etc., que
experienciamos, deixaram suas impressões em nosso subconsciente
continuum de vida. (...) Se na hora da morte, a pessoa ainda estiver
envolvida com o processo da produção kármica de cobiça, apego e
vir-a-ser, então essa força de apego (o sankhara)
irá se manifestar em outra existência, em outro corpo com os órgãos
do sentido. No momento da morte, a mente normalmente está atraída
ao plano de existência o qual é de acordo com a personalidade
expressa nos hábitos e tendências acumuladas (RAHULA, Bhante
Yogavacara. Karma e Renascimento. Cap. III,
em The Way to Peace and Hapiness, p.
82-83, Sri Lanka, Buddhist Cultural
Centre, 1997, (Trad. Teresa A. Kerr). Disponível em:
http://www.casadedharmaorg.org).
O surgir e desaparecer rápido da
consciência é apenas um dos aspectos do contínuo fluxo de mudança
que caracteriza todo o cosmos. Para o Budismo este é o ponto central
de constante meditação, e cuja evidencia nos abre o acesso à
superação do nascer e morrer. Não se trata de hipóteses, mas de
uma ciência experienciável por qualquer um. Em nossos dias,
tende-se a aceitar ideias muitas vezes grosseiras, desde que venham
com o rótulo de “científico”, sem que se avalie exatamente o
que se quer dizer com uma “verdade cientifica”. Predomina em
nossa época “a crença na ciência - o cientificismo”.
Na esteira do evolucionismo vieram a
esperança nos discos voadores, nos seres extraterrestres, nas
galáxias dos super-desenvolvidos. Em tudo isto, a ideologia do
desenvolvimento, o inchaço do ego, da ambição a qualquer custo, da
espiritualidade independente. “Bem-aventurados os pobres de
espírito”, dizia Cristo. A “pobreza” está no compreender a
insubstancialidade do ego, anatta,
não-eu, e não se apegar na ilusão de que é esta entidade egóica
com que nos identificamos como sendo “eu, meu” vai se realizar
espiritualmente. Ademais, como a morte cobre com o véu do segredo o
que realmente será a vida futura, seja que o prosseguimento se dê
com o reaparecimento das tendências psíquicas neste plano ou em
outros estados existenciais, seria mais prudente retermos a verdade
central, a de que se há algum crescimento espiritual que leve à
realização espiritual, ele está em buscarmos superar a visão
incorreta de que os agregados do corpo, sensação, percepção,
formações mentais e consciência são “meu eu”. Purificando a
mente dos apegos e visões incorretas, através do cultivo das
virtudes (fala correta, ação correta, modo de vida correto), da
concentração (esforço correto, plena atenção correta e
concentração correta) e sabedoria (visão correta, pensamento
correto), se alcança o estado do arahant, a realização de Nibbana,
o Incondicionado, único refúgio seguro, o Imortal, aqui e agora.
Notas
(l) Sobre isso, ver:
Buddhadasa Bhikkhu - Anatta
e Renascimento.
São Paulo: Casa de Dharma, l993 (para efeito de estudos).
Frei Boaventura Kloppenburg - Espiritismo
- Orientação para os católicos.
São Paulo: Ed. Loyola, l986.
René Guénon - L’Erreur
Spirite.
Paris: Ed. Traditionelles,
l952
Ricardo Sasaki - O
outro lado do Espiritualismo moderno - Para compreender a Nova Era.
Petrópolis: Vozes, 1995.
(2) Sobre isso, ver:
Arthur Shaker F. Eid - A
questão do Evolucionismo. Considerações, em A
Travessia da Vida e da Morte –
Introdução a uma Antropologia
Espiritual. RJ: Gryphus, 2003.
(3) Sobre isso, ver:
René Guénon - Les
Etats Multiples de l’Etre.
Paris: Vega, 1980.
(4) Sobre isso, ver:
René Guénon - Caractere
synthétique de L’ Integration,
cap. XXII, in Les Principes du Calcul Infinitesimal. Paris:
Gallimard, 1946. (Excelente obra sobre os conceitos básicos da
Matemática tradicional e os equívocos feitos pela Matemática
moderna sobre os mesmos).
*******
a Modernidade
aos olhos da tradição hindu, budista e taoísta (1)
aos olhos da tradição hindu, budista e taoísta (1)
Arthur Shaker
A manhã se abriu ensolarada. Ontem,
chovera quase sem descanso, aquela chuva miúda e fria, cobrindo o espaço de cá
embaixo das nuvens de um tom melancólico e úmido. A modernidade tem sido
mostrada e vivida como algo semelhante. A Idade Média teria sido a Idade das
trevas, dominada pela ignorância e opressão de um sistema feudal apoiado pelo
obscurantismo de um Cristianismo imposto pela força de uma fé avessa à razão e
à liberdade.
A partir do séc. XIV d.C. o mundo
europeu desencadearia uma série de movimentos de transformação em todas as
áreas da existência, mudanças de tal amplitude que em pouco tempo o mundo
medieval europeu ficaria como que algo de um passado longínquo e esquecido. O
que se designa por modernidade configura um estado de espírito psicocultural
que aos poucos se imporia como visão dominante. Na economia, os grandes
descobrimentos abririam canais para uma intensa circulação de produtos que
propiciariam a vitalização do comércio e a emergência de uma classe burguesa
mercantil que forçaria os muros do mundo restrito feudal, colocando à mercê da
industrialização grandes contingentes de servos desapropriados de seus meios de
produção e agora uma massa de proletários com apenas sua força de trabalho para
vender às portas das indústrias capitalistas.
Na política, a emergência do
Estado-nação, forjado na inspiração de Maquiavel, com sua noção do Príncipe
articulador de talento e condições históricas, inaugurando uma visão secular da
orientação política. No domínio da cultura, o domínio progressivo da razão
contra a fé religiosa cristã, o abandono da religião como visão totalizante, a
emergência de uma visão de Ciência, aberta ao experimentalismo, à pesquisa, à
dúvida, tendo a noção de indivíduo como instância real do homem cujos desejos
encontravam oportunidade e direito de se desvencilharem das rédeas dos
parâmetros cristãos limitantes. Classes burguesas e individualismo marcarão a
ascensão do romance prosaico em que os personagens são agora indivíduos, em
detrimento do epopéico e da literatura referencial e arquetípica.
Ser original, inovador, novo, são as
ênfases do moderno, banindo o tradicional como repetitivo, reiterativo e
não-criativo. A Modernidade será defendida como uma aspiração à revolução
permanente, o legítimo desejo de constante modificação e inovação. Uma teoria
do Progresso surgiria nas especulações de Darwin, Spencer e Comte, buscando um
sentido na Natureza e na História humana, que fosse uma alternativa para a
concepção cosmogônica cristã de um Deus criador. As especulações de Darwin
sobre as espécies iriam fornecer as referencias para a formulação de uma visão
de Evolução, que através da diferenciação e seleção natural das mutações mais
adaptativas encadearia o processo evolutivo dos seres, do simples ao complexo,
do homogêneo ao heterogêneo. Como as ondas coloniais se deparariam com povos de
múltiplas formas de viver e pensar distintos dos europeus, os pensadores
ocidentais se esforçariam em articular suas noções de progresso e evolução de
modo a correlacionar as suas diretrizes econômicas, políticas e ideológicas com
os dados trazidos pela presença de povos com modos existenciais não só
distintos como opostos à sua concepção de vida.
Das concepções do evolucionismo
sairiam muitas hipóteses de autores como Morgan, e sua proposição das etapas do
primitivo à civilização, que tanto influenciou Engels, em seu ensaio sobre a
origem da família, da propriedade privada e do Estado. A despeito das
diferenças de matizes, a visão da Modernidade aberta pelo mundo europeu
pós-século XIV como uma marcha ascendente de crescente expansão, liberdade e
abertura, se constituiria aos poucos como a teoria dominante. O fascínio pelos
artefatos tecnológicos que se superam a cada dia fortifica a visão de uma era
de expansão sem limites rumo às estrelas, aberta pela Modernidade. Mas essa
breve caracterização da Modernidade deve ser tomada apenas como linhas gerais
introdutórias, seria simplismo concluir que daria conta de toda complexidade
desse processo heterogêneo marcado por rupturas, contradições e impasses desde
seu desencadeamento até os dias atuais, já referidos como pós-modernidade em
sua etapa de globalização.
Deste vasto tema da Modernidade,
destacaremos apenas um de seus paradigmas-emblemáticos para exame: o de que a
modernidade significou o desencadear de uma libertação que tem na razão um de
seus suportes maiores. Vamos examinar esse paradigma e seus vários significados
segundo pontos de vista não-ocidentais modernos, aos olhos dos princípios das tradições milenares asiáticas: a tradição hindu, budista e taoísta. A compreensão do alto grau de
elaboração espiritual que marca o universo cognitivo das milenares trajetórias das tradições orientais exigiria uma explicitação mais ampla. Dado os limites deste
texto, teremos de nos restringir a uma síntese dos conceitos necessários.
Como ponto de partida, temos de compreender o
que significa o conceito de Tradição,
de crucial importância e bastante mal entendido, quando não objeto de
menosprezo pelo mundo moderno. A palavra Tradição, seu verdadeiro significado e
conteúdo, aos poucos se perdeu no Ocidente moderno, passando a ser associado ao
costume, o repetitivo e mecânico, o passado. Este conceito foi apropriado por
instituições de ideologia abertamente reacionárias, para designar realidades
que só na aparência parecem ter algo a ver com seu sentido verdadeiro. Também
tem sido usado para referir-se ao folclórico, cultivado como reminiscência de
um passado, ou o atrasado, o fora de época, ultrapassado pela História. O
Ocidente, auferindo uma noção valorativa de progresso e evolução a partir de
suas interpretação de um período de apenas cinco séculos de sua história,
rotulou o termo Tradição como caractere de povos sem escrita e sem domínio
tecnológico, como conjunto de crenças fetichistas e supersticiosas, sem base
científica, dos povos primitivos. O retrógrado, contra o progresso. Mas
vejamos.
Iniciando pela tradição hindu, de acordo com sua sabedoria, a
existência, o mundo, não podem ser compreendidos quando se perde a intelecção
do que possam ser seus princípios fundantes: podemos entender o que seja um
galho em si, se secionada de sua verdade inclusiva, a árvore? Não é preciso ter
ido à escola para percebermos que o nosso mundo se caracteriza por ser uma
realidade limitada. Queiramos aceitar ou não, a todo instante nossa percepção
nos relembra que, como seres humanos, somos limitados: doença, morte e finitude
andam juntos com o homem. Mas o limitado não tem razão suficiente em si. À semelhança
do exemplo do galho, se o percebemos como limitado em seu contorno fechado é
porque o tomamos como objeto supostamente destacado da árvore. Mas, ontològicamente,
o que é mais limitado só pode ter seu fundamento no que é menos limitado, o
galho tem na árvore seu princípio. Abrindo essa operação ontológica, a árvore
por sua vez só existe a partir do espaço em que se integra e se nutre.
Integralizando essa operação, que é simultaneamente reintegrativa e cognitiva,
chegamos ao Infinito Transcendente, que é simultaneamente o ponto de partida
necessário. Partida para a manifestação dos mundos relativos e limitados como o
nosso, e ao mesmo tempo chegada, quando se busca o retorno à Fonte.
Este é o esteio central de toda a
estrutura tradicional hindu, segundo seus livros sacros - dos quais os Vêda são considerados a autoridade
última - e suas autoridades tradicionais legítimas. Toda realidade fenomênica
emana da Realidade Última referida como Brahman.
Designação do gênero neutro na língua sânscrita, Brahman nominalmente provem da raiz verbal brih (ou brinh), “ser
denso, crescer forte, grande”. Como Absoluto, também é referido como Ananta, Infinito, como Pûrnam, Plenitude.
Brahman, como o Absoluto, é
o lugar da Possibilidade Universal, dos princípios universais originantes. O
termo “lugar” deve ser considerado como apenas um expediente limitado da
linguagem, necessário para oferecer para a mente humana um suporte mínimo de
representação de uma realidade que de fato nenhuma linguagem pode expressar,
dado o caráter intrinsecamente limitado da linguagem. O simbolismo espacial
expresso no termo “lugar” deve ser tomado apenas como um suporte aproximativo
da realidade apontada pelo símbolo, o que de antemão já coloca que o acesso
cognitivo a um universo metafísico, como o da tradição hindu, passa pela
compreensão de seu sistema simbólico.
Em torno do tema de Brahman como Absoluto e Realidade
Última, há na tradição hindu uma enorme quantidade de fontes e elaboração
doutrinal. De acordo com um de seus comentadores hindus, Brahman é “uma
essência sem dualidade (adwaita)”
(2). Desta colocação, baseada nos textos-comentários hindus, destaco a noção de
Absoluto como adwaita, palavra
formada pelo prefixo a (não) e dvi (dois): não-dualidade. Os hindus
consideram a noção de não-dualidade
como ontológicamente acima do conceito de unidade.
Para ser mais preciso, como
não-dualidade, adwaita aponta para a
noção supra-ontológica de Brahman como Supra-Ser (o que é bem outra coisa do
que a idéia comum de Super-Ser, como apenas aumentativo de ser). Do Supra-Ser
procede o Ser como Determinação primeira.
Se compararmos a concepção hindu de
Brahman como Supra-Ser, Realidade Última, com uma tradição vizinha à Índia, a
tradição taoísta da China, encontramos no Tao-Te-King de Lao-Tsé algo análogo,
referido como o Tao sem Nome: “o Tao, que pode ser expressado, não é o Tao
perpétuo. O nome, que pode ser nomeado, não é o nome perpétuo. Sem nome, é Princípio do Céu e da Terra, e com nome, a Mãe dos dez mil seres” (3). Sua
Transcendência aparece em seus atributos: Ch’ung
(oquidade), Yüan (abismo e
profundidade), Ku Shen (Espírito
abismal), Hsu (vazio). O Inominável,
porque como Realidade Suprema é nirguna,
palavra sanscrita que provém do prefixo negativo nis (não) e guna (qualificação):
não-qualificado, não-caracterizado.
Como lugar da Possibilidade
Universal, o Princípio Supremo contém em si todas as possibilidades, tanto as
de não-manifestação como as de manifestação. São estas últimas que são chamadas
a se manifestarem enquanto Cosmos ou o domínio dos mundos manifestos, portanto
relativos e condicionados, limitados. O termo hindu é tribhuvana, o domínio da existência condicionada de tríplice
instância, o corporal, determinado pelo sutil e este pelo informal. A tradição
hindu sustenta que toda a estrutura existencial, sinônimo de Cosmos, está
fundada em bases metafísicas, entendida aqui como os princípios universais
enraizados na Realidade Transcendente Última. Estes princípios articulam o
mundo humano e cósmico com o Transcendente, sustentam a vida e transmitem o
conhecimento que há milênios orienta o modo de viver hindu, entendido o viver
em sua complexidade de níveis, como a atividade cognitiva, as práticas rituais,
as formas de parentesco, de organização do espaço, do trabalho, e tudo o mais.
Esta Realidade Transcendente Última constitui a Fonte-Cabeceira e a Fonte-Foz
do rio existencial da tradição hindu. Toda a existência cósmica - em seus
múltiplos planos - é uma manifestação relativa de certas possibilidades
contidas no Absoluto.
Parte-se do Absoluto como raiz
metafísica última, princípio maior do qual decorre a existência cosmogonica. De
dentro da estrutura cosmogonica decorrem os múltiplos mundos, inclusive a
sociedade humana, desenrolando-se no tempo e no espaço. Este desenrolamento do
Cosmos, em seus múltiplos níveis de realidade dinâmica a partir de sua raiz o
Absoluto, se dá segundo um eixo paradigmático no qual também se constituem os
correspondentes e analógicos domínios do universo cognitivo hindu. Enquanto
categorias cognitivas, os princípios universais que suportam o complexíssimo
universo de trançados que liga cada aspecto do Cosmos com o Absoluto referem-se
ao domínio da Metafísica. Termo grego, a Metafísica tem seu equivalente nas
referencias cognitivas do Vedanta,
um dos seis pontos de vista com que se estudam os Vêda e que dizem respeito aos suportes intelectivos propiciadores
para a aproximação do conhecimento de Brahman
como absolutidade e finalidade última de toda a tradição hindu.
Do grego meta, “para além” e Fisis,
“Física”, a compreensão do termo Metafísica exige que entendamos o que os
gregos significavam com o termo Fisis.
Para os gregos, o termo Fisis, Física, tinha uma acepção bastante
diferente daquela que seria utilizada pelos pensadores modernos. Para os gregos
designava a Natureza como sinônimo de Cosmos, no sentido amplo do mundo
manifesto e relativo, que em certas linguagens teológicas tem seu aproximativo
na acepção de “mundo criado”, um modo ordenado e limitado de ser, extraído de
dentro da indiferenciação da substancia primordial. Em outro momento haveríamos
de analisar a diferença entre essa concepção grega ou hindu de Natureza ou
Fisis com aquela utilizada pela Antropologia em sua dicotomia
Natureza-Cultura , e as implicações desta diferença. Para os
gregos, a Física, designando “a ciência da Natureza sem nenhuma restrição, é
então a ciência que se relaciona com as leis mais gerais do ‘devir’, porque
‘Natureza’ e ‘devir’ são, no fundo, sinônimos e era assim que o entendiam os
gregos, nomeadamente Aristóteles; se existem ciências particulares referindo-se
à mesma ordem, são apenas ‘especificações’ da Física para este ou aquele
domínio estritamente determinado” (4).
A Metafísica refere-se ao
supracósmico, ao supranatural, ao domínio dos princípios que estão para além do
Cosmos, mas que ao mesmo tempo permitem e sustentam a existência do Cosmos. Em
nosso exemplo da árvore, os galhos, flores e frutos seria a imagem simbólica do
Cosmos, e a raiz o supracósmico fundante, oculto nas profundezas do invisível.
A Metafísica designa tanto as leis que ligam a Natureza (Fisis, o Cosmos ou
mundo criado), aos seus princípios transcendentes, como esses próprios
princípios universais, assim como conhecimento desses princípios que estão para
além da Natureza, da Fisis, como entendiam os gregos e outros povos orientais,
como a tradição hindu: “Para Aristóteles, a Física era apenas segunda em relação à Metafísica ,
quer dizer que ela estava dependente desta, no fundo era apenas uma aplicação
ao domínio da Natureza dos princípios superiores à Natureza e que se refletem
nas suas leis...” (5). A Metafísica é o fio de Ariadne que liga a Natureza aos
seus princípios supra-Natureza, o Transcendente. Poderíamos agora nos perguntar
no quê se corporifica, para os homens, a Metafísica como elo que liga e
clarifica os nexos entre a Fonte-Raiz Transcendente e os mundos manifestos e
relativos.
Em nosso exemplo da árvore, este
elo, o Tronco, é a Tradição, Áxis
Mundi, entendido como o corpo de princípios metafísicos que mantém os nexos de
ligação entre o Céu e a Terra, aqui designativos dos Princípios e da manifestação
existencial. Povos tradicionais designam, portanto, aqueles povos cuja
constituição se funda em uma Tradição enquanto um corpo articulado de
princípios metafísicos, cuja seiva os alimenta e através da qual as verdades
superiores são revivificadas para toda a comunidade e cada indivíduo, segundo o
modo próprio de cada tradição, fornecendo-lhes a base de seu modo de pensar e
organizar suas vidas, suas artes, ciências, arquitetura. Tradição e Metafísica
significam fundamento espiritual de existência, pois nunca é demais lembrar que
a vida para os povos tradicionais é sempre entendida e praticada como breve
presença neste efêmero plano de existência, porém segundo regras que garantam certo
equilíbrio possível no intercâmbio entre o domínio terrestre e o celeste,
equilíbrio sempre frágil e relativo a exigir reiteradas readaptações, em
virtude de certas tendências cósmicas apontadas pela tradição hindu, e que
retomaremos adiante.
Como Eixo do Mundo, a Tradição
traduz para seu povo as leis metafísicas que regerão os múltiplos aspectos da
vida deste povo, articulando a existência com o transcendente, de acordo com
essas leis, e oferecendo os suportes para o retorno ao original transcendente.
Tradição significa tradução (das
verdades metafísicas para a mente humana) e transmissão (destas verdades e ritos necessários para o acesso às
suas raízes transcendentes). O corpo doutrinal de uma Tradição como que
expressa a descida do Transcendente no Imanente, evitando que este se torne
opaco aos homens e ao mesmo tempo servindo de veículo de apoio para seu retorno
à sua origem celeste. O corpo de leis metafísicas que fundam e sustentam uma
tradição, como os Vêda, é dito ter
uma origem “não-humana”, apaurushêya (6).
A Fundação do Mundo se revelaria através do Mito, e o retorno às origens míticas se faria através dos Ritos que permeiam cada aspecto da vida
de um povo tradicional, garantindo o nexo de sentido entre sua dimensão cosmogônica
e sua raiz transcendente. Os ritos são orientados pelo corpo doutrinal
metafísico destas tradições, seja em sua forma oral, como nas recitações
míticas indígenas, ou em suas formas escritas, como nos textos sacros da
tradição hindu. O Rito re-atualiza o Mito e re-põe os homens no Centro do
Mundo, por onde se busca manter o contato com a Realidade fundadora de suas
vidas (7).
Para a tradição hindu, o Cosmos é a
manifestação de certas possibilidades contidas no Absoluto. Utilizando uma
linguagem platônica equivalente, o Cosmos é a manifestação, de modo distintivo,
de certas possibilidades contidas nos Arquétipos divinos. Se é dito que Brahman
é nirguna (não-qualificado), também é
dito que é, ao mesmo tempo, saguna
(qualificado), ou seja, Brahman é uma essência sem dualidade (adwaita), “mas não sem relações (vishistâdwaita). Não pode ser apreendido
senão que Essência (asti), mas esta
Essência subsiste em uma natureza dupla, como ser e devir” (8). Em sua natureza Inominada ,
como nirguna, Brahman vive no
silencioso repouso imutável, na anterioridade do Céu e da Terra. Por isso é
referido como Não-Ser, sinônimo de Supra-Ser, e é o princípio do Ser, como sua
Determinação primeira. Do mesmo modo dizem os taoístas: do Tao sem Nome, o
Absoluto, surge o Um, a Unidade Primordial, o Ser como princípio de todos os
seres: “os dez mil seres nascem do Ser e o Ser nasce do Não-Ser”.
Para que as possibilidades de
manifestação venham à existência, a Unidade primordial se polariza, surgindo o
Dois, os dois princípios fundamentais da existência, o pólo ativo e essencial,
designado na tradição hindu como Purusha,
e o pólo passivo e substancial, Prakriti.
Reencontramos concepção análoga entre os taoístas: “o Tao engendra o Uno, o Uno
engendra o Dois, o Dois engendra o Três, e o Três engendra os dez mil seres. Os
dez mil seres levam em suas costas o Yin (obscuridade) e em seus braços o Yang
(luz), e o vapor da oquidade permanece harmonioso” (9).
Purusha e Prakriti, Yang e Yin, são
os dois princípios polares opostos e complementares de cuja união em contínuo
movimento de unificação e separação brota a multiplicidade do mundo manifesto -
“os dez mil seres” - a Existência cósmica com sua hierarquia de estados do ser.
Estes dois princípios polares não existem como princípios puros dentro da
existência fenomênica, mas suportam toda a existência. A realização das
possibilidades de manifestação se dá através desse incessante processo de união
e ruptura polarizante destes dois princípios cosmogônicos, processo dialético
que é o fluxo do vir-a-ser, o devir movente em tempo-espaço. A cosmologia hindu
desdobra uma concepção do desenrolamento do Cosmos a partir das produções
advindas das modificações de Prakriti, a substancia universal, vista como Mâyâ, “a mãe das formas”, sob a
influência diretora do polo essencial da manifestação, Purusha. Este ângulo da
cosmologia hindu é desenvolvido pelo Samkhya-darshana,
que junto como o Nyâya, Vaishêshika,
Yoga, Mîmânsa e Vêdânta constituem os seis darshanas ou pontos-de-vista segundo os quais os Vêda podem ser estudados.
Segundo o Samkhya, Prakriti (a substancia universal), sob
a influência ordenadora de Purusha
(o pólo essencial), produz em sua modificação os outros 23 tattwas ou princípios cósmicos. Temos, portanto, os dois pólos
maiores, Purusha e Prakriti, e outras 23 categorias constitutivas do Cosmos. O
primeiro deles e o mais importante é Buddhi,
o Intelecto transcendente. É através deste Intelecto que o homem pode
participar das verdades metafísicas. Seria propriamente a intuição
contemplativa. De Buddhi provem ahankâra, a consciência individual que
engendra a noção de “eu”. De ahankâra provêm
a faculdade de sensação e ação, os indriyas,
que inclui manas, a faculdade mental
humana, ou o sentido interno, cujos atributos são a razão analítico-reflexiva,
o pensamento, o sentimento, a memória e a imaginação.
Um ciclo cósmico traz em si,
enquanto potencialidade, um conjunto de possibilidades de manifestação. O
desenrolamento do processo cósmico se dará segundo um desenvolvimento no espaço
e na sucessão (10). O processo cósmico será a atualização das possibilidades de
manifestação contidas em potência no estado embrionário do Cosmos, referido
como Brahmânda, “o Ovo do Mundo”.
Esse conjunto de possibilidades não se distribui embrionariamente de modo
homogêneo, mas segundo uma hierarquia em que as possibilidades superiores se
manifestam no início do ciclo cósmico, indo para as possibilidades inferiores
conforme o ciclo se desenvolve, até sua completação e estancamento. Significa
que a tradição afirma um sentido descendente e finito de todo ciclo cósmico, o
oposto da visão moderna do progresso ascendente e indefinido de evolução
humana, visão esta do evolucionismo darwiniano que não encontramos respaldo em
nenhuma doutrina tradicional (11).
Quando falamos em superior-inferior
ou ascendente-descendente, devemos nos perguntar em relação à quais sistemas de
referencias posicionamos os dados. Segundo os hindus, são superiores as
possibilidades que se manifestarão no início do ciclo cósmico porque são
aquelas mais próximas do pólo essencial, carregadas, portanto, de maior grau de
espiritualidade, e mais próximas da justiça e da verdade espiritual. A marcha
do ciclo cósmico e humano é a do obscurecimento progressivo da espiritualidade
original, e isto porque “o desenvolvimento de toda a manifestação implica
necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio do qual ela procede;
partindo do ponto mais alto, ela tende forçosamente para baixo, e, como os
corpos pesados, tende para esse sentido com uma velocidade sem cessar crescente,
até que encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia ser
caracterizada como uma materialização progressiva...” (12). Ao invés de
evolução ascendente, a tradição hindu afirma a tendência
descendente-materializante. E isto segundo uma visão cíclica do tempo, da
História e da humanidade, tendo um começo, desenvolvimento e encerramento, e
não retilíneo e indefinidamente progressivo ascendente, como supõe o
Evolucionismo. Tendo um começo, terá um fim, diz o Buddha. “Nos seres, à
robustez segue a velhice, que é falta do Tao. E sem Tao tudo se acaba. O homem
vivo é brando, o morto é duro e rígido. As plantas vivas são flexíveis e
tenras, as mortas são duras e secas. Daquele que possui muita Virtude se diz
que é como criança. Tem os ossos brandos e os músculos flexíveis...” (Tao-te-King, Lao-Tsé).
Quando a vida era plena, não existia a História
Na época em que a
vida na terra era plena, ninguém dava nenhuma atenção aos homens dignos, nem
selecionava os homens capazes. Os soberanos eram apenas os galhos mais altos
das árvores, e o povo era como cervos na floresta. Eram honestos e corretos,
sem imaginar que “estavam cumprindo com o seu dever”. Amavam-se mutuamente, e
não sabiam que isto se chamava “amor ao próximo”. Não enganavam a ninguém, e, no
entanto, não sabiam ser “homens de confiança”. Podia-se contar com eles, e
ignoravam que isto fosse a “boa fé”. Viviam juntos livremente, dando e
recebendo, e não sabiam que eram homens de bom coração. Por este motivo, seus
feitos não foram narrados. Não se constituíram em história (13).
A visão cíclica e descendente do
ciclo humano aparece formulada, na tradição hindu, nas Leis de Manu, que divide o ciclo em quatro fases ou yugas: Satya yuga, a idade da Verdade, Treta yuga, Dwâpara yuga, e por último Kali yuga, a Idade Sombria, aquela em que estamos desde há mais de
seis mil anos, agora em sua última etapa. Os budistas tibetanos ainda
distinguem uma quinta fase cíclica no Kali yuga, “a Idade em que a corrupção
vai de mal a pior” (14). Enquanto a Justiça e a Verdade reinam no Satya Yuga,
já nas fases subsequentes o avanço da desespiritualização acelera-se, na medida
em que a duração temporal de cada fase diminui na proporção de 4:3:2:1. A
despeito do avanço tecnológico, o ciclo caminha para baixo. A referência baixo tem múltiplas significações:
materialização, maior dificuldade de acesso mental às verdades transcendentes,
racionalismo, desenfreamento do ignorante querer apossar das coisas, destruição
da Natureza, exteriorização, corrupção, entre outras.
Se a tendência cósmica e humana é
descendente e materializante, por outro lado os hindus consideram que a função
da Tradição é o de oferecer os suportes de apoio para a tendência oposta, a de
retorno ao princípio, o que não significa tendências sucessivas, mas
simultâneas, embora haja períodos de crise e ruptura, com o desaparecimento de
certas tradições, a emergência de novas tradições revivificantes - (e nesta
visão global se situaria a emergência de tradições como o Cristianismo, o
Buddhismo e outras) - e readaptações em outras. Nisto residiriam as chamadas
“descidas divinas”, os Avataras, que
na tradição hindu são as sucessivas encarnações de Vishnu, a face da
conservação divina. No livro do Bhagavad-Gita, assim se refere Krishna,
considerado a oitava encarnação de Vishnu: “Sempre
que o dharma [a Lei, Verdade, a
retitude, entre outras acepções (15)]
declina, ó filho da dinastia dos Bharata, e há um aumento do adharma (vício, destruição da verdade),
então Eu me manifesto” (sloka 7, cap.
4). Segundo os hindus, a próxima encarnação de Vishnu será como Kalki-Avatara, que desta vez virá para
encerrar com fogo este ciclo da Humanidade, e o fim de um ciclo significa o
início de um novo ciclo.
O
caminho ensinado pelo Buddha tem semelhanças e diferenças com relação à
doutrina hindu. Seu ensinamento é conhecido como a
doutrina das Quatro Nobres Verdades, que devem ser compreendidas e colocadas em
prática.
A primeira Nobre Verdade (dukkham
ariya saccam): a existência é dukkha, sofrimento:
Agora,
bhikkhus, esta é a nobre verdade do sofrimento: nascimento é sofrimento,
envelhecimento é sofrimento, enfermidade é sofrimento, morte é sofrimento;
tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero são sofrimentos; a união com
aquilo que é desprazeroso é sofrimento; a separação daquilo que é prazeroso é
sofrimento; não obter o que se deseja é sofrimento; em resumo, os cinco
agregados influenciados pelo apego são sofrimento (...) Esta nobre verdade do
sofrimento deve ser completamente compreendida (DUKKHAM ARIYA SACCAM, 2009).
A Segunda Nobre Verdade (dukkha-samudayam
ariya-saccam): a causa do sofrimento:
Agora,
bhikkhus, esta é a nobre verdade da origem do sofrimento: é este desejo que
conduz a uma renovada existência, acompanhado pela cobiça e pelo prazer,
buscando o prazer aqui e ali; isto é, o desejo pelos prazeres sensuais, o
desejo por ser/existir, o desejo por não ser/existir”(...) “Esta nobre verdade
da origem do sofrimento deve ser abandonada (DUKKHA-SAMUDAYAM ARIYA-SACCAM,
2009).
A Terceira Nobre Verdade (dukkha-nirodham
ariya-saccam): extinguindo-se a causa do sofrimento, extingue-se o efeito,
sofrimento:
Agora,
bhikkhus, esta é a nobre verdade da cessação do sofrimento: é o desaparecimento
e cessação sem deixar vestígios daquele mesmo desejo, abrir mão, descartar, libertar-se,
desapegar desse mesmo desejo (...) Esta nobre verdade da cessação do sofrimento
deve ser realizada (DUKKHA-NIRODHAM ARIYA-SACCAM, 2009).
A Quarta Nobre Verdade (dukkha-nirodha-gamini-patipada
ariya-saccam): o Nobre Óctuplo Caminho (ariya attangika magga)
E qual,
bhikkhus, é o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir
a visão ... que conduz a Nibbana?
É este
Nobre Caminho Óctuplo: entendimento correto, pensamento correto, linguagem
correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção plena
correta, concentração correta. Esse, bhikkhus, é o caminho do meio para o qual
o Tathagata despertou, que faz surgir a visão, que faz surgir a sabedoria, que
conduz à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana (SAMYUTTA NIKAYA
LVI.11, 2009).
A
ênfase do ensinamento do Buddha está purificar a mente da ignorância, e para
isso, toda a prática tem como fundamento aprendermos a ver a realidade como ela é, sem distorções. Significa ver todos os
fenômenos corporais e mentais em sua tríplice característica: a impermanência (anicca);
o sofrimento e insatisfação (dukkha), e a insubstancialidade de um
"eu" ou de um "meu" (anatta). Nesta terceria
característica, encontramos a distinção mais importante entre a perpectiva budista
e a hindu. No ensinamento do Buddha, a noção de um atman, enquanto “alma” ou “princípio permanente” é considerada uma
delusão que deve se abandonada. Um outro aspcto também negado pelo Buddha é o
da existência de uma entidade suprema denominada de Brahman na tradição hindu:
quando Buddha se refere a Brahma, (enquanto Criador segundo a tradição hindu),
este é uma divindade também sujeito à lei da impemanência. Por isso, não há no
ensinamento budista a idéia hindu da realização espiritual como uma união (yoga)
com um Brahman supremo. Isto não significa, entretanto, que no ensinamento do
Buddha não haja a noção de uma realidade permanente, incondicionada, Nibbana:
Existe um
não-nascido, um não tornado-a-ser, um não-feito, um não-composto; se não fosse
por este não-nascido, não tornado-a-ser, não-feito, não-composto, não seria
possível neste mundo nenhuma evasão do nascimento, do porvir, do fazer da
composição (Coomaraswamy, apud Udana, 1967) (16).
A
lei da impermanência comanda a trajetória de todos os mundos condicionados, em
seu turbilhão incessante de nascer e morrer (o samsara), seja os mundos
celeste, os terrestres ou os infernais. Tudo o que nasce, está sujeito a se
decompor, a desaparecer. Embora não encontremos nos ensinamentos do Buddha uma
referência explícita à noção dos yugas da tradição hindu, a noção de que os
ciclos dos mundos samsáricos, ao rebrotarem, tendem para a decadência pode ser
encontrada no sutta (sermão) 26 do Digha Nikaya (Os sermões longos do Buddha),
que junto a outros quatro Nikayas, formam o Sutta Pitaka, uma das três coleções
de ensianamentos, que junto om o Vinaya Pitaka (referente aos códigos de
disciplina monástica) e o Abhidhamma Pitaka (referente à estruturação
sistemática dos princípios doutrinários apresentados no Sutta Pitaka), formam o
Cânon Pali do Budismo Theravada, considerada a escola viva mais antiga do
Buddhismo primitivo.
Neste sutta 26 do
Digha Nikaya, o Cakkavatti Sihanada Sutta, Buddha
conta como o processo de decadência ocorre progressivamente, iniciando-se com
uma época em que reina a lei, a ética, a bem aventurança, para aos poucos ir
surgindo os vícios, a perda da ética, da generosidade, da justiça, a brevidade
do tempo de vida, etc. Neste interessante sutta, o final deste precurso é
seguido do surgimento do futuro Buddha, o Buddha Metteya, ou Maitreya (na
língua sânscrita). Embora o processo de decadência narrado pelo Buddha não
apareça dividido formalmente nos moldes dos quatro yugas da dourina hindu, é
bem plausível vermos neste sermão as evidências da condição de obscuridade
espiritual do mundo moderno, agora referido como contemporâneo. Mesmo na
perspectiva cristã, encontramos essa sintomática, nas palavras do Cristo sobre
o tempo em haverá o “endurecimento dos corações”.
Colocando
agora a modernidade aos olhos da tradição hindu e budista, teremos um outro
desenho de significações sobre este período da história da humanidade. De um
lado, é certo que a modernidade “libertou” certas possibilidades contidas
originalmente em potencialidade no ciclo atual: o desenvolvimento das forças
produtivas através das quais se potenciou a produção de mercadorias a um nível
vertiginoso, em que a reprodução ampliada do capital exige um sucateamento das
coisas em velocidade cada vez mais crescente. Mas libertação a que custo, ou
dito de outro modo, qual o significado mais amplo desta “libertação”?
Imaginemos que em nosso corpo estivesse um germe de uma virulência mortal, mas
que graças ao nosso sistema de defesa imunológico este vírus estivesse
constrito. Mas que chegasse o momento em que o sistema imunológico fosse
rompido e o virus se expandisse com violência. O que estava constrito foi
“liberto”. Neste caso, o corpo seria entregue à morte. Significa dizer que a
noção de “libertação” depende dos contextos e significados com que é
interpretada. Os povos indígenas de várias partes do mundo têm alertado
repetidas vezes, e sob vários aspectos, sobre algo do que teria sido
“libertado” pelo mundo moderno:
Ömame (o criador mítico da
humanidade Yanomami e de suas regras culturais) mantinha a xawara (a
epidemia do minério) escondida. Ele a
mantinha escondida e não queria que os Yanomami mexesse com isto. Ele dizia:
não! Não toquem nisso! Por isso ele a escondeu nas profundezas da terra. Ele
dizia também: “Se isso fica na superfície da terra todos Yanomami vão começar a
morrer à toa!” Tendo falado isso, ele a enterrou bem profundo. Mas hoje, os nabëbë, os brancos, depois de terem descoberto nossa floresta, foram tomados
por um desejo frenético de tirar esta xawara do fundo da terra onde Ömame a tinha
guardado...A xawara do minério é inimiga dos Yanomami, de vocês
também. Ela quer nos matar. Assim, se você começar a ficar doente, depois ela
mata você. Por causa disso nós Yanomami estamos muito inquietos (17).
Sinteticamente, aos olhos das várias
doutrinas espirituais, a modernidade significou a necessária realização das
possibilidades inferiores contidas desde as origens no conjunto global deste
ciclo cósmico, necessária, mas nem por isso menos terrível, porque se funda na
progressiva ruptura dos nexos metafísicos entre os princípios transcendentes e
a existência terrestre humana. A civilização ocidental moderna constitui-se por
isso em uma anomalia no conjunto das sociedades humanas e marca o encerramento
deste ciclo humano. Do ponto de vista cosmológico, o frenético desejo-impulso
de desenvolvimento das forças produtivas, a ponto de ser o motor central do
mundo moderno, onde o Banco é a “igreja” do mundo atual, subordinando tudo o
mais ao seu imperativo, significa uma vertiginosa descida rumo ao pólo
substancial, cuja expressão psicológica é o apego e a insatisfação crescente em
que a mente se vê enredada, em sua crescente dependência a necessidades criadas
e alimentadas pelo complexo tecnológico.
Para que este motor produtivo pudesse
ser liberado, internamente o mundo medieval foi desmantelado e os servos
transformados em proletários para a indústria nascente, e externamente, tendo
em uma das mãos a espada e as canhoneiras, e na outra a cruz, lançaram-se à
invasão e rapinagem das Américas, África e Ásia, impondo a todos esses povos
tradicionais o domínio econômico e político, junto às várias tentativas de imposição
da catequese cristã (18). Se houve libertação, poderíamos perguntar se não foi
a libertação da violência da ambição materializante e seus desdobramentos
sociopolíticos, e de um ponto de vista psicocultural, a libertação de uma
concepção mental dessacralizante do homem e do Cosmos. Ainda que a difusão do
Cristianismo fosse colocada como a dimensão religiosa da expansão colonial, e
que a visão cristã pareça ainda ser um dos esteios da modernidade ocidental (19),
de fato a ideologia da modernidade se caracteriza por uma negação dos
fundamentos metafísicos, e esta negação se moverá para todas as áreas da
ciência, da filosofia e das artes. A explicação cristã sobre a criação do mundo
passaria pouco a pouco a ser contestada como não-científica e apoiada apenas na
fé e na crença, o que trazia subjacente uma noção ideológica do que seria uma
“visão científica”. A metafísica, no caso a cristã, passou a ser considerada
como oposta à ciência; o obscurecimento da compreensão do significado da
Metafísica no decorrer da história do pensamento e da filosofia moderna chegou
a tal ponto deste termo ser utilizado para designar o que seria incompreensível
ao entendimento humano.
Do ponto de vista do conhecimento, o
obscurecimento da compreensão da Metafísica acompanha a progressiva ruptura, no
Ocidente moderno, dos nexos metafísicos que uniam o transcendente com a
existência humana, o que implicaria em uma desespiritualização da visão moderna
do homem, da sociedade e da Natureza. Esta perda de visão metafísica do homem é
que caracterizará a emergência de um tipo de ciência, a moderna, cuja tônica é
a de que a faculdade humana da razão, aliada às provas empíricas, seria
suficiente para dar conta da explicação dos diversos domínios da existência,
enquanto os hindus, em sua complexa estrutura de entendimento, embora dando à
razão um lugar importante no conhecimento, subordinam sua ação a um domínio
dependente do Intelecto transcendente, Buddhi,
cuja forma de acesso às verdades é o da intuição contemplativa e cujo exercício
passa pelas exigências de uma prática espiritual estruturada, o que significa
uma outra noção do que seja a atividade intelectual.
A perda da intuição e a hegemonia da
razão, o que se denominou de racionalismo, terminaria por conduzir ao
infra-racional, em que a própria razão passaria a ser negada como forma de
conhecimento, em favor não da recuperação da intuição espiritual supra-racional,
mas do primado da sensação, cujo lugar na estrutura mental humana é o mais
exterior e passível de lançar a mente para a dispersão. Não é por acaso que em
nossa época assistimos ao predomínio da exploração das sensações, vendidas como
o verdadeiro modo de realizar a vida. A manipulação das sensações através de
maciços apelos dos meios de comunicação de massa cada vez mais sofisticados
tecnologicamente é um evidente passo a mais destas rupturas para baixo. As
revistas lamentam e se indagam porque avança o número de jovens envolvidos e
mortos pelas drogas.
Já na época de Sócrates e Platão a
capacidade de penetração metafísica se encontrava bastante obscurecida no mundo
grego, e se Sócrates foi obrigado a tomar cicuta era porque falava sobre verdades
superiores para um povo grego que já não mais conseguia compreendê-las. A
capacidade de compreensão dos ensinamentos platônicos sobre os Arquétipos
divinos se tornava mais enfraquecida com Aristóteles e o racionalismo já se
amplia bastante. Em Aristóteles, o lado intuitivo de Platão já estava mais
ausente, e o compensatório esforço racional de sistematizar o conhecimento
metafísico, rebaixando a visão mítica para uma leitura filosófica e lógica,
como que para preencher o vazio deixado pela retirada dos deuses do Olimpo, é
bem visível. O recolhimento da intuição e a exacerbação do racionalismo no
Ocidente já vêm do séc. VI aC. Quando o mundo grego e romano se decompõe, o
racionalismo já estava bastante forte como tendência do Ocidente. Quando o
Cristianismo se colocou como via espiritual para o Ocidente de então, sendo uma
via puramente interior, não fazia parte de sua natureza o compromisso de criar
um corpo de ciências, pois seu propósito era mais o de oferecer uma via de
realização espiritual do que o de explicar os vários domínios fenomênicos.
Ainda assim, um certo sistema de saber analítico foi construído, articulando a
metafísica cristã com fundamentos aristotélicos, o que paradoxalmente
contribuirá posteriormente para o aprofundamento da anterior tendência
racionalista herdada do mundo grego-romano, enquanto o Cristianismo ortodoxo
oriental fará opções pela via mais intuitiva da herança platônica. Essa
diferença de opções, sem dúvida está relacionada à diferença de predisposição
mental destes povos (20).
Com o Renascimento, a tendência
racionalista e a concomitante dificuldade de se entender e penetrar na
realidade metafísica vai se aprofundar. Na ótica metafísica, o que se chamou de
Renascimento foi um movimento específico da Europa pós-medieval, e que tentou
recuperar o que era mais exterior do mundo grego, sendo por isso, diz René
Guénon, a morte de muitas coisas e mais um passo na destruição do saber
metafísico no mundo ocidental. Pretendeu-se que a partir do Renascimento e do
Iluminismo se inaugurava o esforço de se libertar das travas da superstição
religiosa cristã e criar um saber científico, renegando que o saber anterior
fosse ciência. Afirmava-se implicitamente que todos os outros povos, do
extremo-oriente ao extremo-ocidente, não possuíam ciências. Mas o fato é que,
dentro do universo estruturado de tradições como a hindu, os múltiplos níveis
do saber possuem seus fundamentos maiores na metafísica espiritual. São saberes
do mundo fenomênico segundo vários pontos de vista, mas todos esses pontos de
vista e níveis ligam a realidade do mundo existencial com o que lhe é ontològicamente
superior e determinante, do corporal subordinado ao sutil e este ao
propriamente espiritual, pois é esse Eixo que dá significado a cada coisa
segundo seu plano de realidade. A oposição não estaria entre um saber
científico e racional (posto como o novo e verdadeiro modo do saber, e
inaugurado pela modernidade pós-renascentista) e o saber metafísico ou
religioso (posto como dogmáticas crenças dos povos tradicionais, em uma
anterioridade cognitiva ultrapassada pelo progresso do conhecimento carreado
pelo saber ocidental moderno). Na ótica metafísica, a oposição está entre um tipo de ciência, a moderna, carente
de nexos entre o mundo fenomenico e seus princípios ontológicamente
determinantes, - estes remetendo ao domínio metafísico-espiritual -, desconexão
esta que tenta explicar o mundo em si mesmo e por si mesmo, e outro tipo de ciência, as ciências
tradicionais, que se fundam nestes nexos metafísicos e enxergam o mundo
manifesto como presença do Transcendente no imanente, como teofania.
Neste mesmo balaio de equívocos,
também está o erro de ponto de vista em colocar ciência como oposição à
Metafísica (ou religião). É apenas na modernidade que se criou esta imagem de conflito
ciência-religião. É um erro de posição, pois a Metafísica (ou a religião)
respondem pela realidade dos princípios transcendentes, o supracósmico, o noumenon, enquanto as ciências se referem
ao domínio do mundo fenomênico, o Cosmos, o phenomenon. Por não compreenderem esta distinção fundamental, os
pensadores modernos freqüentemente lançam críticas à metafísica (à qual reduzem
ao limitado universo aristotélico) através do argumento de que a Metafísica se
baseia em um “essencialismo”, pressuposto de que haveria uma “essência” das
coisas, mas que isso seria desmentido pela realidade, onde nada subsiste, tudo
se mostra como processo cambiante, fluxo em que as coisas e seres se constróem
na posição e re-posição das relações dinâmicas determinadas pelo conjunto de
condições históricas. A concepção metafísica sobre as essências é um tema bem
mais complexo, e que merece espaço mais amplo do que os limites deste trabalho.
Mas algo pode ser ponderado aqui.
A crítica colocada à Metafísica é equivocada,
pois supõe que as doutrinas metafísicas desconhecem o fato de que a realidade
fenomênica é apenas um processo mutável de vir-a-ser. Já esclarecemos no
decorrer deste texto que as doutrinas metafísicas colocam claramente que o
domínio fenomênico é marcado pela dialética do incessante vir-a-ser, do
construir-destruir, do surgir-desaparecer, e este é o significado etimológico
do conceito grego de phenomenon. Mas
as doutrinas metafísicas não restringem a noção de “realidade” apenas ao mundo
fenomênico. Este é apenas a face efêmera e manifesta da Realidade Infinita, o
“lugar” dos princípios universais que sustentam ontològicamente o mundo
manifesto, mas que não se confundem com ele. O mundo manifesto é o palco onde
se desenrola a peça, o jogo (no sentido do termo inglês play) entre os seres em sua face ilusória e seus princípios
fundantes. Mas simultaneamente, os seres não são apenas personagens ilusórios
cujas essências estariam ocultas por detrás do palco, como se as essências
fossem “algo material” que ao procurarmos dentro da cebola nada encontramos. A
essência se revela na forma, dizia Plotino (21).
Princípios transcendentes e mutável
Cosmos fenomênico, as doutrinas metafísicas estão falando de planos diferentes,
hierarquicamente integrados dentro do seu corpo cognitivo, mas que passou a ser
vivido como conflito apenas no Ocidente moderno porque a relação hierárquica
vertical entre ambos foi ignorada e convertida em opostos no mesmo plano
horizontal. O pensamento moderno pretendeu com isso renegar o estatuto ontológico
da Metafísica, e, portanto, do supranatural, para a hegemonia de um tipo de
conhecimento científico fundado em uma razão desprovida de nexo com o
transcendente. Mas mesmo essa ruptura sendo posta como força dominante, o senso
humano de crítica em busca da verdade persistiu, ainda que de modo limitado,
nas discussões entre a razão crítica e a razão instrumental. Os imperativos
materiais do lucro, a despeito das análises da razão crítica, puxam a razão
experimental para seus bem pagos compromissos de instrumentalização necessária
à produção ampliada de mercadorias. É bem conhecido o quanto a nova ciência foi
estimulada e serve aos requisitos das indústrias, incluindo as indústrias
culturais que hoje ocupam as atividades dos meios de comunicação de massa e a
criação da “realidade virtual”, cujas terríveis implicações para a mente humana
mereceriam uma reflexão maior.
A razão crítica, entretanto, tal
como é exercitada na modernidade, se vê limitada. Pela sua própria natureza de
razão, como ratio, significando a
capacidade humana de estabelecer proporções e sentidos entre elementos do
domínio limitado em que opera, necessita para isso de princípios que lhe
permitam ponderar esses elementos e tirar conclusões. Esses princípios,
entretanto, não se encontram dados de imediato no empírico, mas estão fundados
em um plano ontològicamente superior ao fenômeno, porque lhe são determinantes.
Como a modernidade pretendeu ignorar a determinação dos planos ontológicos
hierárquicos, ignorando por conseqüência a dependência da razão para com o
Intelecto transcendente do qual procede e que lhe permite ascender ao
conhecimento desses planos ontológicos determinantes, o esforço da razão
crítica permanece amarrado na superfície dos problemas.
A Ética
é uma das dimensões da vida contemporêna em que transparece os efeitos desta
limitação da razão, quando desconectada de princípios supramundanos. Leonardo
Boff, em seu estudo sobre a Ética, e observando a trajetória histórica da Ética
na Grécia a partir de Platão e Aristóteles, observa que o ethos anterior
(zelado pelo daimon, o anjo bom, a
voz intrínseca da interioridade) foi sendo substituido por um sistema recional
de princípios em que a razão se tona demasiadamente instrumental e analítica,
que passa a estabelecer uma tecnociência
ameaçadora,
no sentido de um abandono dos valores humanos básicos. Ocorre um desequilíbrio
entre a tendência da autoafimação e o da integração humana: “Ao invés de estar
junto dos demais seres, colocou-se sobre eles e contra eles. Aí começou a
auto-exílio do ser humano, pois foi se afastando lentamente da Casa comum, da
terra e dos demais companheiros e companheiras da aventura terrenal. Quebrou os
laços de coexistência com eles. Perdeu a memória sagrada da unicidade da vida
em sua imensa diversidade. Esqueceu a teia das interdependências, de comunhão
com os vivos e com a Fonte originária de todo ser. Colocou-se num pedestal
solitário a partir do qual pretende dominar a terra e os céus. Eis nosso pecado
de origem que subjaz à crise ética de nossa civilização: nossa autocentração,
nossa ruptura fatal. Esta postura de arrogância gerou a maior tragédia da
história da vida. As conseqüências nos alcançam até os dias de hoje e de uma
forma perigosa, pois ela criou o princípio de autodestruição da espécie e de
seu habitat natural (22).
Esta operação fragmentante do
conhecimento moderno se irradiou por todas as áreas do saber, tanto nas
chamadas ciências naturais, com as interpretações naturalistas, como das
ciências sociais. O mal-estar da fragmentação de quando em vez irrompe e
tentativas de integrar os vários ramos do saber são esboçadas, mas os
resultados são irrisórios, pois como integrar ramos quando se renega o tronco e
a raiz? Galhos justapostos não formam uma árvore. A sociedade humana passaria a
ser interpretada e reivindicada como o domínio dos homens regidos não mais por
um fundamento metafísico-espiritual, mas por um contrato social, um acordo
entre homens livres, dissimulando a coerção impositiva da noção de
Estado-nação, cujo modelo europeu se tornou imperativo para todos os povos do
mundo, forçando as etnias à submissão a uma forma de organização uniformizante
e desprovida de qualquer fundamento metafísico. E quando alguma etnia indígena
reivindica seu estatuto de identidade como um povo-nação com um modo próprio de
ser e reger sua vida, de acordo com a tradição instituída por seus criadores
míticos, aspiração que muitas vezes vem acompanhada da reivindicação de
autonomia, o pressuposto do contrato por acordo entre homens livres mostra sua
efetiva realidade. Se é verdade que na fase atual o próprio conceito de
Estado-nação vem sendo parcialmente enfraquecido, não é para a constituição de
uma fraternidade supranacional dos povos, mas pela emergência de um
conglomerado de corporações transnacionais que controlam a economia, a política
e a cultura segundo seus interesses privados materiais.
Se passarmos do âmbito das ciências
sociais para o domínio da teorização sobre o psiquismo humano, vamos observar o
surgimento de uma Psicologia propondo-se a construir uma ciência do psiquismo
humano, como se ela não existisse já formulada há séculos dentro do corpo de
conhecimento de cada Tradição. Também aí reencontramos a mesma ruptura, no
propósito de constituir uma ciência do psiquismo sem o princípio metafísico-espiritual
que governa o psiquismo. O homem passaria a ser configurado não mais como
constituído por uma complexa síntese do corporal, anímico e espiritual, ou
corpo-mente, mas reduzido apenas a uma individualidade psicofísica, o Ego, esta
entidade ilusória agora erigida em categoria e realidade central do homem,
dividido entre uma razão fragmentada e um subconsciente tenebroso.
Considerado pelos hindus e budistas como
realidade ilusória e voraz, necessitando ser compreendido e educado pela
maestria de princípios espirituais mais profundos, na modernidade o Ego seria
liberado pela negação do estatuto ontológico do supraegóico. Aquele ego, que os
hindus e budistas explicam ser apenas um fluxo de agregados impermanentes, é
posto no trono como uma entidade substantiva e com todos os direitos de desejo
reinante. Os conceitos só revelam seus significados verdadeiros à luz do
universo doutrinal em que se ancoram, e se há um fazer ciência, é o de trazer
às claras a trama oculta destes fenômenos e suas nomeações, essas palavras,
seus ambíguos sentidos e seu contexto. Na noite, pode ser visto como cobra o
que se mostrará à luz do dia como apenas uma corda velha enrolada, exemplifica
os hindus e budistas.
Desconectada a sociedade de sua raiz
metafísica, desconectada a razão de seu intelecto transcendente, desconectado o
homem de natureza luminosa mais profunda e destinação espiritual, o homem
moderno se vê na liberdade da prisão do apetite frenético de seu Ego e da
manipulação do globalismo de terríveis senhores. Estão aí colocadas, de modo
sucinto, duas visões, o da modernidade e o da tradição hindu e budista, com
todas suas implicações, para serem refletidas e aprofundadas. No Tempo, o tempo
dirá.
Mas aquele que
obedece à Natureza
Retorna através da
Forma e do Sem-Forma ao Vivente
E no Vivente
une o começo
que-não-começou.
A união é a
Igualdade. A igualdade é o Vácuo.
O Vácuo é infinito.
No meu fim está o meu
começo.
(Chuang Tzu)
Notas
(1) Este trabalho faz
parte de um conjunto de reflexões e pesquisas que estamos desenvolvendo sobre
as doutrinas tradicionais da Ásia e do mundo indígena. Agradecemos a todos os
que têm contribuído para essa realização.
(2) Coomaraswamy, Ananda
- Hindouisme et Bouddhisme, p.25,
France, Ed. Gallimard, 1980.
(3) Elourduy, Carmelo - Dos grandes maestros del Taoismo,
p.101-102, Madrid, Ed. Nacional, 1983.
(4) Guénon, René - A Crise do Mundo Moderno, p.81-82,
Lisboa, Véga, 1977. Uma das análises críticas mais agudas do mundo moderno foi
elaborada por René Guénon neste livro referido, e do qual muitas colocações
foram aqui incorporadas. As reflexões críticas de Guénon em sua vasta obra de
mais de três dezenas de títulos, bem como de outros autores como Ananda e Rama
Coomaraswamy, F. Schuon, T. Burckhardt, Martin Lings, Seyyed H. Nasr, W.
Stoddart, M. Pallis, que se empenharam em esclarecer as contradições do mundo
moderno à luz da metafísica tradicional, ainda estão por serem descobertas
pelos círculos acadêmicos.
(5) Guénon, René - idem,
op.cit., l977, p.83.
(6) Guénon, René - Introduction Générale a l’Etude des
Doctrines Hindoues, p.161, Paris, Véga, 1976.
(7) Eliade, Mircea - Mito e Realidade, SP, Ed. Perspectiva,
1972.
(8) Coomaraswamy, Ananda
- idem, op. cit., 1980, p.25-26.
(9) Elourduy, Carmelo -
idem, op.cit., p.130.
(10) O tempo é considerado
apenas como uma das formas de sucessão, aquela que define um dos degraus da
manifestação universal, da qual participa o estado humano.
(11) Sobre uma reflexão crítica do
evolucionismo darwiniano, veja Douglas Dewar, The Transformist Illusion, USA, Sophia Perennis et Universalis, 1995.
Neste trabalho, com base em um vasto conjunto de dados biológicos, o autor põe
em questão e refuta cientificamente os vários pressupostos da hipótese
evolucionista. Veja também Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis; Phillip
E. Johnson, Darwinism on Trial;
Titus Burckhardt, Mirror of the
Intellect, SUNY Albany, 1987.
(12) Guénon, René - idem,
op. cit., p.36, 1977.
(13) Merton, Thomas - A via de Chuang Tzu, p.102, Petrópolis,
Vozes, 1977.
(14) Segundo Tsong-Khapa,
fundador da ordem de Dalai Lama e de acordo com o testemunho de Marco Pallis,
cf. referência em R. Guénon, 1977, nota 1, p.28.
(15) O conceito de dharma (dhamma, em Páli) é complexo e de difícil tradução para as línguas
ocidentais, e exigiria maiores elaborações. Da raiz sânscrita dhr, significa “o que sustenta, o que
suporta”, daí o sentido de “Lei, dever, justiça, modo correto de ação,
estabilidade”. Na análoga raiz grega drus,
nome grego do carvalho, está sua acepção de axialidade
no símbolo da Árvore.
(16) Coomaraswamy, Ananda
K. O pensamento vivo de Buda, p. 241. São
Paulo: Livraria Martins, 1967.
(17) Depoimento de Davi
Kopenawa Yanomami, Yanomami: a todos os
povos da Terra, Ação pela cidadania, CCPY/Cedi/Cimi/NDI, 1990, p.11.
(18) Sobre isso, veja o
excelente trabalho historiográfico da invasão ocidental sobre a Ásia em K.M.Pannikar , A Dominação ocidental na Ásia, RJ, Paz
e Terra, 1977. A
questão da relação de violência entre a expansão colonial e o missionarismo
cristão merece um estudo à parte. Pannikar oferece grande quantidade de dados
históricos e ideológicos sobre esse aspecto, mas uma análise mais complexa
necessita ser feita, pois se é verdade que as religiões semíticas são por
natureza expansionistas, o modo de associação com a violência colonialista não
só não é intrinsecamente necessário como oposto aos próprios princípios do
Cristianismo. Sobre isto, veja Buddhismo
e Christianismo: Esteios e Caminhos, Arthur Shaker F. Eid.
Petrópolis, Ed. Vozes, 1999.
(19) A despeito do caráter
sacro do poder político ter persistido até a Revolução Francesa, e ainda que
possamos distinguir sob certos aspectos seu conteúdo no poder imperial durante
a Idade Média e com as realezas nacionais na Idade Moderna (sobre isto veja Os dois Corpos do Rei, E. Kantorowicz,
SP, Companhia da Letras, 1998), de fato o poder político caminhou para um
conteúdo secular na modernidade. A questão da relação entre poder político e o
Cristianismo mereceria uma reflexão mais apurada, pois há uma certa fratura
estrutural entre ambos, dado que por sua natureza espiritual intrínseca, o
Cristianismo é originalmente uma via espiritual interior, portanto sem um
estatuto político-jurídico como em outras tradições, como o Islamismo ou o
Hinduismo. Sobre as razões metafísicas que teriam levado o Cristianismo a
legislar sobre a política, e as contradições decorrentes, veja René Guénon, Aperçus sur l’Esoterisme Crétien,
Paris: Ed.Traditionelles, 1980; F. Schuon, Da
Unidade Transcendente das Religiões. SP: liv. Martins Ed., 1953; e outras
referências em
Buddhismo e Christianismo : Esteios e Caminhos, op. cit.
(20) Sobre o processo
histórico de desespiritualização do saber ocidental, ver Seyyed H. Nasr, O Homem e a Natureza. RJ: Zahar, 1977.
(21) Carvalho, Olavo de - Universalidade e Abstração e outros estudos.
SP: Speculum, 1983.
(22) Boff, Leonardo - Ética e moral: a busca dos fundamentos,
p. 16-17. Petrópolis, Vozes, 2003.
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(continua)
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Palestras Arthur Shaker
SBB 20/03/12 - (audio)
Tema: Felicidades transitórias, felicidade permanente e os ensinamentos do Dhamma do Buddha
http://www.sociedadebudistadobrasil.org/audios/palestras-online/palestra-20-03-12-arthur-shaker.mp3
SVM Brasília: 06/2011 - Video (15 minutos)
Tema: A prática da meditação na superação do sofrimento
http://www.sendspace.com/file/xc9l5m
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Veja outros textos sobre o tema:
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Arthur Shaker
Arthur Shaker
o Lugar do Homem nas doutrinas tradicionais
Arthur Shaker
Revista UNICLAR, ano IX, no. 1. SP: Faculdades Integradas Claretianas, nov. 2007, p. 37-48
Que coisa é homem, que há sob nome? pergunta o poeta Carlos Drummond. Quem somos, o que nos constitui e como direcionamos nossa natureza humana para a realização espiritual são as questões fundamentais daquele que aspira o caminho da Sabedoria e Iluminação. Para isto, vejamos o arcabouço explicativo das doutrinas tradicionais.
O lugar que as doutrinas tradicionais colocam o homem dentro da existência fenomênica pode parecer a princípio algo bastante complexo e nem sempre unânime para um ponto de vista mais imediato e exterior. Nas tradições que explicitam uma Cosmogonia, parte-se do Princípio Supremo, o Absoluto, para a manifestação, que se dá segundo uma progressiva diferenciação que engendra os seres.
Na doutrina taoísta, o Absoluto como ponto de partida é referido como o Tao sem nome, Ch’ang. Do Tao sem Nome, o Zero, o Absoluto, surge o Um, a Unidade Primordial, o Ser como princípio de todos os seres. Para se manifestar, a Unidade se polariza, surgindo dois princípios, o pólo ativo designado por vários nomes conforme cada Tradição, como Purusha, Yang, o Céu, o Pai, a Essência, e o pólo passivo, Prakrti, Yin, a Terra, a Mãe, a Substância. Da união, casamento sagrado (hierogamós) entre os dois princípios brotam os dez mil seres, simbolizando a multiplicidade do mundo manifesto, como cardumes de peixes que pululam dentro das águas cósmicas. Da união dos pólos principiais brota a Existência cósmica, com sua hierarquia de estados do Ser, os seres, sem que estes princípios participem diretamente da existência. Suportam toda a existência, mas não existem como princípios puros dentro da existência fenomênica.
Estas primeiras considerações já descortinam a distância entre a concepção cosmogônica tradicional e as interpretações das ciências modernas. Estas reduziram-se a noções quantitativas, com as quais pretendem explicar a gênese do Universo, como a hipótese do Big-Bang e o evolucionismo, sob a alegação de buscarem o fundamento da Verdade na própria “matéria”, termo este que não aparece em nenhum corpo teórico tradicional, e que tem sido questionado também pela própria Física quântica sobre sua veracidade e significação.
Nas tradições que explicitam a gênese da Existência, como o Hinduísmo, as tradições semíticas e muitas outras, o Homem é o intercessor, o Filho predileto deste casamento entre o Céu e a Terra. No Taoísmo, isto é simbolizado pela figura do Imperador, cujo ideograma é Wang. Neste ideograma, o traço horizontal superior designa Tien, o Céu; o traço horizontal inferior é Ti, a Terra; o traço horizontal mediano, que é menor, é Jen, o Homem primordial, e o traço vertical é o eixo transcendente. Observemos que o ideograma Wang têm quatro traços. De acordo com a simbologia das ciências tradicionais, “o Quaternário configura a expansão total, simbolizada pela cruz, na qual os quatro ramos são formados por duas retas indefinidas retangulares. O quaternário é o número do Verbo manifesto, de Adam Kadmon” . Portanto, quando as Tradições teístas afirmam que o homem ocupa um lugar central no Cosmos, ou dito nos termos de Gênese bíblica, que Elohim criou, por sua Palavra e Ordem - “seja!” (kun), o homem à Sua imagem e semelhança, não é do homem individual que se trata, mas do Homem Universal - al-Insan al-Kâmil, Adão Kadmon, o Homem Transcendental, Tchen Jen - o arquétipo de toda manifestação. Eu (Deus) era um tesouro escondido; Quis ser conhecido, e Eu criei o mundo, diz um hadith (palavra divina) islâmico. Adão como a claridade do espelho no qual Deus irá manifestar Seu mistério a Ele mesmo: “Este ser adâmico foi chamado Homem (insan) e Representante (khalifah) de Deus. Quanto à sua qualidade de homem, ela designa sua natureza sintética (contendo virtualmente todas as outras naturezas criadas), e sua aptidão de enlaçar todas as Verdades essenciais”. Conta o mito da criação do universo e do homem, segundo a tradição bambara do Komo, uma das grandes escolas de iniciação do Mande (Mali, África):
“ ‘Maa Ngala é a Força infinita.
Ninguém pode situá-lo no tempo e no espaço.
Ele é Dombali (Incognoscível)
Dambali (Incriado – Infinito)
(...)
Não havia nada, senão um Ser.
Este Ser era um Vazio vivo,
a incubar potencialmente as existências possíveis.
O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um.
O Ser-Um chamou-se de Maa Ngala.
Então ele criou ‘Fan’,
Um Ovo maravilhoso com nove divisões
No qual introduziu os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos
que constituíram a totalidade do universo, a soma total
das fontes existentes do conhecimento possível.
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta
a tornar-se o interlocutor (kuma-nyon) que Maa Ngala havia desejado para si.
Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e misturou-as;
então, insuflando na mistura uma centelha de seu próprio hálito ígneo,
criou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de seu próprio nome: Maa.
E assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina nele introduzida,
continha algo do próprio Maa Ngala’.
Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força suprema e confluência de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de herança uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra.’ ”.
A queda do homem, segundo uma interpretação mais profunda dos textos da Gênese bíblica, designaria este processo de diferenciação, de afastamento, de distinção da Unidade primordial, cuja expressão mais ilusória é a individualização, a armadilha do ego. As doutrinas tradicionais que explicitam uma Cosmogênese partem do Princípio Supremo para a diferenciação que engendra a Existência, para daí indicar os caminhos de re-integração, à imagem de um triângulo cujo vértice, o Princípio, está acima e se abre em diferenciação para baixo. Uma doutrina não-teísta, como o Buddhismo, evitará muito da discussão cosmogônica, por considerá-la uma fonte de possível apego e teoricismo. Buddha usa o exemplo de um homem que recebe uma flecha envenenada. Alguém o socorre, mas o homem não quer que a flecha seja retirada antes de saber quem lançou a flecha, se era alto ou baixo, se estava longe ou perto, e tantas outras perguntas e acaba morrendo. Por isso, a ênfase budista é cuidar diretamente do caminho ascendente de Liberação. A imagem agora seria o triângulo com o vértice em baixo, simbolizando o homem, e abrindo-se para cima, para a Liberação.
Compreendida essa diferença de ângulo, as tradições são unânimes em afirmar que o homem ocupa, na Roda da Existência, uma posição muito especial em relação aos outros seres. Posição especial em potencial. Buddha ensinava ser de extrema riqueza, e de muitos méritos acumulados, o fato de seres terem nascidos no estado humano. É tão raro, dizia, quanto estarmos no meio do oceano, dentro de um pequeno barco, e descobrirmos um grande furo no fundo dele, por onde está entrando água, e de repente vemos lá longe uma tartaruga vindo, se aproximando, entrar por baixo e com seu casco tapar o buraco e conduzir o barco a salvo até uma costa segura a muitas léguas de distância. Raro e importante é ter nascido no estado humano, pois esse estado é muito propício para podermos nos libertar da prisão do Cosmos, alcançar a Iluminação diretamente a partir deste estado. Os demais seres, mesmo os celestiais devas, embora possam se iluminar a partir desses estados, devido aos seus apegos que esses estados prazeirosos permitem experienciar, terão mais dificuldades para aprender a Verdade, o Dharma, e com isso escaparem da roda de renascimentos, samsara. Quando Siddharta Gautama alcança o estado de Buddha, Libertação e Iluminação, e, refletindo sobre a incapacidade dos homens de entenderem o Dharma, decide não abrir o ensinamento do Caminho, os devas, que haviam descido dos céus para aprenderem os ensinamentos para a libertação, caem em profundo estado de inquietação e desolação. Do mesmo modo é dito que, quando da proximidade de um Bodhisattva se tornar um futuro Buddha, descendo ao estado humano, os devas dos dez mil sistemas de mundo rogarão ao Bodhisattva que nasça entre os humanos para ensinar-lhes o alívio de suas dores, o Caminho da iluminação. O ser, em seu estado humano, possui a qualidade intelectiva que lhe permite despertar do sono da ignorância e realizar-se como um Buddha. A palavra Buddha deriva da raiz sânscrita Buddh, que significa conhecer, despertar. Essa qualidade intelectiva que o homem tem lhe permite experienciar e compreender os dois extremos do prazer e da dor na existência samsárica, e com isso, a possibilidade do desapego e libertação definitiva dos ciclos samsáricos do nascer e morrer. Para os demais seres, outros obstáculos se colocam: os seres celestiais, pelo fato de experienciarem muitos prazeres nesses estados, se intoxicam nessa experiência, que os dificultam ver a impermanência desses estados. Os seres que vivem nos estados infernais, por experienciarem muito sofrimento, terão de esgotarem muitos de seus karmas negativos até alcançar o nascimento no estado humano.
Nascer como ser humano é ao mesmo tempo de extrema riqueza e de difícil responsabilidade, de um perigo igualmente extremo. Nas perspectivas das tradições teístas, essa responsabilidade se estende ao destino do Cosmos. É dito nos relatos islâmicos que, ao criar o mundo, Allah convocou todos os seres e perguntou qual deles aceitaria ser seu representante a sustentar o mundo. Todos recuaram aterrorizados diante de tal responsabilidade, só o homem aceitou o compromisso. Todas as qualidades divinas estão sintéticamente dentro do homem, por isso o homem pode conhecer o Absoluto conhecendo a si mesmo.
Por esta condição central no Cosmos, é dito que mesmo os Anjos, por não possuírem a natureza integral de Adão, se curvam diante do Homem. Deus, ao criar à sua semelhança Adão Kadmon, o arquétipo da Humanidade, chamou-o e disse-lhe que desse nome a todos os seres, e Adão dava os nomes conforme as qualidades de cada ser que ele reconhecia dentro de si. E este era o nome. Nome como númen, halo de inteligibilidade que irradia de cada coisa, a natureza de cada coisa. O homem é um pequeno cosmos, e o cosmos é como um grande homem, diz um ditado sufi, do esoterismo islâmico. Como síntese de todo o Cosmos, o homem tem dentro de si todos os seres, toda a realidade. Parcialmente em seu corpo, como se expressa analogicamente seu processo de desenvolvimento embriológico, mas isso de modo algum teria a ver com as deduções que o evolucionismo extrai a partir da observação do desenvolvimento embriológico humano. Seria uma relação de analogia no nível apenas corporal, mas é principialmente em sua mente (ou seja, no domínio dos princípios) que o homem tem dentro de si tudo que tem fora dele, por isso ele pode conhecer toda a realidade interior e exterior a ele. Dentro dele estão todos os seres, a borboleta, a árvore, a chuva, não como presenças corporais, mas principiais, como presença virtual espiritual. Por isso quando ele vê um ser, ele reconhece dentro de si uma afinidade. E ambos traduzem a manifestação desta Realidade Suprema. Disse um sábio chinês: sonhei certa vez que eu era uma borboleta, e quando acordei, eu não sabia se eu era um homem que havia sonhado que era uma borboleta, ou se eu era uma borboleta que havia sonhado que era um homem. É um, é outro, nem um, nem outro. Tanto ele quanto a borboleta, são manifestações da Realidade Última, o Princípio Supremo. Graças a esta capacidade intelectiva, o homem de uma sociedade tradicional organiza sua vida terrestre em função dessas correspondências simbólicas entre o Macro, o Microcosmos e os princípios transcendentes. Na aldeia de certos povos indígenas as casas estão dispostas segundo um círculo que se organiza em função do Centro gerador. Neste centro se localiza às vezes as assembléias onde se discutem as questões coletivas, como é o caso do warã entre o povo Xavante do Mato Grosso, ou a casa da pajelança. Por esse centro passa o eixo que liga o Céu à Terra. O ser humano, dentre todas as espécies, é o que por excelência se mantém verticalmente de pé.
Cada cosmologia tradicional possui suas práticas de realização espiritual. Nas cosmologias em que o mundo é visto como um símbolo do transcendente, recuperar a capacidade de ver e compreender o macro e o micro cosmos como símbolos teofânicos é essencial para o despertar da Sabedoria inerente ao homem. O homem é dentre os seres aquele que tem esta capacidade mais propícia. Sabendo usá-la, a vida passa a ser disposta de maneira saudável, tornando todos os pensamentos, falas e atos dotados das virtudes do rito e do símbolo e o diálogo interior-exterior, Céu-Terra poderá fluir com grande equilíbrio e harmonia. Essa compreensão oferecerá o alimento da real alegria para o ser humano, motivando-o a prosseguir na sua ascese e libertação espiritual.
Segundo as doutrinas tradicionais teístas, quando essa Cosmologia simbólica se enfraquece dentro do homem, sua condição e seu potencial de centralidade se invertem, e o homem fica abaixo dos animais, pois se estes vivem a Presença do divino dentro deles de forma intelectivamente mais passiva, preservam a pureza desta Presença passiva e jamais põem em risco o mundo. Já o homem, ao perder a compreensão de seu legítimo lugar e dever, perde o direito de Representante divino na Terra, e faz do dom do intelecto a arma da destruição de si mesmo e do mundo. Dotado desta capacidade intelectiva, a mente humana pode investigar seu interior e exterior. Em nossos tempos, a compreensão interior se estreitou, valorizando-se mais a tendência e curiosidade da expansão pelos espaços exteriores. Todas as doutrinas tradicionais são unânimes em afirmar que por esta capacidade intelectiva do homem compreender as verdades últimas, o estado humano tem um lugar especial no processo de realização espiritual. Segundo as doutrinas teístas, como o Judaísmo, o Cristianismo e Islamismo, a virtude e função fundamental do homem é trilhar e preservar sua condição de centralidade cósmica, este Ponto semente de mostarda que espelha o reino divino e cuja expansão cria o Cosmos. Procurem o Reino de Deus e o demais lhes será dado por acréscimo, diz o Evangelho.
Estar entre o Céu e a Terra, meio-anjo meio-animal, é o lugar do homem. Na perspectiva cristã, a crucificação do Cristo poderia ser estendida analogicamente para a condição humana. O homem está crucificado no ponto de encontro entre o braço horizontal e o eixo vertical da cruz. O braço horizontal simboliza os estados manifestos e condicionados do Ser, sua face efêmera e relativamente ilusória, o homem exterior, com todas suas alegrias e sofrimentos do impermanente. As faces como “múltiplos ‘planos de reflexão’ diferenciando a irradiação (al-tajallî) divina” . O eixo vertical aponta e expressa o Transcendente, o homem interior. Neste ponto de cruzamento central e crucial, de agonia e glória, está o homem, cujo arquétipo no Cristianismo é o próprio Cristo, e cuja passagem pelo mundo desenha esta dupla natureza terrestre e celeste dos homens. Por isso a iluminação exige que cada homem realize em si o conhecimento horizontal dos mundos, com a dignidade e o dever de se saber humano, ser plenamente as qualidades do humano, e, concentrando-se neste ponto crucial, elevar-se verticalmente dos estados inferiores até o seu destino de Glória. Segundo as palavras do Cristo: Tome tua cruz e me siga.
Esta centralidade do homem, entretanto, é apenas virtual. Precisa ser efetivada, em ato. Quando o homem, com esta responsabilidade e dádiva meritória de sustentar sobre sua cabeça esta condição central, fraqueja e perde esta clareza e centralidade potencial, seja porque a sociedade obscurece a clara visão cosmológica dentro e fora do homem, não mais permitindo que ele compreenda isso, seja porque ele abre mão deste lugar de farol no escuro oceano tormentoso, em troca das aparentes vantagens do que é exterior - e essas duas razões estão interligadas - então ele e tudo que está em volta dele, a sociedade e os outros reinos também fraquejam e se obscurecem, a ignorância se espalha e amplia, o próprio Cosmos se decompõe junto com ele. O Reino divino se eclipsa, e o homem, reduzido à sua dimensão de apenas terrestre, se torna um objeto flutuante no mar disperso dos acréscimos fugidios.
Nas doutrinas não-teístas, como o Buddhismo, embora não se tenha a questão de um Deus criador, também aí se coloca para o ser humano a importância da consciência dessa sua capacidade de compreender a Verdade, o Dharma, e assumindo a profunda responsabilidade desta sua qualidade cognitiva, purificar sua mente dos venenos da avidez, do ódio e da delusão. É necessário, entretanto, ressaltar uma das diferenças importantes entre a visão budista e outras doutrinas espirituais. O Buddhismo não considera que o estado humano seja sinônimo de uma identidade individual permanente. Esse senso de um “eu” eterno e substancial é, na doutrina budista, apenas um senso ilusório, o que não significa um nihilismo, mas que o que temos de fato são apenas os cinco agregados da forma, sensação, percepção, pensamento e consciência, que iludem a mente como sendo um “eu”, de onde deriva o senso do “meu”, gerador do apego e do sofrimento. Essa noção budista do “não-eu”, anatta (na língua páli) é sutil e complexa, elaborá-la aqui estenderia demais esse texto, mas envolve a questão central: quem sou eu? Ou melhor dito: o que é este “eu” com quem nos identificamos e apegamos?
A ignorância sobre o estatuto ontológico de ser humano é de fato o grande obstáculo que mantém o ser humano preso à roda dos nascimentos, e, portanto, do sofrimento. Nesse sentido, a questão sobre como as ciências humanas definem a natureza humana e seu lugar no Cosmos é de importância fundamental para a construção dos modelos de orientação para o homem e a sociedade. Poderíamos nos perguntar o quanto certos modelos paradigmáticos das ciências humanas na modernidade, ao secularizarem suas interpretações sobre a natureza humana, não têm de fato contribuído para fortalecer esse desenraizamento espiritual do lugar do homem na sociedade e no Cosmos. Proposições ilusórias desta natureza têm consequências graves. A disciplina das Ciências da Religião, e a Metafísica e a Teologia, têm um compromisso vital, e sem hesitação, diria que se trata de um compromisso urgente, em trazer à luz a profundidade da sabedoria das doutrinas espirituais, não como uma imposição dogmática, mas um exame minucioso dos paradigmas ontológicos sobre o estatuto do homem. Pois é preciso todo esforço para se evitar o que não se pode mais ignorar: há muitas evidências de que persistindo-se neste caminho de cobiça e ignorância, se avoluma com rapidez os riscos de um desastre de proporções imprevisíveis.
Bibliografia
Burckhardt, Titus - L’Image du Bouddha, in Principes e méthode de L’Art Sacré, Derain, 1958. Cooper, J.C. – Yin eYang – A Harmonia dos Opostos, São Paulo, Martins Fontes, 1985.
Eliade, Mircea – Mito e Realidade, SP, Ed. Perspectiva, 1972.
____________. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
Guénon, René - Le Régne de la quantité et les signes des temps, France, Ed. Gallimard, 1945. _____________ Melanges, France, Ed. Gallimard, 1976.
Hampaté Bá, A. – A tradição viva, in História Geral da África, São Paulo, Ática; [Paris], Unesco, 1982.
Ibn’Arabi, Muhyi-D-Din - La Sagesse des Prophètes, (trad. e notas de Titus Burckhardt), France, Ed. Albin Michel, 1974.
Shaker, Arthur – Buddhismo e Christianismo. Esteios e Caminhos, Petrópolis, Vozes, 1999. _____________ A travessia buddhista da vida e da morte – Introdução a uma Antropologia Espiritual, Rio, Gryphus, 2003.
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a Sabedoria do Intelecto e o caminho
mítico
Maio
2009
Palavras-chave:
- Intelecto, razão, intuição
- Plena atenção, concentração, Sabedoria
- Mito, caminho mítico, realização espiritual
- Delusão, ignorância, libertação
PhD
em Etnologia Indígena pela Unicamp. Antropólogo e Instrutor de Meditação.
Coordenador do Núcleo Neurociências, Mindfulness e Saúde. Conselheiro da Casa de Dharma – Centro de
meditação budista Theravada (SP). Escritor e músico.
Resumo
Este
texto apresenta uma elaboração em torno do tema do Intelecto, a partir dos
paradigmas de algumas tradições, como o mundo greco-platônico, o Cristianismo,
o Hinduísmo, e o Budismo. Toma como base de pesquisa as contribuições das
Ciências da Religião, da Metafísica e da Teologia, bem como do conjunto das
ciências humanas, nesse repensar deste tema para a existência humana
contemporânea.
A
partir desses fundamentos, o propósito central é recolocar o lugar do Intelecto
em sua relação com a sabedoria e a razão, num contexto atual de hipertrofia do
racionalismo, em detrimento da intuição e sabedoria, acarretando a perda da
compreensão do caminho da realização espiritual como o caminho mítico por
excelência, meta e fundamento de todas as tradições espirituais.
a Sabedoria do Intelecto e o caminho mítico
Câmera, luz, ação!
Um
novo dia, um novo filme, um novo capítulo da novela da vida se inicia, e já
estamos correndo atrás de nossos afazeres, deveres, sonhos de realização, viver
uma vida plena de satisfações.
Ação,
ação, ação, na busca da felicidade. Faça, mexa-se, realize seus sonhos, viva
intensamente.
Câmera, luz, ação:
Realização!
Até
aqui, aparentemente, nada de novo sob o sol. As religiões também têm o propósito
de conduzir os seres humanos à realização. Mas vejamos. Nestas três palavras
“câmera, luz, ação”, antes da ação há duas outras: câmera e luz. Porque disto?
A palavra “câmera” vem como primeira, pois para que haja ação é preciso que
haja um foco que dirigirá a ação.
Mas há uma palavra não-dita, mas imprescindível, que é anterior ao foco da
câmera de nossa novela existencial: a motivação.
Qual
a motivação cuja realização preencheria nosso modelo de satisfação? Raramente
os seres humanos examinam esta questão vital. Ela é fundamental porque é esta
motivação que determina nossas ações, e nossas ações determinam os frutos, e os
frutos determinam o senso de satisfação que nossa mente experimenta. E esta
relação, entre a motivação e aquilo que a mente interpreta como satisfação, é
que ao final determina a avaliação da mente sobre a realização de sua
felicidade.
Aqui
há um divisor das águas, que as Ciências da Religião, em conjunção com as
doutrinas espirituais podem esclarecer: qual o projeto ou modelo de realização
que levaria o ser humano à felicidade? Num nível superficial, a felicidade que
se corre atrás tende a ser motivada, e por isso dirigida, quase sempre pelo
desejo ignorante, que se ilude vendo o que é impermanente como permanente e
satisfatório. Resultado: frustração, sofrimento e deslocamento da insatisfação
para um novo objeto ilusório. Câmera, luz, ação!
Motivação
é sinônimo de intenção, palavra que vem do latim in-tendere, ou seja, para onde tendem nossas ações? E as ações não
apenas do corpo, mas da fala e do pensamento. Mas será que os seres humanos
estão sendo educados para examinarem os conteúdos das motivações/intenções de
suas ações do corpo, fala e pensamento? Essas intenções, que no Budismo são
referidas como cetana, na maioria das
vezes brotam do fundo do inconsciente da mente, sem que se dê conta deste
emergir, que impulsiona as ações. Tem-se a ilusão de que se está agindo
“livremente”, mas de fato, somos “agidos” por impulsos inconscientes. E o mais
grave: impulsos inconscientes cujos conteúdos na maioria das vezes são as
impurezas da cobiça, da aversão (dos pequenos ressentimentos aos ódios violentos)
e da ignorância.
“Vigiai
e orai”! Nestas duas curtas palavras, proferidas pelo Cristo como diretrizes,
estão contidas verdades espirituais de vasto significado e fruto. Comecemos com
o “vigiar”. Se a intenção de nossas ações é o que determina a qualidade dos
frutos que experimentaremos, e se ela provém quase sempre do fundo do inconsciente,
é preciso desenvolver a educação do “vigiar” a porta por onde a intenção
provém. Mas quem vai fazer o papel do vigilante? Aqui entra em ação o Intelecto.
Mas o que é o “intelecto”?
Certa
vez um professor de Teologia cristã me pediu que elaborasse essa noção, pois
tinha certa dificuldade em explicá-la aos seus alunos, em virtude do fato de
que não havia conseguido encontrar na teologia católica uma definição do
Intelecto. E que ele procurava definir, de modo simplificado para os alunos,
que Deus ao criar o Homem, colocara seu hálito no homem. Este hálito seria a
inteligência, a porção de Deus, o intelecto. E quando o homem ativa esse
intelecto, nada mais é que a porção de Deus que conhece a si mesmo, a intuição
intelectiva que é imediata. Ao final, me perguntava que correção eu faria a
esta explicação.
Quando
surge uma pergunta, ao invés de corrermos atrás da resposta (eis de novo o
corre-corre impulsivo da mente), pode ser mais frutífero examinarmos, em
primeiro lugar, a operação mental que está ocorrendo. É a razão querendo uma
definição para aquilo que escapa de seu campo. Definir é dar um fim, é fechar,
aprisionar num contorno definitivo, algo que é muito sutil: o intelecto. E o
que é sutil, o que é uma qualidade eminentemente divina, não é definível.
Podemos no máximo oferecer apoios, upayas,
que ajudem a intuição a emergir. Por isso relaxemos a ansiedade da definição na
mente.
Tomemos
como apoio o símbolo da Roda, tão importante em muitas tradições, como o
Hinduísmo e o Budismo.
Quem
está em um ponto de um raio do círculo, vê as coisas segundo uma perspectiva;
quem está em outro vê de outro ângulo. Como se diz, todo ponto de vista é uma
vista, vista de um ponto. Portanto, sempre relativo, parcial e sujeito a
falhas, distorções, preferências. Em outras palavras, a razão, ratio, proporção, lida com a distinção,
a dualidade, a diversidade. Vê as coisas de modo fragmentado. A razão é apenas uma
das faculdades mentais cognitivas. A razão opera no plano da dualidade, que
busca uma síntese, que por ser parcial, reabre nova dualidade, no movimento
dialético de superações. Mas pelo pensamento, nunca se chega ao conhecimento
supremo, em virtude desse caráter limitado do pensamento. Retomando o sentido
do “vigiar”, a reflexão sobre nossas intenções tem sua função, mas ela se dá “a
partir” do que já foi desencadeado, quase que a posteriori. Há de haver um
significado mais profundo, e mais eficaz, portanto, do “vigiar”.
Voltemos
ao apoio do simbolismo da Roda. Quem está no Centro da Roda vê todos os raios
simultaneamente, pois todos os raios têm seu fundamento nesse centro, é dele
que os raios partem. O Intelecto, em seu sentido mais profundo, é essa
qualidade central da Sabedoria “que tudo vê”. Enquanto a razão é uma operação
cognitiva secundária, o intelecto - que aqui pode ser tomado como sinônimo de
Sabedoria, intuição que capta unitivamente o que a razão compreende
distintivamente - se aloja na Centralidade e capta a unidade, a síntese. No
Budismo, é a Plena Atenção (sati) que
é o principal fator mental para a Sabedoria (pañña). A plena atenção vigia, mas aqui vigiar não é apenas estar
atento ao que surge na mente, mas desenvolver a sabedoria de investigar os
conteúdos que surgem, e se forem carregados de cobiça, ódio e ignorância,
erradicá-los pela compreensão e desapego. Este é o significado que une as
tradições: o caminho da realização espiritual é, em última instância, o da
renúncia. Mas o significado mais profundo da renúncia é o da renúncia a estas
impurezas que contaminam e dirigem a mente para a ilusão. Como dizia o Cristo,
se o olho engana, melhor arrancá-lo que se perder por ele.
O
caminho do Conhecimento deve partir do reconhecimento daquilo que confere a
nós, seres humanos, um tesouro valiosíssimo: a inteligência, o Intelecto. Mas
esta verdade não é nossa, no sentido de uma qualidade criada por nós, ou da
qual sejamos “donos”. O intelecto é de origem transcendente, provém do
Absoluto, está em todo lugar, no Cosmos e Supra-Cosmos. Mas também podemos
dizer, com a devida cautela, que a inteligência é “nossa”, se entendermos com
isso que usufruímos desta qualidade, que nos diferencia das outras espécies, em
virtude da plenitude de nossa possibilidade participativa na inteligência. A
inteligência ou o Intelecto utiliza do foco da luz que ilumina a nossa câmera
para dirigir de modo sábio nossas intenções, que por sua vez dirigem nossas
ações do corpo, da fala e da mente.
Podemos
utilizar as Escrituras sagradas como de grande ajuda no lapidar de nossa mente.
As Tradições têm um corpo teórico vasto, ao qual os homens podem recorrer,
desde que utilizado sob orientação correta, e compreendendo as diferenças de
ângulos que cada Tradição tem com relação aos suportes do Caminho. Escrituras,
imagens, sons, símbolos, a Natureza, nosso corpo e mente, são apoios para o
trabalho do Intelecto.
Segundo
a metafísica das tradições teístas, o Intelecto (Intellectus ou Nous),
ou Espírito (Spiritus ou Pneuma), é o elo intermediário que liga o
homem ao Transcendente, à Realidade Suprema. O Intelecto, embora “criado”,
seria supraformal e universal, enquanto o mundo psíquico pertence ao domínio
formal e individual. O Intelecto ou Espírito seria a “face” criada do Logos,
enquanto sua “face” incriada seria o Ser. O Intelecto pertenceria ao reino
“angélico”, o domínio dos arquétipos platônicos. É graças ao Intelecto que o
homem pode ter o sentido do Absoluto, comunicar-se com o Divino[1]. Poderíamos
dizer que é graças ao Intelecto que o homem pode ver e purificar sua mente das
impurezas da cobiça, ódio e delusão, e com isso alcançar sua realização espiritual.
É através da via do conhecimento, a via efetiva que traz os frutos em si mesmo,
que se alcança a definitiva libertação da delusão e do sofrimento.
Segundo
a metafísica hindu, explicitado mais especificamente no Samkhya (um dos seis pontos de vista dos Veda), a existência fenomênica se desdobra em uma série de
princípios (tattwas), pelos quais os
vários graus da manifestação universal são compostos. O primeiro deles é Buddhi, o intelecto superior, como um
raio luminoso proveniente de Sol espiritual e iluminando na sua integralidade o
estado individual e o ligando aos outros estados do Ser[2].
Numa
perspectiva budista, encontramos uma formulação apontando que “Buddhi, em sânscrito, significa o
intelecto puro, a mente que está livre da influência condicionada das emoções, de
forma que nela não se constróem observações nem deduções tendenciosas ou
preconceituosas. (...) Buddha, o Desperto, foi alguém que libertou sua
faculdade intelectual de todas as distorções, levando-a ao maior grau de
clareza possível. A partir disso Ele conseguiu desenvolver uma atenção aguçada
e um insight penetrante sobre como o
corpo e a mente funcionam juntos”.[3].
A
palavra Intelecto quer dizer “inter-legere”, “ler entre”. Ler a verdade da
efemeridade e ilusão dos fenômenos do corpo e da mente, por entre as distorções
da percepção condicionada. Perpassá-las rumo ao Absoluto, o Incondicionado, a
suprema realidade transcendente, que está sempre aqui e agora, mas ignorada,
porque coberta da delusão sobre a verdadeira natureza do mundo, que oculta a presença
cintilante do Absoluto. O Intelecto seria aquilo que na simbologia hindu é o terceiro
olho de Shiva, o Centro do que os dois olhos seriam como a dualidade, os pratos
da balança que fazem os jogos dos pesos e contrapesos, e que caracterizam a
ação da razão e do pensamento.
Nesses
termos, o Intelecto é principial em
relação ao pensamento. O termo “principial”, utilizado por René Guénon (cuja
obra ainda é pouco conhecida no Ocidente) para designar a ordem dos princípios,
significa, neste contexto, que o pensamento é uma faculdade mental derivativa
do Intelecto, portanto secundária e menos eficiente que seu princípio fundante,
o Intelecto. Por isso, enquanto a figura do homem intelectual é vista na
modernidade como sinônimo de pensador, na perspectiva espiritual o real homem
intelectual é aquele cujo intelecto adentra pelos domínios da transcendência,
realizando e purificando o conhecimento desses domínios (que estão dentro de
si), até alcançar a Realidade Suprema, o Centro. Em outras palavras, o homem
intelectual é aquele que realiza o conhecimento pela meditação, pois, para o
desenvolvimento da centralidade, a meditação é a base por excelência da prática
espiritual.
Mas
qual a relação entre a meditação e o intelecto? Duas qualidades são
necessárias: a concentração e a plena atenção, sabedoria.
A
concentração traz o foco da energia mental para os objetos que surgem na mente
(desejos, raivas, medos, pensamentos, distrações). As distrações são como o
lodo do lago. Para que a água se mostre em sua natureza límpida, é preciso que
as turbulências das águas do lago diminuam até cessar, e com isso as impurezas
da água se assentem no fundo. Poderíamos talvez tomar a prática do “orai” como
uma forma de concentração, de se manter a mente focada no objeto da oração, evitando
que se torne cativa dos apelos dos sentidos, e o “vigiai” como a qualidade do
Intelecto que sàbiamente “tudo vê” o que se passa interiormente, operando a
purificação da mente. A concentração dá o poder da luz da câmera para que a
sabedoria veja de forma ampliada o que está surgindo lá do fundo da mente. Mas
plena atenção e concentração operam conjuntamente: não há concentração sem
sabedoria, não há sabedoria sem concentração, diz um dos versos do Dhammapada, um dos ensinamentos do
Buddha. Anàlogamente, “vigiar e orar” poderia, na perspectiva da tradição
cristã, ser visto como práticas interdependentes e complementares de sabedoria
e concentração.
Nesta
ótica, não significa, entretanto, que o pensamento deva ser desconsiderado,
pois isto conduziria, com tem conduzido em muitos casos na sociedade
contemporânea, ao culto do infraracionalismo, sinônimo de irracionalismo,
desestruturação da mente e destruição da ética. O pensamento tem o seu nível de
realidade, eficácia e momento. Mas a reflexão necessitaria também de uma
educação espiritual que a conduzisse ao pensamento correto. No Budismo, o
pensamento correto é o segundo fator do Nobre Óctuplo Caminho, os oito
treinamentos para a superação do sofrimento. Neste contexto, trata-se de
cultivar o pensamento que se baseie na verdade da impermanência e da
efemeridade da existência, portanto, conduzindo à compaixão e ao amor (os opostos
do ódio, crueldade e frieza para com o sofrimento alheio), à generosidade (o
oposto da cobiça e apego) e à renúncia (o oposto do apego à suposição
equivocada de que o “eu” e “meu”, o ego, sejam realidades substanciais e
eternas). “Quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo”, ensina o Cristo.
Se
compreendermos que o caminho da purificação rumo ao Absoluto é a maravilha das
maravilhas, podemos afirmar que o caminho é uma experiência mítica! Com a
vulgarização de nossos tempos, o termo mito
foi muitas vezes traduzido como “fábula, ficção, ilusão”. Mas este não é o
seu sentido verdadeiro, como bem demonstrado por estudiosos das mitologias,
como Mircea Eliade, René Guénon, Joseph Campbell, e muitos outros
pesquisadores. O caminho de realização espiritual é um caminho mítico. Por isso
parece tão difícil ao Ocidente, dominado pelo racionalismo, afastado da
compreensão e vivência do caminho mítico.
Se
olharmos com mais profundidade o caminho dos fundadores das Tradições
espirituais, veremos neles os passos de explicitação de um caminho mítico, em
que cada passo, ato e palavra são carregados de verdades, muitas vezes na forma
de símbolos que fundamentam os mitos e ritos daquela Tradição. Mas como se lê,
por exemplo, o Novo Testamento? A vida de Cristo, em cada momento, é vista
apenas como uma vida histórica e individual, com ensinamentos em forma de
parábolas? Ou como penetração da
Eternidade no tempo, em que cada passo do caminho do Cristo é o resgate da
Criação para dentro da Refulgência dos arquétipos divinos?
A
vida dos fundadores das Religiões é um mythos
que serve de paradigma-espelho, no qual cada postulante se vê, revê e se
orienta. Cada passagem da vida dos fundadores míticos é um símbolo que alimenta
o intelecto em seu trilhar analógico. O caminho mítico. Como a flor de lótus,
que emerge do lodo e atravessa as águas barrentas da existência samsárica, sem
ser manchada por elas. Até alcançar o desabrochar, realização que se abre como
pétalas da flor radiante.
Os
fundadores míticos são os arquétipos do Herói, em sua realização mítica da
jornada da destruição de avidya, a ignorância.
Hoje em dia se cultuam heróis do automobilismo, do esporte, do cinema, que às
vezes até podem relembrar em seus atos algo superior, mas os Heróis-Eros que
traçam para muitos o caminho de realização espiritual, o caminho mítico,
quantos os imitam?
Para onde se voltam nossas câmeras, luzes, ações?
BIBLIOGRAFIA
CAMPBELL, Joseph. A jornada do herói. São Paulo: Agora,
2003.
_________________ O Poder do Mito. São Paulo: Palas
Athena, 2005.
_________________ O Herói de Mil Faces. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 2008.
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Martins Fontes, 2001.
GUÉNON,
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______________ Os Símbolos da Ciência Sagrada. São Paulo: Ed.
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______________ A travessia buddhista da vida e da
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______________ O lugar do Homem nas doutrinas tradicionais. Revista UNICLAR, ano IX, no. 1. São
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STODDART,
William. Outline of Buddhism. Oakton:
The Foundation for Traditional Studies, 1998.
YOGAVACARA RAHULA, Bhikkhu. Superando a Ilusão do Eu. Um Guia de Meditação Vipassanā. São Paulo: Edições Casa de Dharma, 2006.
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POR QUE AS MUDANÇAS NOS ASSUSTAM?
Arthur Shaker - Casa de Dharma
Todos nós seres humanos queremos a felicidade, e lutamos para escapar do sofrimento. Temos projetos para nossa vida, compromissos com as nossas famílias, contas a pagar, sonhos a realizar. Tudo isso está dentro do mundo E este mundo vive atualmente um processo de grandes mudanças. E rápidas, e muito exigentes.
Os jornais falam em crises e obstáculos para suas superações. À todo momento a globalização redefine o mapa do mundo, dos investimentos, das megafusões. A cada redefinição, o temor da perda de emprego, do status, o rebaixamento de salário, incertezas sobre os novos esquemas e relacionamentos de trabalho. As inseguranças agitam e inquietam a mente humana. Ansiedade, tensão, estresse.
No vórtice desse processo, a mídia lança o imperativo que abrange também os trabalhadores de alta qualificação, executivos, gerentes: Atualizar-se, se informar, aprender novos métodos, novas tecnologias, estar ao par de tudo.
Mudanças aceleradas, pressões, novas mudanças. Ousar, ser criativo, eficiente. Mudanças, mudanças, mudanças, ou seremos postos à margem da vida social e econômica. O desafio está colocado. Para examiná-lo, precisamos nos fazer algumas perguntas, cujas respostas nos ajudem a direcionar as ações que sejam propícias para suas soluções.
Quais são as mudanças que nos são exigidas? Em que áreas de nossa vida: profissional-financeira? Físico-afetiva? Familiar? Psíquica? E como fazê-las? Quais habilidades são exigidas a cada redefinição? Ainda mais: qual o limite de nossa capacidade humana de mudar nossos padrões nas várias áreas de nossa vida, e numa velocidade cada vez mais acelerada? Qual o custo físico e psíquico desse esforço? Todos suportam esse mesmo esforço exigido? E aqueles que não suportam, carregarão perante seus familiares, ambientes de trabalho e amizade, o estigma de “incapazes, lerdos, fracassados”? E o que é mais dramático, como se verão diante de si mesmos?
E por último: onde fica a nossa condição humana nisso tudo? Essa pergunta nos remete diretamente a outra mais sutil e profunda: o que somos nós seres humanos, quais são nossas necessidades? E esta pergunta nos remete a uma ainda mais profunda: qual o propósito, o significado do viver humano?
Há dois mil e quinhentos anos atrás, na Índia, o príncipe Sidhartha Gautama, aquele que se tornará o Buddha Shakyamuni, fez a si mesmo as mesmas perguntas: onde está a felicidade, de onde vem o sofrimento?
Dois milênios e meio se passaram. Hoje temos mais recursos materiais, maiores comodidades foram conquistadas pelo progresso tecnológico: aviões, automóveis, computadores, celulares, medicina, informação, aumento da expectativa de vida e muitas outras coisas úteis ao nosso conforto, recursos que aliviam em certa medida nosso sofrimento.
Com o avanço dos recursos materiais, poderíamos esperar que o ser humano trabalharia menos, e com isso ganharia mais tempo para seu lazer, sua vida familiar, sua vida criativa. Isto estaria acontecendo? Pois o que se ouve são queixas de que se têm cada vez menos tempo para o lazer, a vida familiar, a vida criativa, e que as pessoas se sentem inseguras, solitárias, com medo de perder o emprego, de se tornarem obsoletas, sob crescente pressão das mudanças para situações desconhecidas. Porque tantas notícias sobre o aumento da depressão, enfarte, divórcios, obesidade, colesterol?
Comecemos com o que nos é mais próximo: a funcionalidade que se espera que tenhamos em nossa área profissional, pois esta área gerencia nossa sobrevivência material.
A funcionalidade profissional é como um braço de um corpo. Sua função é prover nossas necessidades materiais básicas, mas não apenas isto: prover também o desenvolvimento de nossas habilidades, que se ligam ao nosso senso de auto-realização. Mas se entramos numa academia e passamos todo o tempo fortalecendo apenas nossos braços, o que acontecerá? Uma atrofia das outras partes do corpo, e o desequilíbrio geral.
Na analogia da funcionalidade dos membros de ume corpo, não é só um corpo físico que está em questão, mas nossa vida psíquica-emocional, os pulmões e cérebro deste corpo complexo que é ser humano. Como podemos, usando os desafios colocados para nossas atualizações profissionais, tomá-los como alavancas para refletirmos sobre nossos projetos e padrões condicionados com que direcionamos as ações de nossas vidas? Isso não nos ajudaria a traçar quais mudanças escolheremos, em que proporções, e quais teremos de aceitar por força das contingências?
Mas há um outro lado que nos envolve: não somos apenas aqueles que sofrem as mudanças. Somos co-responsáveis pelas mudanças cujas conseqüências caem também sobre nós. Temos de incluir isto também na reflexão de nossas vidas: as escolhas que nós – individualmente e ao nível da sociedade – fazemos, e as conseqüências dessas escolhas, não só para nós, mas também para muitos. Não podemos ignorar que há uma interdependência essencial entre todos os seres vivos.
Não será que estamos esquecendo o fato de que nossa condição humana não se restringe apenas à nossa dimensão material e psíquica-emocional? Talvez nosso modelo de felicidade tenha uma falha séria: o quanto estamos investindo no centro íntimo da nossa mente humana, a matriz espiritual mais profunda de nossa felicidade? Não precisaríamos rever o modelo de felicidade que cada um de nós está construindo para si mesmo?
Lembremos que um dia, tudo que nos é querido será deixado para trás. E nesse momento, o que teremos ao nosso favor será o que tivermos construído globalmente durante nossa vida. Por isso, não precisaríamos aprofundar nossa compreensão sobre a interdependência entre nossa funcionalidade profissional e as outras funcionalidades que constituem nossa condição humana? Isso não nos ajudaria a pensar em fazer das mudanças uma ocasião para ir além delas, para uma transformação interior gradual que construa um modelo de felicidade mais profundo e inclusive mais hábil diante das mudanças? Pois não será que parte de nossas dificuldades com as mudanças têm a ver com nossos apegos e padrões condicionados com que nos colocamos no mundo?
Para o cultivo de nossas funcionalidades, uma mente mais concentrada e apaziguada não nos ajudaria a lidar com nosso ambiente de trabalho de constante mutação e competição feroz? Nesse sentido, como a meditação da tranquilização e do desenvolvimento da sabedoria, realizada e ensinada pelo Buddha nos ajudaria a lidar com nossas várias dimensões humanas, e a atravessar com harmonia essa vida finita?
Esses são alguns pontos que temos de amadurecer em nossa compreensão e prática. A meditação da tranquilização e do desenvolvimento da sabedoria, que chegou ao Ocidente inicialmente restrita aos grupos de interesse espiritualista, está aos poucos ganhando espaço de reconhecimento pela medicina como um dos mais respeitados recursos terapêuticos: “O que tem se visto, de acordo com as numerosas pesquisas científicas a respeito da técnica, é que a meditação se firma cada vez mais como uma espécie de remédio – acessível e sem efeitos colaterais – indicado para um leque já amplo de enfermidades: da depressão ao controle da dor, da artrite reumatóide aos efeitos colaterais do câncer” (Isto É, p. 70, ano 34, no. 2102. SP: Três Editorial, fev/2010).
Nomes de centros médicos como o Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, Clínica Mayo, Centro Médico da Universidade de Massachusetts, (EUA), SUS (Política de Práticas Integrativas e Complementares, Ministério da Saúde), Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, Hospital Albert Einstein (Brasil), bem como de centros de pesquisa como o Centro de Estudos do Envelhecimento da Universidade Federal de São Paulo, Universidade de Brasília, Universidade da Califórnia, Universidade George Mason, Instituto de Psiquiatria do Columbia-Presbyterian Medical Center, Universidade da Carolina do Norte, Universidade de Wisconsin (EUA), Universidade de Exeter (Inglaterra), têm dedicado pesquisas e implementações da técnica da meditação para o lide de muitos males psíquicos e corporais do mundo contemporâneo. E certamente, esta prática saudável deverá aos poucos ganhar espaço no campo também das empresas e seus funcionários, propiciando o incremento de uma qualidade de sabedoria e harmonia interna, beneficiando a todos.
Se esses benefícios já são reconhecidos no campo científico moderno, é importante frisar que a meditação da tranquilização e do desenvolvimento da sabedoria, realizada e ensinada pelo Buddha, têm um propósito que, incorporando essas melhorias psíquicas e físicas, vai para mais além disto: oferece a elevada possibilidade da total erradicação do sofrimento na mente humana, gerado pela cobiça, ódio e delusão. Liberada a mente pela purificação, realiza-se o Nibbana, a suprema felicidade.
Este texto aqui apresentado é uma reelaboração expandida do texto de apoio da palestra “Mudanças” organizada e realizada em 25 de novembro de 2009 pela Universo Qualidade, no auditório do Hotel Renaissance (foto acima), São Paulo.