quarta-feira, 24 de agosto de 2011




Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), Neurociências e Saúde


a Memória e a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness)

Zlatica Defarias*


Dedicado ao Dr. Veriano Alexandre, CIREP/USP, Ribeirão Preto.
E a todos aqueles que estão em busca das memórias.


“Evocando as lembranças (e o passado), adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco de poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida”. Gaston Bachelar

Os significados e as funções da memória são construções que nos tem fascinado há anos. Após uma encefalite virótica, em consequência de uma contaminação pelo “aedes aegypti” (dengue), nos levando a experienciar uma “perda” da memória de longa duração (“dura de duas horas, dias ou anos, garantindo o registro do passado autobiográfico e dos conhecimentos do indivíduo, Lent, 2.005) e a privação dos significados do passado autobiográfico por dias, pudemos nos aproximar da poética de Clarice Lispector (1.976) no “Sou composta por urgências: me entupo de ausências, me esvazio de excessos”. Também, nos tornamos próximos do que pesquisadores como Bergson afirmaram há décadas, especialmente no que se refere à ilusão de que só temos uma identidade porque nos lembramos.

E com a gradual progressão em que nossas memórias de longa duração iam sendo resgatadas, pudemos experienciar o que Rosenfield (1.994) concluiu quanto a “nós não nos apoiamos em imagens fixas, mas em recriações - imaginações – pelas quais o passado é remodelado em formas apropriadas para o presente”. O leitor pode reproduzir o quanto de “criações de significados” tivemos que “recriar” para que pudéssemos ter “nossas memórias”? O quanto tivemos que “compor” a partir de representações não advindas das reminiscências de funções corporais, sensações, emoções, percepções, formações mentais (imagens, pensamentos, memórias, etc) e consciências originárias de cada contato corporal e mental que tivemos em nossa história pregressa (com nossos conhecimentos e idéias) e fixadas em uma área cerebral que apresentava algumas disfunções? Mas “compor” a partir de dados não relacionados a essas reminiscências que estariam localizados em outras “redes neurais”? E aproximando-se de pesquisadores como Ledoux, pode se responder, como o fizemos por inúmeras vezes, se deixamos de ser quem somos se perdemos nossa “assinatura neural”?

Pesquisando a etimologia de memória, essa origina-se inicialmente do grego “mnemis”, que dava à esta faculdade da aquisição, consolidação e evocação dos contatos que o corpo e/ou a mente fizessem com algum objeto externo ou interno um halo de divindade, pois referia-se à Deusa Mnemosyne, Mãe das Musas que protegem a história. A significamos, então, como “a capacidade de protegermos nossas estórias e história, as estórias e história do outro, as estórias e história do mundo, e as estórias e história do que vai para além do mundo”. Ou como nos leva a uma inspiração poética Monteiro (2.006), “somos os narradores da história criada por nós, em nós e para nós”.

Posteriormente, no latim erudito, memória origina-se do prefixo “memor” (“a faculdade da memória”) e do genitivo “ôrîs/os” (“boca”). A significamos como “as reminiscências que surgem do corpo e da mente, e se fazem expressar pela boca”.

E nesse nosso tratar de descobrir significados de memória, ainda nos foi possível o surpreender com a etimologia de “recordar”. Originando-se do prefixo “re” (“repetição, retorno”) e do radical “cordis/cor” (“aprender, saber”/“coração”), e tendo sido o coração também considerado como a sede da memória no mundo antigo, vindo posteriormente a ser também a sede das emoções, significamos memória como “as reminiscências que surgem da linguagem do coração”.

Mas e o processo da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness), o que sua prática por anos na construção da concentração nos possibilitou nessas semanas e nas fases seguintes a essas?

Fazendo parte de uma das práticas de cultura mental propostas pelo modelo de Psicologia Abhidhamma (modelo teórico, metodológico e técnico cujos tratados filosóficos e psicológicos antigos conhecidos como Abhidhamma/Abhidharma foram compilados desde o séc. V a.C.), a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness) consiste de uma prática da atenção e da observação direta dos processos corporais e mentais. Ainda pouco conhecida em nossas terras, fundamenta-se inicialmente no desenvolvimento da concentração (samatha, “o estado mental de se estar firmemente fixado”). “A concentração pode ser definida como aquela faculdade da mente na qual o focamento em um objeto se dá sem interrupção e numa experienciação a mais próxima das consciências advindas do corpo e da mente, enquanto essas se dão” (Gunaratana, 1.995). Após o desenvolvimento da concentração, a ponto da consciência focalizar-se em um único processo corporal (atenção sensorial ou percepção seletiva) ou mental (atenção mental ou cognição seletiva), passa-se ao desenvolvimento da concentração e da plena atenção simultaneamente (vipassana, “a visão clara”; ver claramente, distintamente, diretamente todos os processos que venham a se dar no corpo e na mente), o que nos possibilita a plena atenção não enquanto o resultado de uma mera compreensão intelectual, mas a observação direta de todo e qualquer fenômeno que se dá em nosso próprio corpo e mente. Como Shaker colocou:

“Mindfulness, a meditação da plena atenção e do insight, consiste no treinamento da faculdade mental da atenção, desenvolvendo-a pela prática da observação direta das experiências internas do corpo e da mente de maneira completamente consciente e sem julgamentos. Este treinamento, que envolve igualmente o desenvolvimento da faculdade mental da concentração, permite que a pessoa se posicione à certa distância dos enredos das formações mentais, observando momento a momento o corpo (em seus vários ângulos – como a respiração, batimentos cardíacos, sensações, etc.) e os pensamentos espontâneos do cérebro/mente” (2.010).

Para tal treinamento e desenvolvimento, utilizamos por anos a técnica da “Meditação da Plena Atenção na Respiração” (ânâpânasati, “plena atenção na inspiração e na expiração”). Através da plena atenção a cada inspiração e expiração, é possível observarmos e investigarmos o corpo e a mente. Como afirmou Buddhadâsa Bhikkhu (1.988):

“Quais são os objetos de contemplação apropriados, corretos e necessários a cada instante enquanto inspiramos e expiramos? Aqui são quatro os objetos de contemplação apropriados: os segredos de ‘kâya’ (o corpo), os segredos de ‘vedana’ (as sensações/emoções), os segredos de ‘citta’ (a mente), e os segredos de ‘dhamma’ (a natureza fundamental das coisas). Porque esses quatro objetos já existem dentro de nós e são as raízes de todas as dificuldades e problemas, podemos, então, utilizá-los mais do que a qualquer outro objeto para treinarmos e desenvolvermos a mente”.

Desde iniciarmos tal prática, percebemos o fundamental significado e função da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness). Com o gradual desenvolvimento da habilidade de sustentarmos a plena atenção em nossas percepções, de sua originação até sua supressão, nos é possível o desenvolvimento da compreensão dos fenômenos corporais e mentais. É possível, desde seus desencadeamentos a partir das impressões visuais, auditivas, olfativas, gustativas, táteis e mentais, até as consciências de cada estado experienciado pelo corpo e pela mente, percebermos cada vez mais esses processos.

E qual não foi nossa surpresa, assim que a função da memória remota foi sendo recuperada, ao percebermos o papel da plena atenção nos vários processos que experienciávamos.

Por termos alguns treinamentos da habilidade da percepção e do processamento consciente e inconsciente de estados corporais e mentais, percebemos o quanto a plena atenção nos possibilitou condições para que o armazenamento das informações que eram assimiladas através dos sentidos pudesse se dar. É como se o mosaico das percepções que compõem a memória pudesse ser criado não apenas pelas impressões que o corpo e a mente experienciavam a partir do contato com algum objeto externo e/ou interno. A possibilidade da observação direta de algumas das funções corporais, das sensações, das emoções, das percepções, das formações que provem da mente e das consciências, enquanto as experienciávamos, também participava da construção da memória remota. E quanto mais sustentávamos a plena atenção nesses processos, percebemos como maior eram nossos mecanismos de armazenamento de longo prazo. Pudemos nos aproximar de Kandel (2.000), neurocientista que estava em evidência em nossa terra quando do início dessas nossas experienciações, em “o mapa da memória só se mantém estável quando há atenção”.

O leitor já pôde observar como se dão suas percepções do corpo e da mente? Pôde observar o quanto somos “passivos” em nossas percepções? O quanto nossa “plena atenção”, a qual deveria ser uma das condições essenciais a toda e qualquer percepção, não passa de uma atenção a algumas impressões que o corpo e a mente experienciam após cada contato com um objeto externo ou interno? Pôde perceber o quanto somos “relatos parciais de memórias”, como nos aponta Sperling? Ou seja, o quão pouco nossas memórias são constituídas da plena atenção aos nossos processos corporais e mentais? E numa tentativa de tornar poética nossa fala, o quanto somos “cegos de atenção”?

Algumas são as pesquisas e trabalhos desenvolvidos sobre os processos cerebrais produzidos pela Meditação da Plena Atenção (Mindfulness). Em especial, quanto ao aumento da densidade hipocampal (Frewen, P.) e das áreas associadas com a atenção (Brefczynski, L.), e as respostas do córtex pré-frontal (Cheng, R.) e áreas cinguladas (Corrigan, F. M. e Holzel, B.).

Tendo como experienciação a “neuroplasticidade” (a propriedade de “plasticidade” do sistema nervoso – a interrelação existente entre várias regiões cerebrais e o potencial de áreas remanescentes assumirem o controle quando uma região específica for comprometida) e a sua possibilidade de “criação” e de “recriação” a partir das conexões sinápticas, que estudos e pesquisas como o papel ativo da Meditação da Plena Atenção (Mindfulness) na intensificação dos vários mecanismos de armazenamento da memória possam ser um dos objetos de nossa “plena atenção”. E o começo... Experienciar a Meditação da Plena Atenção (Mindfulness).


Referências Bibliográficas

BUDDHADÂSA BHIKKHU . “Mindfulness with Breathing: A Manual for Serious Beginners” Boston: Wisdom Publications, 1.997.
“Dicionário Etimológico Nova Fronteira”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.986.
GUNARATANA, Venerable Henepola. “Mindfulness in Plain English”. Boston: Wisdom Publications, 1.995.
KENDAL, Eric. “Em Busca da Memória”. São Paulo: Companhia das Letras, 2.002.
LENT, R. “Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência”. São Paulo: Atheneu, 2.005.
MONTEIRO, Pedro. “A Mente e o Significado da Vida”. Belo Horizonte: Gutemberg, 2.006.
NYANATILOKA. “Buddhist Dictionary: Manual oh Buddhist Terms and Doctrines”. Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1.994.
ROSENFIELD, Israel. “A Invenção da Memória: Uma Nova Visão do Cérebro . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1.994.
SHAKER, Arthur. “A Travessia Buddhista da Vida e da Morte: Introdução a uma Antropologia Espiritual”. Rio de Janeiro: Gryphus, 2.003.






*Psicoterapeuta com Especialização em Psicoterapia Clínica do Adulto e do Casal.
Formação em Coreoterapia – terapia do movimento e da dança; Análise

Junguiana e Arteterapia Símbólica; Terapia do Casal; Terapia Familiar.
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