EDUCAÇÃO





O um e o outro nas religiões:
tradições indígenas, educação e alteridade (1)

Arthur Shaker



Antigamente o nosso povo, nossos avós viviam no escuro. Naquele tempo não existia o céu, nem o dia, era tudo escuro. Era escuro mesmo, era noite. O tempo todo escuro. Não havia fogo também. (2).

Assim se inicia o mito Xavante sobre os tempos da escuridão. Noite, escuridão. A noite tem muitas escuridões, algumas visíveis, outras invisíveis. Não havia fogo também. Tempos difíceis, antigamente.

Não tinha comida. As mulheres coletavam coró, as larvas grandes, wede wai’u, e também pau seco, podre. Era uma colheita que elas faziam para alimentar. Povo antigo não tinha nada, nada, nada, nada. Para se alimentar tinha de procurar aqueles paus podres. Povo antigo se alimentava com isso. Sofria de fome, vivia só com coró e pau podre. Coró tem muita gordura, o bicho é muito gordo e gostoso. O povo antigo comia coró cru, não tinha fogo, era escuro, não tinha nada.

Assim prossegue o mito. No escuro, os homens. No escuro, não conseguimos ver nosso rosto, não conseguimos construir algo que seja nossa auto-imagem. Talvez nem tenhamos sequer a idéia de que haveria algo chamado rosto, ou auto-imagem. Apenas nosso tato, talvez nos desse apenas certas impressões dos objetos.

A noite tem muitas escuridões. Na escuridão sem rosto, aqueles homens e mulheres sabiam que não estavam sós. Havia homens e mulheres, coletando. Homens e mulheres, sem rosto, mas havia vozes, algum senso de individualidade. Eu e o outro, os outros.

Mas, como entender o que seja “o eu e o outro”? A pergunta parece tola, alguém diria: “é simples, eu sou eu e o outro é um outro ser que não sou eu, um ser diferente de mim”. Mas será a pergunta tão tola assim, ou tomamos por óbvio o que ignoramos? A pergunta se recoloca: de onde provém a diferença? Como entender o igual a mim e o diferente de mim? Subjacente a isso, está a questão do “mesmo e do outro”, ou dito em outros termos, a identidade e a alteridade. Nos vemos como uma individualidade, diante de outras individualidades, mas raramente nos perguntamos: o que é esta individualidade com que nos identificamos? Qual sua natureza? Como ela se relaciona às outras individualidades?

Vamos prosseguir pelo mito:

O céu já existia, mas era uma parte só, não era inteiro. Era como uma onda da água do rio, levantando só de um lado. Era pouco. Desse lado do höiwarã sudu (poente) não tinha nada ainda, era pouco ainda. Em volta não tinha nada, era só espaço. O céu está sendo criado, era baixo.

O céu está sendo criado, diz o mito. Os mitos cosmogônicos falam de uma Ontologia do Espaço e dos seres viventes. Isto significa a ipseidade e a alteridade. Na Matemática moderna, aprendemos que o um é metade do dois. Mas na Matemática tradicional, como a Pitagórica, o dois é metade do um (3). Ou, na linguagem da Metafísica, o Dois nasce da polarização do Um, não o um numérico quantitativo, mas a Unidade primordial, o Ser (princípio dos seres). Para que o mundo se manifeste, o Ser primordial se polariza e desta trama e urdidura se desenrola uma progressiva diferenciação que engendra os seres, processo que se baseia analogicamente naquele da formação dos números, do Um ao Dez, fundamento de toda Matemática tradicional:
Segundo a Kabala, o Absoluto, para se manifestar, se concentra em um ponto infinitamente luminoso, deixando as trevas em sua volta; esta luz dentro das trevas, este ponto dentro da extensão metafísica sem limites este nada que é tudo dentro de um tudo que é nada, se assim podemos expressar, é o Ser no seio do Não-Ser, a Perfeição ativa (Khien) dentro da Perfeição passiva (Khouen). O ponto luminoso é a Unidade, afirmação do zero metafísico, que é representado pela extensão ilimitada, imagem da infinita Possibilidade universal. A unidade, ao se afirmar, para se fazer o centro de onde emanarão como múltiplos raios as manifestações indefinidas do Ser, está unida ao Zero que a contém em princípio, no estado de não-manifestação, aqui já aparece em potencialidade o Denário,
que será o número perfeito, o desenvolvimento completo da Unidade primordial. (4)

Assim teria iniciado a abertura dos horizontes cosmológicos. Com a luz, a visão mais ampla da diferenciação, das alteridades. O céu era uma parte só. O sol e a lua já estavam lá. O sol já estava clareando o céu. Na mitologia Xavante, dois meninos se transformarão em sol e lua.

            A diferenciação abre o mundo das formas. Na penumbra, o olho descobre a forma, no espelho vê o rosto, a face. "Isto sou eu!" Começa a surgir o senso de identidade. Ela traz certo êxtase, como uma criança que se deleita em descobrir seu corpo, seu rosto. A auto-imagem. A palavra êxtase vem de ex-stare, "estar fora de si". O ser humano sai de dentro de si, ou para fora de si. Cosmologicamente, a diferenciação acarreta uma saída, e, portanto, certa perda da interioridade para a exterioridade. Então foram abertos os olhos de ambos (Adão e Eva), e reconheceram que estavam nus (...) (Gênesis, 3-7). O ser humano se vê em sua auto-imagem, como algo fora de si. O espelho e a exterioridade.

Conta a mitologia grega que Nêmesis, a deusa filha da noite, encarregada de exercer a vingança divina contra o orgulho humano, resolveu castigar Narciso, filho do deus-rio Cefiso e de uma Ninfa. Embora as Ninfas o perseguissem, enamoradas de sua beleza, Narciso desprezava o amor. “Um dia (Nêmesis) fez com que Narciso contemplasse o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, onde fora se refrescar. Insensível a tudo mais, ali ficou o moço, extasiado diante da beleza do rosto que via no fundo da água. E assim permaneceu até morrer. No lugar onde morreu brotou uma flor que se chamou narciso” (5).

A abertura não traz apenas alegrias, visões de espaço e beleza. Saindo da indiferenciação protetora da escuridão primordial, a forma se vê como identidade verdadeira. Crê no que lhe parece ser. "Isto sou eu!" Cobertos pelo véu de Maya - que faz as formas se esquecerem da verdade de sua origem na não-forma - os seres (as formas) se vêem diante de outras formas. No mito Xavante, a luz evidencia uma estranheza: o fechamento da abóbada celeste. A abertura traz sua outra face, temerosa: a prisão do Cosmos.


De repente surgiu algo subindo, aquela fumaça, igual fumaça. O início era como neblina, fumaça, hunhizé, subindo. Todos acharam: “Que coisa estranha que estava vindo!” Não estava bom para eles, não estavam achando bom isso. Eles não queriam que o céu se criasse. O céu estava começando a subir, e eles não gostaram, não estavam achando muito bom isso. Queriam que limpasse, não estava agradando isso. Então eles queriam derrubar, antes que o céu se desenvolvesse por inteiro. Queriam derrubar, derrubar, derrubar.

Estranheza, derrubar, derrubar. Alteridades. Espaços de ocupação, a ameaça trazida pela existência de outros. O espelho, rosto, forma, eu, diante... O Eu. “Que coisa estranha que estava vindo!”

O Eu, diante do Outro. E o paradoxo: para o outro, nós somos o outro.

Neste amplo campo ardiloso do eu e do outro, encontramos um desafio ainda mais exigente: quanto mais diferente for a cultura do outro, tanto maior o esforço necessário para sua compreensão, aceitação e relacionamento. Para a sociedade brasileira, as tradições indígenas são o outro mais distante dela.

Como vamos adentrar por este mundo do outro, indígena, muito distante da forma de viver e pensar de nossa sociedade ocidental moderna, e vê-lo não segundo os nossos olhos, mas a partir dos olhos dele, ao menos o mais próximo possível?

Para compreendermos o outro, necessitamos procurar nos despir de nossas pré-concepções com as quais tendemos a projetar nossa visão de mundo sobre o outro. Temos de abrir um espaço de acolhimento para a estranheza que o diferente nos coloca, talvez ele nos abra a percepção de uma dimensão de nós até então desconhecida, oculta. Esta é uma questão complexa e um grande desafio para o conhecimento e convivência. Quando nos aproximamos do universo indígena, chegamos com nossa bagagem de conceitos, quase sempre pré-conceitos. Meu trabalho com os povos indígenas, e mais especificamente junto com os velhos narradores Xavante, revela muitos desafios para o conhecimento de suas tradições, espiritualidade e cosmologias.

O primeiro grande desafio é o nosso olhar colonizador. A história da colonização
não se encerrou. Ainda tem muitos braços. Sutil e não menos violento, são os condicionamentos intelectivos da cultura ocidental introjetada em nosso olhar. Olhamos o mundo segundo os padrões cristalizados em nossa mente. Nesses padrões, a ignorância determina como efeito a aversão, ou o seu aparente oposto, o romantismo. O índio, o bom selvagem, pensava Rousseau. O deleite pelo exótico.

Uma primeira camada destes padrões ignorantes é aquela mais grosseira: índio é sujo, atrasado, primitivo, preguiçoso, retarda o progresso, tem muitas terras, é selvagem, e perigoso. Chegou-se a dizer que índio não tem alma, portanto a conversão catequética era um ato de misericórdia salvadora. Houve até um caso de um prefeito do interior do Brasil que editou um decreto proibindo a entrada de índios em “sua” cidade. Ou restaurantes que não servem refeições a índios, mesmo que estes tenham dinheiro para isto. Para não falar de outros temas como o relativo descuido para com a saúde indígena, a demarcação de suas terras, a cobiça dos grandes interesses pela madeira, minérios e recursos naturais no subsolo das Terras (reservas) indígenas.

Uma segunda camada é a da ignorância letrada. Um pesquisador mostrou um desses aspectos equivocados que tomamos como verdade. Muitos livros de História do Brasil nomeiam a progressiva história colonial como “Povoamento do Brasil”. Mas, mostra este pesquisador, isto poderia (e talvez até deveria) ser olhada por outro ângulo: considerando que havia de cinco a dez milhões de indígenas no início da colonização, e hoje temos cerca de quatrocentos a quinhentos mil, o termo correto seria a história colonial ser referida como “o período do despovoamento do Brasil”.

Pensadores como Sullivan mostram que muitos dos conceitos da ciência Antropológica, como mito, rito, religião, História, símbolo, cultura, povo, ideologia, sagrado, embora possam ser até certo ponto operativos para um primeiro apoio cognitivo do “outro indígena”, tendem a nublar nosso olhar diante da plena e criativa presença desse universo indígena. Esses termos são freqüentemente criados, ainda que inconscientemente, para evitar a presença esclarecedora dessas culturas na história (6). Os padrões de ignorância condicionada se tornam ainda mais limitantes quando se trata da complexa esfera de realidade do mundo mítico-religioso indígena, com seu alto grau de sutileza, em suas formas tão distintas do familiar religioso do mundo ocidental.


Dentre esses conceitos, talvez o mais problemático seja o de “religião, sagrado”. Não existe entre o povo Xavante a noção de uma esfera do “religioso” que o distinguisse do “não-religioso”. Quando falam no “religioso”, é para se referir aos missionários e, por extensão, ao Cristianismo. Não há para eles um “campo da religião”, em distinção de outras áreas da vida psíquica, social e simbólica, ao menos nos moldes com que se entende e se vivencia o religioso no mundo ocidental moderno, em que se associa o religioso às noções de culto, adoração e esfera da vida dirigida ao transcendente, já bastante desconexa das outras esferas da existência cotidiana. Os velhos acreditam e confiam em seus criadores míticos, “mas não vão chorar e rezar no pé deles”, o que não significa que eles não sintam certa “saudade” desse povo primordial com seus poderes, o que traduz o reconhecimento dos velhos sobre a sua Alteridade em relação aos seres primordiais, que é o fundamento da própria identidade Xavante (eles se autodenominam A’uwe, que significa “povo verdadeiro”).

Conceitos como “transcendente, imanente, religião, espiritual, natureza/sobrenatureza” precisam ser revistos à luz da própria visão indígena. É preciso procurarmos nos aproximar da compreensão do mundo indígena através da apreensão dos conceitos e significados com que eles mesmos, como agentes de sua cultura e História, se percebem a si mesmos. Conceitos com os quais eles se auto-referenciam, através dos quais eles compreendem seus fundamentos, suas origens, seus símbolos e paradigmas de ação no tempo e espaço. Nos conceitos próprios do mundo indígena estão as vias de acesso para a compreensão do conteúdo de seus universos míticos.

            Compreender e descolonizar nossa percepção e projeção de nossa ignorância sobre o outro, ainda mais se tratando do “outro indígena”, não é fácil. Exige um constante trabalho de revisão dos nossos padrões intelectivos, éticos e de ação. Mas é também importante sabermos aceitar que, ainda que nos esforcemos para ganhar uma proximidade com o olhar do outro, há limites de consciência possível para a compreensão da cultura do outro, embora possamos reduzir esse limite através de um esforço de re-educação e educação de nossa mente. E isso significa muitas vezes, entre outras coisas, uma des-construção e re-construção de nossas idéias e atitudes.

            Há uma terceira camada de ignorância, que condiciona não apenas nosso olhar sobre o outro indígena, mas sobre toda a realidade: a pretensa auto-identidade do ego, o “Eu”. Supomos, pela ignorância, que nossa ipseidade é esse senso do “eu”, a identificação com nossos agregados psicofísicos, que tomamos como sendo o “eu”. Na doutrina budista, esses cinco agregados (corpo, sensações, percepções, formação mental e consciência) são chamados de agregados do apego, pois, segundo os ensinamentos do Buddha, são a raiz do sofrimento, gerado pela cobiça, a aversão e a delusão. Esses agregados são não-eu, anatta. “(...) Monges, qualquer corpo (ou objeto sensorial), qualquer sensação, qualquer percepção, qualquer formação mental, qualquer momento de consciência, seja interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, passada, presente ou futura, eu digo que todas devem ser vistas como na verdade são, com correta sabedoria, com insight perfeito, assim: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu’. Vendo dessa maneira correta, tendo consciência deste corpo e de todas as condições externas, não surge a tendência ao conceito “eu” e “meu” em relação a esses cinco elementos da existência” (7)

            A falta de visão correta cria a prisão na teia da ilusão, em que o “eu” busca proteger sua pseudo-identidade, se agarrando não só ao mundo exterior, como também ao seu “mundo mental”, construído de representações de si mesmo equivocadas, e reagindo com aversão, ódio e violência, chegando até à guerra, quando o “eu” e o concomitante “meu” e “mim” se sentem, em sua cobiça e desejo, ameaçados “pelos outros” ou pelas barreiras das condições externas. A alteridade carrega em si a potencialidade do conflito (8).

Mas a dualidade é sinônimo apenas de conflito e separatividade irredutível? É preciso uma compreensão clara e correta da realidade existencial, e esta pode ser apoiada pela Metafísica, Cosmologia e Religiões Comparadas (9).

Imbricada na própria dualidade, está a outra face talvez não vista por Narciso: a verdade da interdependência de todos os seres. A interconectividade dos seres cria o espaço para abertura ao outro, a comunicação, a solidariedade e a compaixão. Aqui se coloca um ponto fundamental: a perspectiva espiritual correta. Teoria e prática, indissociáveis. Trata-se de compreender que tomar o “eu” como sendo a verdade última da ipseidade humana é a grande ilusão e fonte de sofrimento para consigo e na relação com os outros. Quando Cristo afirma o segundo mandamento do “amar ao próximo como a ti mesmo”, quem é “o próximo” a ser amado?

Em um nível mais exterior, tendemos a considerar “o próximo” como apenas os humanos (às vezes nem isso), esquecendo de incluir os outros seres do mundo, os não-humanos. Basta ver como nossa época tem tratado com agressão os demais reinos da Natureza, como os animais, as florestas, o meio ambiente (10).

Mas como vemos os seres, e mais especificamente os seres humanos? Se nosso olhar enxergar os humanos apenas como realidades corporal e psíquica, embora esse amor seja importante, ainda mais nesses tempos de um mundo cada vez mais agressivo e egóico, será, entretanto, um amor restrito ao âmbito da individualidade dos seres, um amor parcial, limitado, marcado pela preferência. Poderá inclusive permanecer numa esfera de um vago e superficial sentimentalismo.

Há um nível mais profundo que passa por uma compreensão maior do que seria este “o próximo”. No Corão está dito que Deus está mais próximo do homem que sua veia jugular (Surata 50, versículo 12, Kaf). (11).O sentido mais profundo do “próximo” refere-se ao princípio divino, a verdade última, e não ao “eu”-individualidade psicocorporal, agregado efêmero e residência da ilusão. Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo (Matheus, 16, 24). Talvez o que o Cristo esteja orientando é que se ame a ipseidade que se manifesta na diversidade dos seres, respeitando e cultivando o bem querer pela singularidade de cada ser, o múltiplo do Uno, mas atentos para não fazer da individualidade a verdade última dos seres, pois ver a diversidade como algo em si, fechado e autônomo, é cair no pior erro, o da ilusão da separatividade, da independência e auto-suficiência ontológica dos seres, pretensão que os torna incompreensíveis e sem sentido, e não haveria como amar a ilusão sem nexo.

Poderíamos ver este ângulo como um dos importantes pontos que aproxima o Cristianismo do Buddhismo e de muitas (talvez de todas) Tradições: a delusão que temos sobre o quê realmente somos nós mesmos, delusão fruto da ignorância que mantém os seres no ciclo da existência condicionada. Se o amor ao próximo, seja por
sentimentos ou obras de caridade, não for compreendido à luz do que seja este sentido do “próximo” mais profundo, correremos o risco de restringir o “próximo” à uma imagem refletida de “nosso” próprio ego, cujo orgulho crescerá com “nossos” atos tomados como provas de “nossa” bondade. Seria por acaso que o maior dos sete pecados capitais seja o orgulho? No exercício das importantes virtudes da Compaixão  e Caridade, o primeiro passo é investigar a pretensa substancialidade do ego, e o significado mais profundo de sermos bem-aventurados “pobres de espírito”. O vazio do ego. (12).

Todos os seres querem ser felizes, e buscam fugir do sofrimento. O instrumento que aqui estamos escolhendo para arrefecer o sofrimento é a Educação. O que seria uma Educação orientada pela Sabedoria, que abra espaço para a acolhida do outro? Sabedoria não é sinônimo de informação. Em nossos dias, há uma grande disponibilidade de informações, mas o que dizer da formação? Diz a Sabedoria: Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra (...). Bem aventurado o homem que me dá ouvidos, velando às minhas portas a cada dia, esperando às ombreiras da minha entrada. (Provérbios, 8, 23-34).

Se olharmos a raiz latina da palavra educar, veremos que provém do prefixo e (“para fora”) e ducere (“conduzir”). Educar significa “trazer para fora”, para a luz, algo latente. Também tem o sentido de “erguer, levantar”. Algo análogo ao conceito grego de Paidéia, proveniente da raiz pais, paidós, “menino, filho”. Educar seria “domesticar, domar, ensinar”, como um pai que toma a sua própria mente como seu filho, e o ensina a lapidá-la. Mas o que nós humanos temos latente, que caberia à Educação expressar e lapidar? Nossas tendências saudáveis, como o amor, a amizade, a sabedoria, a arte, a beleza, a propensão à iluminação libertadora. Mas, também, temos nossas tendências latentes não-saudáveis da cobiça, do ódio e da delusão. E a maior das delusões é o apego à crença de que o ego, o eu, seja nossa identidade verdadeira. Desapegar-se dessa crença não é fácil: Cuidai vós que vim trazer paz à terra? Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três (S.Lucas, 12, 51-52).

A re-educação, esforço e luta interior, para além das dualidades e da delusão. Um longo caminho. A grande Paz, momento a momento, presente. Nas palavras de Gandhi: Devemos ser a mudança que queremos ter.

Um homem muito religioso, ao morrer, chegou ao portão dos céus. Bateu no portão fechado. Uma voz do outro lado lhe perguntou: “O que queres aqui? Quem és tu?” O homem respondeu: “Sou Fulano de Tal, dediquei minha vida à oração e à
caridade, quero agora minha recompensa”. Ao que a voz respondeu: “Aqui não há céu nenhum, vá procurar em outro lugar”.

O religioso voltou à Terra, e depois, ao morrer, insistiu no seu direito à recompensa, batendo no portão. A voz lhe perguntou: “O que queres aqui, quem és tu?” O religioso repetiu que era Fulano de Tal, e listou suas novas boas obras no mundo. A voz lhe mandou buscar a recompensa em outro lugar, voltar à Terra, ali não havia céu nenhum.

O religioso voltou à Terra, passou mais uma vida meditando, e ao morrer, novamente bateu no portão.

A voz perguntou: O que queres aqui? Quem és tu?
O religioso respondeu: Sou Tu.
O portão se abriu.


Notas

(1) Trabalho apresentado no I Simpósio de Ciências da Religião: Religião: Alteridade e Educação, 25-27 Agosto 2008, Faculdade de Ciências da Religião, das Faculdades Integradas Claretianas, SP. Meus agradecimentos a Zlatica de Farias, pela revisão e contribuições sugestivas.
(2) Shaker, Arthur. 2002, p. 79.
(3) Sobre o tema, veja, entre outros: Santos, Mario Ferreira. 1965.
(4) Guénon, René. 1976 a, pg. 58-59.
(5) Guimarães, Ruth. 1983, p.228.
(6) Sullivan, Lawrence E. 1988, p. 16-17.
(7). Yogavacara Rahula Bhikkhu, 2006, p. 23, extraído do Samyutta Nikaya, XXII, 79, Vol. III, p. 916.
(8) Shaker, Arthur. 2003, p. 110.
(9) Sobre a Metafísica e a Cosmologia, veja Guénon, René, 1976 b.
(10) Sobre este tema, veja, entre outros: Nasr, Seyyed H. 1977.
(11) Dawood, p.122, Challita, p.283.
(12) Shaker, Arthur. 1999, p. 43-44.


BIBLIOGRAFIA

DAWOOD, N.J. The Coran, England, Penguin Books, 1978; Challita, Mansour. O Alcorão. RJ, Ed. Ass.Cultural Intern. Gibran, s/d.
GUÉNON, René. Melanges, France, Ed. Gallimard, 1976 a.
____________ La métaphysique orientale, Paris, Ed. Traditionelles, 1976 b.
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega, São Paulo, Cultrix, 1983.
LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros Jesuítas do Brasil, 1954, São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. v I.
NASR, Seyyed H. O Homem e a Natureza, Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
SANTOS, Mario Ferreira dos. Pitágoras e o Tema do Número, SP, Ed.Matese, 1965.
SEREBURÃ et all (SEREBURÃ; HIPRU; RUPAWÊ; SEREZABDI; SERENIMIRAMI). Wamrêmé Za’ra, nossa palavra: mito e história do povo Xavante, São Paulo, Senac, 1997.
SHAKER, Arthur. Buddhismo e Christianismo. Esteios e Caminhos, Petrópolis, Vozes, 1999.
______________ Romhõsi’wai  hawi rowa’õno  re  ihöimana  monoa Criação do mundo segundo os velhos narradores Xavante, tese de doutorado, IFCH, Fac. Ciências Sociais, Etnologia Indígena, UNICAMP, Campinas, 2002.
_______________ A travessia buddhista da vida e da morte – Introdução a uma Antropologia Espiritual, Rio, Gryphus, 2003.
________________ O lugar do Homem nas doutrinas tradicionais, p. 37-48, Revista UNICLAR, ano IX, no. 1, SP, Faculdades Integradas Claretianas, nov. 2007.
SULLIVAN, Lawrence E. Icanchu’s Drum: an orientation to meaning in South American religions, New York, Mac Millan, 1988.
The Connected Discourses of the Budda. A Translation of the Samyutta Nikaya, tradução do Páli por Bhikkhu Bodhi, USA, Wisdom Publications, 2000.
YOGAVACARA Rahula Bhikkhu. Superando a ilusão do Eu. SP, Edições Casa de Dharma, 2006. 

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Espiritualidade oriental e Educação Humana
Arthur Shaker
Maio/2010




Palavras-chave:

  • Condição humana, karma, nascimento
  • Mapa da vida, educação humana, método
  • Nobres Verdades, habilidades, treinamento
  • Sabedoria, ética, meditação
  • Ignorância, libertação, felicidade duradoura
Arthur Shaker
PhD em Etnologia Indígena pela Unicamp. Antropólogo. Conselheiro da Casa de Dharma – Centro de meditação budista Theravada (SP). Coordenador do Núcleo Neurociências, Mindfulness e Saúde. Professor de meditação. Escritor e músico.

Resumo

            Este texto tem como propósito trazer contribuições sobre a Educação humana: por que é necessária a Educação, quais suas formas e princípios, para qual finalidade? Toma como ponto de partida paradigmas das tradições orientais, e mais especificamente do Budismo e Taoísmo, e coloca como foco de reflexão nossa condição humana e as tendências saudáveis e não-saudáveis enraizadas em nossa mente, e como essas tendências direcionam nossa busca da felicidade. Sob qual Mapa da Vida orientamos nossas ações do corpo, fala e mente?
            Traz as contribuições das Ciências da Religião para a construção de uma Educação humana, que se apóie em bases de um método que seja cientificamente observável, sustentável, e comprovável pela experiência, e possa por isso colaborar para os rumos de uma humanidade sadia, onde todos os seres da Natureza estejam incluídos em respeito e cuidados.



Espiritualidade oriental e Educação Humana



Aspiração à Liberdade e Felicidade

            Liberdade. Todos nós, seres humanos, queremos ser livres. Livres do sofrimento, livres das constrições, livres como os pássaros. Liberdade do pensamento, do movimento, liberdade de realizarmos nossos desejos. Mas desde a tenra idade, descobrimos as restrições: custamos para andar, falar, largar as fraldas. Quanto esforço de nossos pais, parentes, profissionais envolvidos em nosso crescimento. Por que precisamos ser educados? Não bastaria deixarmos nosso processo de crescimento seguir naturalmente?

            Primeiro nível de nossa experiência, logo cedo: somos frágeis. Precisamos de longos apoios para nosso corpo se estruturar: alimentos, repousos, cuidados de higiene, médicos, roupas e tantas coisas mais. Muitos anos de dependência externa.

            Segundo nível: vivemos em sociedade, inter-sendo. Ninguém é uma ilha isolada, ou vivendo numa ilha isolada; mesmo Robinson Crusóe encontra um Sexta-feira como alteridade. Vivendo em comunidades, a sobrevivência social impõe regras de conduta, pois se cada um agisse de acordo com seus desejos irrestritos, os conflitos levariam rapidamente ao caos e à destruição da sociedade, por conseguinte, à destruição de cada indivíduo. Mas será que a Educação existe apenas porque somos frágeis e dependemos socialmente uns dos outros?

            Olhemos o panorama da vida em um horizonte mais amplo e sábio. Que significado damos para nossa vida? Comer, beber, satisfazer os desejos do corpo e da mente, ter filhos e morrer? Pensemos: que compreensão temos sobre nossa condição humana? Pois a cada momento, a vida nos coloca diante de um vasto campo de possibilidades: quais escolheremos, baseados em quê? Sem um grande Mapa da Vida, nossas ações correm o forte risco de nos trazerem novos sofrimentos, e não almejamos nos vermos livres do sofrimento?

Um Mapa da Vida

            Um Mapa da Vida, direção no turbulento oceano da existência: como construí-lo? Começando pela reflexão sobre nossa condição humana. Em sua visão iluminada, o Buddha ensina que o ser humano é constituído de cinco agregados: um agregado corporal (rupa) e quatro agregados mentais (nama): sensações (vedana), percepção (sañña), formações mentais (pensamento, emoções, etc., sankhara) e consciência (citta).

            Por que nascemos? Seria apenas fruto do desejo sexual de nossos pais, um espermatozóide fecundando um óvulo? A perspectiva budista é mais complexa: sim, as condições físicas são necessárias (e hoje em dia já há nascimentos provocados em laboratório), mas não suficientes. É preciso a presença da consciência, sem a qual não há vida. E isto se liga a um processo kármico de vida anterior. Nascemos por conta de nossos karmas (ações) anteriores. Nascemos por causa de nosso desejo: desejo de existir, sede do desejo de continuar experimentando os objetos do mundo. Reentramos novamente, ou, melhor dizendo, prosseguimos no ciclo do nascer e morrer, dos incessantes renascimentos no samsara. Isto já nos coloca um ponto importante: não há como atribuir aos nossos pais ou ao mundo a culpa/responsabilidade pelo nosso existir. A responsabilidade pelo vir-ao-mundo, e transitar por ele, é toda nossa.

            Olhemos com mais profundidade o fato do nosso nascimento. Nosso vir-ao-mundo significa o vir-ao-mundo de duas tendências básicas: as tendências não-saudáveis da cobiça, ódio e ignorância (não-saudáveis porque nos criam sofrimento); e as tendências saudáveis da generosidade, do amor, da criatividade e da sabedoria (saudáveis porque trazem felicidade e libertação). Buddha enfatiza várias vezes a riqueza e raridade do nascer no estado humano: imagine uma argola de madeira flutuando no oceano, e que a cada cem anos uma tartaruga cega suba à superfície do oceano para respirar, e que exatamente nesse momento ela emerja com a cabeça dentro da argola! Assim é a raridade do nascer no estado humano.

            E por que Buddha refere-se à riqueza desse nascer? Porque graças à nossa capacidade mental, experienciando os estados extremos de prazer e sofrimento, podemos pela sabedoria transcendermos a existência condicionada e realizar nossa libertação espiritual. Aqui é que entra a valiosíssima Educação humana.

Se houvesse sabedoria em mim
Percorreria a estrada real
Mas evitaria os atalhos
A estrada real é fácil de seguir
Mas os homens preferem os atalhos

Enquanto nos palácios reina a opulência
Os campos estão cobertos de ervas daninhas
Os armazéns públicos vazios

Vestidos com trajes suntuosos
Levam à cintura armas cortantes
Abundante é seu vinho e seus manjares
Possuem ouro e bens em quantidade
Tudo isso induz o homem a um mau destino
Não é isto afastar-se do Tao?[1]

A Educação Humana

            Se olharmos a raiz latina da palavra educar, veremos que provém do prefixo e (“para fora”), e ducere (“conduzir”). Educar significa trazer para fora, para a luz, algo latente. Também tem o sentido de “erguer, levantar”. Algo análogo ao conceito grego de Paidéia, proveniente da raiz pais, paidós, “menino, filho”: educar seria “domesticar, domar, ensinar”, como um pai que toma a mente como seu filho, e o ensina a lapidá-la. A cultivá-la.

            E o quê nós humanos temos latente, que caberia à Educação trazer à luz e lapidar, cultivar? Exatamente essas duas tendências, as não-saudáveis e as saudáveis. É errônea qualquer dessas duas visões extremas: a de que nascemos “tabula rasa” (como um livro em branco que será marcado pela experiência da vida), ou de que estamos fadados à eterna perpetuação do sofrimento, devido aos nossos “maus karmas”. A visão correta é a do Caminho do Meio: entre o céu e o inferno. Não podemos apagar ou ignorar os frutos de nossas ações anteriores não-saudáveis, nem devemos subestimar os frutos de nossas ações saudáveis, responsáveis pelo nosso nascimento humano: temos consciência do quanto de sofrimento há no nascimento no estado animal ou em estados infernais?

Um Método de Educação Humana

            Posto isto, qual o Método de Educação Humana proposto pela espiritualidade oriental do Budismo ou Taoísmo? Essa primeira compreensão sobre o nascer humano é fundamental para iniciarmos a construção de nosso Mapa da Vida. Temos de cultivar Habilidades, através de treinamentos que direcionem nosso corpo e mente no sentido de erradicar as tendências não-saudáveis, e desenvolver as tendências saudáveis. Significa assumirmos em níveis cada vez maiores as responsabilidades pelas nossas ações nos três níveis: ações do corpo, da fala e da mente.

            Em todas as tradições espirituais, observamos que o homem “não se considera ‘acabado’ tal qual se acha ‘dado’ ao nível natural da existência: para se tornar homem propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural”[2].

            Os treinamentos iniciáticos de transformação espiritual são constitutivos essenciais nas sociedades de tradição espiritual, conforme podemos constatar no imenso leque das culturas humanas apontadas pela Antropologia. Os modos desses treinamentos são múltiplos. Há graus parciais de libertação espiritual que podem ser realizados pela via devocional ou a via da ação, conforme o exemplo na tradição hindu sobre a via da devoção (bhakti marga), ou da ação (karma marga). A libertação suprema se dá pela via do conhecimento (jñaña marga)[3]. No centro deste campo da diversidade dos modos dos treinamentos, encontramos um fundamento essencial análogo: erradicar as impurezas e ignorâncias da mente humana rumo à libertação e plenitude espiritual.

            Retornando ao Método de Educação Humana. Se nós humanos agimos pelo corpo, fala e mente, então é exatamente sobre estes três níveis que a Educação deve intervir. Mas intervir não significa impor, e sim cultivar, sempre tendo a compreensão como princípio-guia. Trata-se de desenvolver um treinamento a partir de um paradigma cognitivo cientificamente observável, como ponto de partida, aplicável como processo, e passível de verificação empírica dos seus resultados. Nesse sentido, os ensinamentos do Buddha estão perfeitamente consonantes com as exigências de uma metodologia rigorosamente científica, desprovida de dogmas, crenças ou aceitação cega.

            Corpo, fala e mente. As práticas educacionais nessas três esferas estão substanciadas no Nobre Óctuplo Caminho, como a Quarta das Quatro Nobres Verdades, a fina essência, síntese de todo o ensinamento do Buddha:

            A Primeira Nobre Verdade da insatisfatoriedade/sofrimento da existência condicionada (insatisfatoriedade proveniente da natureza impermanente de tudo que é condicionado);
            A Segunda Nobre Verdade da causa do sofrimento (nos apegamos aos objetos físicos e mentais porque estamos presos à uma visão distorcida de que nossos desejos pelos objetos físicos e mentais podem ser efetivamente saciados, e com isso nos trazer uma felicidade duradoura, ignorando a natureza impermanente de todos os fenômenos[4]. Nesse sentido, não é que a vida seja necessariamente sofrimento, é o nosso apego aos cinco agregados do corpo e mente que causa sofrimento, nos fazendo correr atrás do agradável e fugir do desagradável);
            A Terceira Nobre Verdade: cessando a causa, cessa o efeito (erradicando a cobiça, o ódio e a ignorância da mente, extingue-se o sofrimento e realiza-se o Nibbana (o Estado Incondicionado da mente, pura e iluminada);
            A Quarta Nobre Verdade: o método, o remédio do Nobre Óctuplo Caminho.



O Cultivo das Oito Habilidades

            Um Método de Educação Humana: o cultivo das Oito Habilidades. Cultivo da Sabedoria (pañña), da Virtude Ética (sila) e da Concentração (samadhi). O princípio básico é o de que quando nossa mente está desatenta, as pulsões não-saudáveis tendem a comandar nossas ações e reforçar estas pulsões com conseqüências dolorosas, como um carro de boi que cai na trilha de sulcos viciados pela repetição. Por isso, despertar a Plena Atenção da mente é fundamental. Treinar a Plena Atenção aos nossos cinco agregados momento-a-momento: de olho no corpo, nas sensações, na percepção, nos pensamentos e na consciência: têm os três venenos da cobiça, ódio e ignorância? Desapegar-se, cultivar a generosidade, amorosidade, compaixão e sabedoria. Assim diz a voz da Sabedoria:

Eu amo os que me amam, e os que de madrugada me buscam me acharão.
Riquezas e honra estão comigo; sim, riquezas duráveis e justiça.
Melhor é o meu fruto do que o ouro, sim, do que o ouro refinado;
e as minhas novidades melhores do que a prata escolhida.
Faço andar pelo caminho da justiça, no meio das veredas do juízo.
Para fazer herdar bens permanentes aos que me amam, e encher os seus tesouros[5].

            Dispondo as Oito Habilidades em três grupos, temos:

O Treinamento da Sabedoria

1.      cultivando a Compreensão Hábil: onde há os três venenos, há sofrimento, geração de karmas não-saudáveis, perpetuação das tendências não-saudáveis, prisão. Compreender essas Verdades.
2.      cultivando o Pensamento Hábil: substituindo o pensamento da cobiça pelo da generosidade, do ódio pela compaixão, do apego e ignorância pelo desapego, pelo entendimento de que nada de fato nos pertence.

Tal como uma gota de orvalho na ponta de uma folha de grama desaparece com rapidez ao alvorecer e não permanece por muito tempo, da mesma forma, brâmanes, a vida dos seres humanos é como uma gota de orvalho - limitada e curta, com muita tribulação e sofrimento. Isso deve ser compreendido através da sabedoria. Vocês devem praticar o bem e viver uma vida pura; pois ninguém que nasceu poderá escapar da morte (Arakenanusasani, O Ensinamento de Araka, Anguttara Nikaya VII.70, http://www.acessoaoinsight.net)

O Treinamento da Virtude Ética

3.      cultivando a Fala Hábil: compreendendo que a fala tem o poder tanto de construir como destruir, cultivamos a restrição da fala errônea, da fala áspera, da difamação e fala inútil; e desenvolvemos o cultivo da Verdade, da fala amorosa que une, e do Silêncio.
4.      cultivando a Ação Hábil: evitar ações que tragam sofrimento para nós e os outros (ações como destruir os seres vivos, roubar, abusar dos sentidos, uso de intoxicantes físicos e mentais, pois anuviam a mente e levam à desatenção, que por sua vez conduz a ações não-saudáveis, geradoras de sofrimento). Conta uma história que alguém subindo uma montanha, ao se ver preso por uma tempestade de neve, embora fosse avisado que não deveria matar nenhum ser vivo, ao sentir fome matou um velho rato, pensando não haver grande mal nisto. Tempos depois, foi chamado ao tribunal, pois sucede que este rato se alimentava de insetos doentes, e com sua morte, se espalhou a doença e com a morte de todos os insetos, cessou a polinização e fertilização das plantas das encostas da montanha, e com isso veio a desagregação do solo, a erosão, e um grande deslizamento de terra matou muitas pessoas que estavam subindo a montanha[6].
5.      cultivando um Meio de Vida Hábil: como vivemos nosso cotidiano, principalmente o tipo de trabalho: causa sofrimento para nós e os outros? Profissões não-saudáveis como o comércio de armas, de seres vivos, de químicas destrutivas, negócios ilícitos e outras formas de trabalho inábeis?

O Treinamento Meditativo

6.      cultivando o Esforço Hábil: evitar as condições que criem o surgimento de estados não-saudáveis; se surgirem, não alimentá-los, livrar-se deles; favorecer condições que criem o surgimento de estados saudáveis, e procurar manter e desenvolvê-los. Lembrando que os estados mentais surgem e se reforçam/enfraquecem de acordo com causas e condições, e que o alimento é uma das importantes condições desse processo: quais alimentos oferecemos para nossa mente a cada momento? Saudáveis, não-saudáveis?
7.      cultivando a Plena Atenção Hábil: treinando, pela prática da meditação contemplativa, a importante qualidade mental da Plena Atenção da mente sobre tudo que experienciamos no corpo e na mente a cada instante. Plenamente atentos ao apego, aversão e falta de compreensão da realidade como ela é, impermanente, por isso insatisfatória. Soltar, desapegar.
8.      cultivando a Concentração Hábil: treinando, pela prática meditativa, a qualidade mental da concentração (usando, por exemplo, a respiração como foco de concentração), pois com a mente concentrada podemos ver a realidade do corpo e mente como ela é, em sua natureza efêmera, transitória, sem apego ou aversão, liberando a mente da cobiça, ódio e confusão.

                        Os Oito treinamentos da Educação Humana, embora apresentados nesta seqüência, são praticados simultaneamente, cada um apoiando os outros sete, como uma Roda de oito aros: quando gira, não se diz qual é o ponto de início. E quando cultivamos a mente meditativa, alcançamos e aprofundamos a Compreensão Hábil, e assim sucessivamente, até a total purificação e libertação da mente de todas as impurezas: isto é o cume da Educação Humana, a mente pura e iluminada, plena em si mesma.

                        Os frutos desta Educação são benéficos para cada ser humano, bem como para a sociedade, e para todos os seres, incluindo aí os demais reinos da Natureza. O método educacional é simples e direto, ainda que exigente, pois implica em nadar contra a corrente que nos empurra para o sofrimento e delusão. “É difícil”, diz com freqüência a nossa mente diante do desafio reeducativo. Mas o que é bom e definitivamente libertador é raro e trabalhoso. Afinal, o que queremos: migalhas de ilusão com toneladas de sofrimento para nós e os outros, ou Plenitude?


Bibliografia

Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d.
Flickstein, Matthew. Swallowing the River Ganges. A Practice Guide to the Path of Purification. Boston: Wisdom, 2001.
Goldstein, Joseph. A Experiência do Insight. São Paulo: Roca, 1995. [A história citada está em Mount Analogue, René Daumal, 1959, Pantheon Books].
Guénon, René. Initiation e Réalisation Spirituelle. Paris: Éditions Traditionelles, 1980.
Lao Tse. Tao Te King. O Livro do Sentido e da Vida. São Paulo: Hemus, 1983.

Referencia eletronica:




[1] Lao Tse, p. 125, 1983.
[2] Eliade, Mircea, p. 194, s/d.
[3] Guénon, René, p. 144, 1980.
[4] Flickstein, Matthew, p. 60, 2005.
[5]  Provérbios, 8, 17-21.
[6] Goldstein, Joseph, p.13-14, 1995, citando uma história do Mont Analogue.

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Educação, espiritualidade e humanidade

Contribuições budistas para a realidade brasileira
Dr. Arthur Shaker