O
um e o outro nas religiões:
tradições
indígenas, educação e alteridade (1)
Arthur Shaker
Antigamente o nosso povo, nossos avós viviam no escuro. Naquele
tempo não existia o céu, nem o dia, era tudo escuro. Era escuro mesmo, era
noite. O tempo todo escuro. Não havia fogo também. (2).
Assim
se inicia o mito Xavante sobre os tempos da escuridão. Noite, escuridão. A
noite tem muitas escuridões, algumas visíveis, outras invisíveis. Não havia
fogo também. Tempos difíceis, antigamente.
Não
tinha comida. As mulheres coletavam coró, as larvas grandes, wede wai’u, e
também pau seco, podre. Era uma colheita que elas faziam para alimentar. Povo
antigo não tinha nada, nada, nada, nada. Para se alimentar tinha de procurar
aqueles paus podres. Povo antigo se alimentava com isso. Sofria de fome, vivia
só com coró e pau podre. Coró tem muita gordura, o bicho é muito gordo e
gostoso. O povo antigo comia coró cru, não tinha fogo, era escuro, não tinha
nada.
Assim
prossegue o mito. No escuro, os homens. No escuro, não conseguimos ver nosso
rosto, não conseguimos construir algo que seja nossa auto-imagem. Talvez nem
tenhamos sequer a idéia de que haveria algo chamado rosto, ou auto-imagem.
Apenas nosso tato, talvez nos desse apenas certas impressões dos objetos.
A
noite tem muitas escuridões. Na escuridão sem rosto, aqueles homens e mulheres
sabiam que não estavam sós. Havia homens e mulheres, coletando. Homens e
mulheres, sem rosto, mas havia vozes, algum senso de individualidade. Eu e o
outro, os outros.
Mas,
como entender o que seja “o eu e o outro”? A pergunta parece tola, alguém
diria: “é simples, eu sou eu e o outro é um outro ser que não sou eu, um ser
diferente de mim”. Mas será a pergunta tão tola assim, ou tomamos por óbvio o
que ignoramos?
A pergunta se recoloca: de onde provém a diferença? Como entender o igual a mim
e o diferente de mim? Subjacente a isso, está a questão do “mesmo e do outro”,
ou dito em outros termos, a identidade e a alteridade. Nos vemos como uma
individualidade, diante de outras individualidades, mas raramente nos
perguntamos: o que é esta individualidade com que nos identificamos? Qual sua
natureza? Como ela se relaciona às outras individualidades?
Vamos
prosseguir pelo mito:
O céu já
existia, mas era uma parte só, não era inteiro. Era como uma onda da água do
rio, levantando só de um lado. Era pouco. Desse lado do höiwarã sudu (poente) não tinha nada
ainda, era pouco ainda. Em volta não tinha nada, era só espaço. O céu está
sendo criado, era baixo.
O céu está sendo criado, diz o mito. Os mitos cosmogônicos falam de uma
Ontologia do Espaço e dos seres viventes. Isto significa a ipseidade e a
alteridade. Na Matemática moderna, aprendemos que o
um é metade do dois. Mas na Matemática tradicional, como a Pitagórica, o dois é
metade do um (3). Ou, na linguagem da Metafísica, o Dois nasce da polarização
do Um, não o um numérico quantitativo, mas a Unidade primordial, o Ser
(princípio dos seres). Para que o mundo se manifeste, o Ser primordial se
polariza e desta trama e urdidura se desenrola uma progressiva
diferenciação que engendra os seres, processo que se baseia analogicamente
naquele da formação dos números, do Um ao Dez, fundamento de toda Matemática
tradicional:
Segundo
a Kabala, o Absoluto, para se manifestar, se concentra em um ponto
infinitamente luminoso, deixando as trevas em sua volta; esta luz dentro das
trevas, este ponto dentro da extensão metafísica sem limites este nada que é
tudo dentro de um tudo que é nada, se assim podemos expressar, é o Ser no seio
do Não-Ser, a Perfeição ativa (Khien)
dentro da Perfeição passiva (Khouen).
O ponto luminoso é a Unidade, afirmação do zero metafísico, que é representado
pela extensão ilimitada, imagem da infinita Possibilidade universal. A unidade,
ao se afirmar, para se fazer o centro de onde emanarão como múltiplos raios as
manifestações indefinidas do Ser, está unida ao Zero que a contém em princípio,
no estado de não-manifestação, aqui já aparece em potencialidade o Denário ,
que
será o número perfeito, o desenvolvimento completo da Unidade primordial. (4)
Assim teria iniciado a abertura dos horizontes cosmológicos. Com a luz , a visão mais ampla
da diferenciação, das alteridades. O céu
era uma parte só. O sol e a lua já estavam lá. O sol já estava clareando o céu.
Na mitologia Xavante, dois meninos se transformarão em sol e lua.
A diferenciação
abre o mundo das formas. Na penumbra, o olho descobre a forma, no espelho vê o
rosto, a face. "Isto sou eu!" Começa a surgir o senso de identidade.
Ela traz certo êxtase, como uma criança que se deleita em descobrir seu corpo,
seu rosto. A auto-imagem. A palavra êxtase vem de ex-stare, "estar fora de si". O ser humano sai de dentro
de si, ou para fora de si. Cosmologicamente, a diferenciação acarreta uma
saída, e, portanto, certa perda da interioridade para a exterioridade. Então foram abertos os olhos de ambos
(Adão e Eva), e reconheceram que estavam
nus (...) (Gênesis, 3-7). O ser humano se vê em sua auto-imagem, como algo
fora de si. O espelho e a exterioridade.
Conta a mitologia grega
que Nêmesis, a deusa filha da noite, encarregada de exercer a vingança divina
contra o orgulho humano, resolveu castigar Narciso, filho do deus-rio Cefiso e
de uma Ninfa. Embora as Ninfas o perseguissem, enamoradas de sua beleza,
Narciso desprezava o amor. “Um dia (Nêmesis) fez com que Narciso contemplasse o
reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, onde fora se refrescar. Insensível
a tudo mais, ali ficou o moço, extasiado diante da beleza do rosto que via no
fundo da água. E assim permaneceu até morrer. No lugar onde morreu brotou uma
flor que se chamou narciso” (5).
A abertura não traz apenas alegrias, visões de espaço e beleza.
Saindo da indiferenciação protetora da escuridão primordial, a forma se vê como
identidade verdadeira. Crê no que lhe parece ser. "Isto sou eu!"
Cobertos pelo véu de Maya - que faz
as formas se esquecerem da verdade de sua origem na não-forma - os seres (as
formas) se vêem diante de outras formas. No mito Xavante, a luz evidencia uma
estranheza: o fechamento da abóbada celeste. A abertura traz sua outra face,
temerosa: a prisão do Cosmos.
De repente surgiu algo subindo, aquela fumaça, igual fumaça. O
início era como neblina, fumaça, hunhizé, subindo. Todos acharam: “Que coisa
estranha que estava vindo!” Não estava bom para eles, não estavam achando bom
isso. Eles não queriam que o céu se criasse. O céu estava começando a subir, e
eles não gostaram, não estavam achando muito bom isso. Queriam que limpasse,
não estava agradando isso. Então eles queriam derrubar, antes que o céu se
desenvolvesse por inteiro. Queriam derrubar, derrubar, derrubar.
Estranheza, derrubar, derrubar. Alteridades. Espaços de ocupação,
a ameaça trazida pela existência de outros. O espelho, rosto, forma, eu,
diante... O Eu. “Que coisa estranha que
estava vindo!”
O Eu, diante do Outro. E o paradoxo: para
o outro, nós somos o outro.
Neste
amplo campo ardiloso do eu e do outro, encontramos um desafio ainda mais
exigente: quanto mais diferente for a cultura do outro, tanto maior o esforço
necessário para sua compreensão, aceitação e relacionamento. Para a sociedade
brasileira, as tradições indígenas são o outro mais distante dela.
Como vamos adentrar por este mundo do outro, indígena, muito
distante da forma de viver e pensar de nossa sociedade ocidental moderna, e
vê-lo não segundo os nossos olhos, mas a partir dos olhos dele, ao menos o mais
próximo possível?
Para compreendermos o outro, necessitamos procurar nos despir de
nossas pré-concepções com as quais tendemos a projetar nossa visão de mundo
sobre o outro. Temos de abrir um espaço de acolhimento para a estranheza que o
diferente nos coloca, talvez ele nos abra a percepção de uma dimensão de nós
até então desconhecida, oculta. Esta é uma questão complexa e um grande desafio
para o conhecimento e convivência. Quando nos aproximamos do universo indígena,
chegamos com nossa bagagem de conceitos, quase sempre pré-conceitos. Meu
trabalho com os povos indígenas, e mais especificamente junto com os velhos
narradores Xavante, revela muitos desafios para o
conhecimento de suas tradições, espiritualidade e cosmologias.
O primeiro grande desafio é o nosso olhar colonizador. A história
da colonização
não se encerrou. Ainda tem muitos braços. Sutil e não menos
violento, são os condicionamentos intelectivos da cultura ocidental introjetada
em nosso olhar.
Olhamos o mundo segundo os padrões cristalizados em nossa mente. Nesses
padrões, a ignorância determina como efeito a aversão, ou o seu aparente
oposto, o romantismo. O índio, o bom selvagem, pensava Rousseau. O deleite pelo
exótico.
Uma primeira camada destes padrões ignorantes é aquela mais
grosseira: índio é sujo, atrasado, primitivo, preguiçoso, retarda o progresso,
tem muitas terras, é selvagem, e perigoso. Chegou-se a dizer que índio não tem
alma, portanto a conversão catequética era um ato de misericórdia salvadora.
Houve até um caso de um prefeito do interior do Brasil que editou um decreto
proibindo a entrada de índios em “sua” cidade. Ou restaurantes que não servem
refeições a índios, mesmo que estes tenham dinheiro para isto. Para não falar
de outros temas como o relativo descuido para com a saúde indígena, a
demarcação de suas terras, a cobiça dos grandes interesses pela madeira,
minérios e recursos naturais no subsolo das Terras (reservas) indígenas.
Uma segunda camada é a da ignorância letrada. Um pesquisador
mostrou um desses aspectos equivocados que tomamos como verdade. Muitos livros
de História do Brasil nomeiam a progressiva história colonial como “Povoamento
do Brasil”. Mas, mostra este pesquisador, isto poderia (e talvez até deveria)
ser olhada por outro ângulo: considerando que havia de cinco a dez milhões de
indígenas no início da colonização, e hoje temos cerca de quatrocentos a
quinhentos mil, o termo correto seria a história colonial ser referida como “o
período do despovoamento do Brasil”.
Pensadores como Sullivan mostram que muitos dos conceitos da
ciência Antropológica, como mito, rito, religião, História, símbolo, cultura,
povo, ideologia, sagrado, embora possam ser até certo ponto operativos para um
primeiro apoio cognitivo do “outro indígena”, tendem a nublar nosso olhar
diante da plena e criativa presença desse universo indígena. Esses termos são
freqüentemente criados, ainda que inconscientemente, para evitar a presença
esclarecedora dessas culturas na história (6). Os padrões de ignorância
condicionada se tornam ainda mais limitantes quando se trata da complexa esfera
de realidade do mundo mítico-religioso indígena, com seu alto grau de sutileza,
em suas formas tão distintas do familiar religioso do mundo ocidental.
Dentre esses conceitos, talvez o mais problemático seja o de
“religião, sagrado”. Não existe entre o povo Xavante a noção de uma esfera do
“religioso” que o distinguisse do “não-religioso”. Quando falam no “religioso”,
é para se referir aos missionários e, por extensão, ao Cristianismo. Não há
para eles um “campo da religião”, em distinção de outras áreas da vida
psíquica, social e simbólica, ao menos nos moldes com que se entende e se
vivencia o religioso no mundo ocidental moderno, em que se associa o religioso às noções de culto, adoração e
esfera da vida dirigida ao transcendente, já bastante desconexa das outras esferas
da existência cotidiana. Os velhos acreditam e confiam em seus criadores
míticos, “mas não vão chorar e rezar no pé deles”, o que não significa que eles
não
sintam certa “saudade” desse povo primordial com seus poderes, o que
traduz o reconhecimento dos velhos sobre a sua Alteridade em relação
aos seres primordiais, que é o fundamento da própria identidade Xavante (eles
se autodenominam A’uwe, que significa
“povo verdadeiro”).
Conceitos como “transcendente, imanente, religião, espiritual,
natureza/sobrenatureza” precisam ser revistos à luz da própria visão indígena.
É preciso procurarmos nos aproximar da compreensão do mundo indígena através da
apreensão dos conceitos e significados com que eles mesmos, como agentes de sua cultura e História, se percebem a si
mesmos. Conceitos com os quais eles se auto-referenciam, através dos quais
eles compreendem seus fundamentos, suas origens, seus símbolos e paradigmas de
ação no tempo e espaço. Nos conceitos próprios do mundo indígena estão as vias
de acesso para a compreensão do conteúdo de seus universos míticos.
Compreender e
descolonizar nossa percepção e projeção de nossa ignorância sobre o outro,
ainda mais se tratando do “outro indígena”, não é fácil. Exige um constante
trabalho de revisão dos nossos padrões intelectivos, éticos e de ação. Mas é
também importante sabermos aceitar que, ainda que nos esforcemos para ganhar
uma proximidade com o olhar do outro, há limites de consciência possível para a
compreensão da cultura do outro, embora possamos reduzir esse limite através de
um esforço de re-educação e educação de nossa mente. E isso significa
muitas vezes, entre outras coisas, uma des-construção
e re-construção de nossas idéias e
atitudes.
Há uma terceira camada de
ignorância, que condiciona não apenas nosso olhar sobre o outro indígena, mas
sobre toda a realidade: a pretensa auto-identidade do ego, o “Eu”. Supomos,
pela ignorância, que nossa ipseidade é esse senso do “eu”, a identificação com
nossos agregados psicofísicos, que tomamos como sendo o “eu”. Na doutrina
budista, esses cinco agregados (corpo, sensações, percepções, formação mental e
consciência) são chamados de agregados do apego, pois, segundo os ensinamentos
do Buddha, são a raiz do sofrimento, gerado pela cobiça, a aversão e a delusão.
Esses agregados são não-eu, anatta.
“(...) Monges, qualquer corpo (ou objeto sensorial), qualquer sensação,
qualquer percepção, qualquer formação mental, qualquer momento de consciência,
seja interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, passada,
presente ou futura, eu digo que todas devem ser vistas como na verdade são, com
correta sabedoria, com insight perfeito, assim: ‘Isso não é meu, isso não sou
eu, isso não é o meu eu’. Vendo dessa maneira correta, tendo consciência deste
corpo e de todas as condições externas, não surge a tendência ao conceito “eu”
e “meu” em relação a esses cinco elementos da existência” (7)
A falta de visão correta cria a
prisão na teia da ilusão, em que o “eu” busca proteger sua pseudo-identidade,
se agarrando não só ao mundo exterior, como também ao seu “mundo mental”,
construído de representações de si mesmo equivocadas, e reagindo com aversão,
ódio e violência, chegando até à guerra, quando o “eu” e o concomitante “meu” e
“mim” se sentem, em sua cobiça e desejo, ameaçados “pelos outros” ou pelas
barreiras das condições externas. A alteridade carrega em si a potencialidade
do conflito (8).
Mas
a dualidade é sinônimo apenas de conflito e separatividade irredutível? É
preciso uma compreensão clara e correta da realidade existencial, e esta pode
ser apoiada pela Metafísica, Cosmologia e Religiões
Comparadas (9).
Imbricada
na própria dualidade, está a outra face talvez não vista por Narciso: a verdade
da interdependência de todos os seres. A interconectividade dos seres cria o
espaço para abertura ao outro, a comunicação, a solidariedade e a compaixão.
Aqui se coloca um ponto fundamental: a perspectiva
espiritual correta. Teoria e prática, indissociáveis. Trata-se de compreender
que tomar o “eu” como sendo a verdade última da ipseidade humana é a grande
ilusão e fonte de sofrimento para consigo e na relação com os outros. Quando
Cristo afirma o segundo mandamento do “amar ao próximo como a ti mesmo”, quem é
“o próximo” a ser amado?
Em
um nível mais exterior, tendemos a considerar “o próximo” como apenas os
humanos (às vezes nem isso), esquecendo de incluir os outros seres do mundo, os
não-humanos. Basta ver como nossa época tem tratado com agressão os demais
reinos da Natureza, como os animais, as florestas, o meio ambiente (10).
Mas
como vemos os seres, e mais especificamente os seres humanos? Se nosso olhar
enxergar os humanos apenas como realidades corporal e psíquica, embora esse
amor seja importante, ainda mais nesses tempos de um mundo cada vez mais agressivo
e egóico, será, entretanto, um amor restrito ao âmbito da individualidade dos
seres, um amor parcial, limitado, marcado pela preferência. Poderá inclusive
permanecer numa esfera de um vago e superficial sentimentalismo.
Há
um nível mais profundo que passa por uma compreensão maior do que seria este “o
próximo”. No Corão está dito que Deus está mais próximo do homem que sua veia
jugular (Surata 50, versículo 12, Kaf). (11).O sentido mais profundo do
“próximo” refere-se ao princípio divino, a verdade última, e não ao
“eu”-individualidade psicocorporal, agregado efêmero e residência da ilusão. Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a
si mesmo (Matheus, 16, 24). Talvez
o que o Cristo esteja orientando é que se ame a ipseidade que se manifesta na diversidade dos seres, respeitando e
cultivando o bem querer pela singularidade de cada ser, o múltiplo do Uno, mas
atentos para não fazer da individualidade a verdade última dos seres, pois ver
a diversidade como algo em si, fechado e autônomo, é cair no pior erro, o da
ilusão da separatividade, da independência e auto-suficiência ontológica dos
seres, pretensão que os torna incompreensíveis e sem sentido, e não haveria
como amar a ilusão sem nexo.
Poderíamos
ver este ângulo como um dos importantes pontos que aproxima o Cristianismo do
Buddhismo e de muitas (talvez de todas) Tradições: a delusão que temos sobre o quê realmente somos nós mesmos,
delusão fruto da ignorância que mantém os seres no ciclo da existência
condicionada. Se o amor ao próximo, seja por
sentimentos
ou obras de caridade, não for compreendido à luz do que seja este sentido do
“próximo” mais profundo, correremos o risco de restringir o “próximo” à uma imagem
refletida de “nosso” próprio ego, cujo orgulho crescerá com “nossos” atos
tomados como provas de “nossa” bondade. Seria por acaso que o maior dos sete
pecados capitais seja o orgulho? No exercício das importantes virtudes da
Compaixão e
Caridade, o primeiro passo é investigar a pretensa substancialidade do ego, e o
significado mais profundo de sermos bem-aventurados “pobres de espírito”. O
vazio do ego. (12).
Todos
os seres querem ser felizes, e buscam fugir do sofrimento. O instrumento que
aqui estamos escolhendo para arrefecer o sofrimento é a Educação. O que seria
uma Educação orientada pela Sabedoria, que abra espaço para a acolhida do
outro? Sabedoria não é sinônimo de informação. Em nossos dias, há uma grande
disponibilidade de informações, mas o que dizer da formação? Diz a Sabedoria: Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio,
antes do começo da terra (...). Bem aventurado o homem que me dá ouvidos,
velando às minhas portas a cada dia, esperando às ombreiras da minha entrada. (Provérbios,
8, 23-34).
Se
olharmos a raiz latina da palavra educar,
veremos que provém do prefixo e
(“para fora”) e ducere (“conduzir”).
Educar significa “trazer para fora”, para a luz, algo latente. Também tem o
sentido de “erguer, levantar”. Algo análogo ao conceito grego de Paidéia, proveniente da raiz pais, paidós, “menino, filho”. Educar
seria “domesticar, domar, ensinar”, como um pai que toma a sua própria mente
como seu filho, e o ensina a lapidá-la. Mas o que nós humanos temos latente,
que caberia à Educação expressar e lapidar? Nossas tendências saudáveis, como o
amor, a amizade, a sabedoria, a arte, a beleza, a propensão à iluminação
libertadora. Mas, também, temos nossas tendências latentes não-saudáveis da
cobiça, do ódio e da delusão. E a maior das delusões é o apego à crença de que
o ego, o eu, seja nossa identidade verdadeira. Desapegar-se dessa crença não é
fácil: Cuidai vós que vim trazer paz à
terra? Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco
divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três (S.Lucas, 12,
51-52).
A re-educação, esforço e luta interior, para além das dualidades e
da delusão. Um longo caminho. A grande Paz, momento a momento, presente. Nas
palavras de Gandhi: Devemos ser a mudança
que queremos ter.
Um homem muito religioso, ao morrer, chegou ao portão dos céus.
Bateu no portão fechado. Uma voz do outro lado lhe perguntou: “O que queres
aqui? Quem és tu?” O homem respondeu: “Sou Fulano de Tal, dediquei minha vida à
oração e à
caridade, quero agora minha recompensa”. Ao que a voz respondeu:
“Aqui não há céu nenhum, vá procurar em outro lugar”.
O religioso voltou à Terra, e depois, ao morrer, insistiu no seu
direito à recompensa, batendo no portão. A voz lhe perguntou: “O que queres
aqui, quem és tu?” O religioso repetiu que era Fulano de Tal, e listou suas
novas boas obras no mundo. A voz lhe mandou buscar a recompensa em outro lugar,
voltar à Terra, ali não havia céu nenhum.
O religioso voltou à Terra, passou mais uma vida meditando, e ao
morrer, novamente bateu no portão.
A voz perguntou: O que queres aqui? Quem és tu?
O religioso respondeu: Sou Tu.
O portão se abriu.
Notas
(1) Trabalho apresentado no I
Simpósio de Ciências da Religião: Religião: Alteridade e Educação, 25-27
Agosto 2008, Faculdade de Ciências da Religião, das Faculdades Integradas
Claretianas, SP. Meus agradecimentos a Zlatica de Farias ,
pela revisão e contribuições sugestivas.
(2) Shaker, Arthur. 2002, p. 79.
(3) Sobre o tema, veja, entre outros: Santos, Mario
Ferreira. 1965.
(4)
Guénon, René. 1976 a , pg. 58-59.
(5) Guimarães, Ruth. 1983, p.228.
(6) Sullivan,
Lawrence E. 1988, p. 16-17.
(7).
Yogavacara Rahula
Bhikkhu, 2006, p. 23, extraído do Samyutta
Nikaya, XXII, 79, Vol. III, p. 916.
(8) Shaker, Arthur. 2003, p. 110.
(9) Sobre a
Metafísica e a Cosmologia, veja Guénon, René, 1976 b.
(10) Sobre este tema, veja, entre outros:
Nasr, Seyyed H. 1977.
(11) Dawood, p.122, Challita, p.283.
(12) Shaker, Arthur. 1999, p. 43-44.
BIBLIOGRAFIA
GUÉNON, René.
Melanges, France, Ed. Gallimard, 1976 a .
____________ La métaphysique orientale, Paris, Ed. Traditionelles, 1976 b.
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega, São Paulo, Cultrix, 1983.
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GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega, São Paulo, Cultrix, 1983.
LEITE,
Serafim. Cartas dos primeiros Jesuítas
do Brasil, 1954, São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São
Paulo, 1954. v I.
NASR,
Seyyed H. O Homem e a Natureza, Rio
de Janeiro, Zahar, 1977.
SANTOS,
Mario Ferreira dos. Pitágoras e o Tema
do Número, SP, Ed.Matese, 1965.
SEREBURÃ
et all (SEREBURÃ; HIPRU; RUPAWÊ; SEREZABDI; SERENIMIRAMI). Wamrêmé Za’ra, nossa palavra: mito e história do povo Xavante, São Paulo, Senac, 1997.
SHAKER,
Arthur. Buddhismo e Christianismo. Esteios e Caminhos, Petrópolis,
Vozes, 1999.
______________
Romhõsi’wai hawi rowa’õno re
ihöimana mono – a Criação do mundo segundo os velhos
narradores Xavante, tese de doutorado, IFCH, Fac. Ciências Sociais, Etnologia
Indígena, UNICAMP, Campinas, 2002.
_______________ A travessia buddhista
da vida e da morte
– Introdução a uma Antropologia Espiritual, Rio, Gryphus, 2003.
________________ O lugar do Homem nas doutrinas
tradicionais, p. 37-48, Revista UNICLAR, ano IX, no. 1, SP, Faculdades
Integradas Claretianas, nov. 2007.
SULLIVAN, Lawrence E. Icanchu’s Drum: an orientation to
meaning in South American religions, New
York , Mac Millan, 1988.
The Connected Discourses of the Budda. A Translation of the Samyutta
Nikaya, tradução do Páli por Bhikkhu Bodhi ,
USA , Wisdom
Publications, 2000.
YOGAVACARA
Rahula Bhikkhu. Superando a ilusão do Eu. SP, Edições Casa de Dharma, 2006.
*******
Espiritualidade oriental e Educação Humana
Maio/2010
Palavras-chave:
- Condição humana, karma, nascimento
- Mapa da vida, educação humana, método
- Nobres Verdades, habilidades, treinamento
- Sabedoria, ética, meditação
- Ignorância, libertação, felicidade duradoura
PhD em
Etnologia Indígena pela Unicamp. Antropólogo. Conselheiro da Casa de Dharma – Centro de meditação
budista Theravada (SP). Coordenador do Núcleo Neurociências, Mindfulness e
Saúde. Professor de meditação. Escritor e músico.
Resumo
Este texto tem como propósito trazer
contribuições sobre a Educação humana: por que é necessária a Educação, quais
suas formas e princípios, para qual finalidade? Toma como ponto de partida
paradigmas das tradições orientais, e mais especificamente do Budismo e
Taoísmo, e coloca como foco de reflexão nossa condição humana e as tendências saudáveis
e não-saudáveis enraizadas em nossa mente, e como essas tendências direcionam
nossa busca da felicidade. Sob qual Mapa da Vida orientamos nossas ações do
corpo, fala e mente?
Traz as contribuições das Ciências
da Religião para a construção de uma Educação humana, que se apóie em bases de
um método que seja cientificamente observável, sustentável, e comprovável pela
experiência, e possa por isso colaborar para os rumos de uma humanidade sadia, onde
todos os seres da Natureza estejam incluídos em respeito e cuidados.
Espiritualidade oriental e Educação Humana
Aspiração à Liberdade e Felicidade
Liberdade. Todos nós, seres humanos,
queremos ser livres. Livres do sofrimento, livres das constrições, livres como
os pássaros. Liberdade do pensamento, do movimento, liberdade de realizarmos
nossos desejos. Mas desde a tenra idade, descobrimos as restrições: custamos
para andar, falar, largar as fraldas. Quanto esforço de nossos pais, parentes,
profissionais envolvidos em nosso crescimento. Por que precisamos ser
educados? Não bastaria deixarmos nosso processo de crescimento seguir
naturalmente?
Primeiro nível de nossa experiência,
logo cedo: somos frágeis. Precisamos de longos apoios para nosso corpo se
estruturar: alimentos, repousos, cuidados de higiene, médicos, roupas e tantas
coisas mais. Muitos anos de dependência externa.
Segundo nível: vivemos em sociedade,
inter-sendo. Ninguém é uma ilha
isolada, ou vivendo numa ilha isolada; mesmo Robinson Crusóe encontra um
Sexta-feira como alteridade. Vivendo em comunidades, a sobrevivência social
impõe regras de conduta, pois se cada um agisse de acordo com seus desejos
irrestritos, os conflitos levariam rapidamente ao caos e à destruição da
sociedade, por conseguinte, à destruição de cada indivíduo. Mas será que a
Educação existe apenas porque somos frágeis e dependemos socialmente uns dos
outros?
Olhemos o panorama da vida em um
horizonte mais amplo e sábio. Que significado damos para nossa vida? Comer,
beber, satisfazer os desejos do corpo e da mente, ter filhos e morrer?
Pensemos: que compreensão temos sobre nossa condição humana? Pois a cada
momento, a vida nos coloca diante de um vasto campo de possibilidades: quais
escolheremos, baseados em
quê? Sem um grande Mapa da Vida, nossas ações correm o forte
risco de nos trazerem novos sofrimentos, e não almejamos nos vermos livres do
sofrimento?
Um Mapa da Vida
Um
Mapa da Vida, direção no turbulento oceano da existência: como construí-lo?
Começando pela reflexão sobre nossa condição humana. Em sua visão iluminada, o
Buddha ensina que o ser humano é constituído de cinco agregados: um agregado
corporal (rupa) e quatro agregados
mentais (nama): sensações (vedana), percepção (sañña), formações mentais (pensamento, emoções, etc., sankhara) e consciência (citta).
Por que nascemos? Seria apenas fruto
do desejo sexual de nossos pais, um espermatozóide fecundando um óvulo? A
perspectiva budista é mais complexa: sim, as condições físicas são necessárias
(e hoje em dia já há nascimentos provocados em laboratório), mas não
suficientes. É preciso a presença da consciência, sem a qual não há vida. E
isto se liga a um processo kármico de vida anterior. Nascemos por conta de
nossos karmas (ações) anteriores. Nascemos por causa de nosso desejo: desejo de
existir, sede do desejo de continuar experimentando os objetos do mundo.
Reentramos novamente, ou, melhor dizendo, prosseguimos no ciclo do nascer e
morrer, dos incessantes renascimentos no samsara.
Isto já nos coloca um ponto importante: não há como atribuir aos nossos
pais ou ao mundo a culpa/responsabilidade pelo nosso existir. A
responsabilidade pelo vir-ao-mundo, e transitar por ele, é toda nossa.
Olhemos com mais profundidade o fato
do nosso nascimento. Nosso vir-ao-mundo significa o vir-ao-mundo de duas tendências
básicas: as tendências não-saudáveis da cobiça, ódio e ignorância
(não-saudáveis porque nos criam sofrimento); e as tendências saudáveis da
generosidade, do amor, da criatividade e da sabedoria (saudáveis porque trazem
felicidade e libertação). Buddha enfatiza várias vezes a riqueza e raridade do
nascer no estado humano: imagine uma argola de madeira flutuando no oceano, e
que a cada cem anos uma tartaruga cega suba à superfície do oceano para
respirar, e que exatamente nesse momento ela emerja com a cabeça dentro da
argola! Assim é a raridade do nascer no estado humano.
E por que Buddha refere-se à riqueza
desse nascer? Porque graças à nossa capacidade mental, experienciando os
estados extremos de prazer e sofrimento, podemos pela sabedoria transcendermos
a existência condicionada e realizar nossa libertação espiritual. Aqui é que
entra a valiosíssima Educação humana.
Se houvesse sabedoria em mim
Percorreria a estrada real
Mas evitaria os atalhos
A estrada real é fácil de seguir
Mas os homens preferem os atalhos
Enquanto nos palácios reina a opulência
Os campos estão cobertos de ervas daninhas
Os armazéns públicos vazios
Vestidos com trajes suntuosos
Levam à cintura armas cortantes
Abundante é seu vinho e seus manjares
Possuem ouro e bens em quantidade
Tudo isso induz o homem a um mau destino
Não é isto afastar-se do Tao?[1]
A Educação Humana
Se
olharmos a raiz latina da palavra educar, veremos que provém do prefixo e
(“para fora”), e ducere (“conduzir”). Educar significa trazer para fora,
para a luz, algo latente. Também tem o sentido de “erguer, levantar”.
Algo análogo ao conceito grego de Paidéia, proveniente da raiz pais,
paidós, “menino, filho”: educar seria “domesticar, domar, ensinar”, como
um pai que toma a mente como seu filho, e o ensina a lapidá-la. A cultivá-la.
E o quê nós humanos temos latente,
que caberia à Educação trazer à luz e lapidar, cultivar? Exatamente essas duas
tendências, as não-saudáveis e as saudáveis. É errônea qualquer dessas duas
visões extremas: a de que nascemos “tabula rasa” (como um livro em branco que
será marcado pela experiência da vida), ou de que estamos fadados à eterna
perpetuação do sofrimento, devido aos nossos “maus karmas”. A visão correta é a
do Caminho do Meio: entre o céu e o inferno. Não podemos apagar ou ignorar os
frutos de nossas ações anteriores não-saudáveis, nem devemos subestimar os
frutos de nossas ações saudáveis, responsáveis pelo nosso nascimento humano:
temos consciência do quanto de sofrimento há no nascimento no estado animal ou
em estados infernais?
Um Método de Educação Humana
Posto
isto, qual o Método de Educação Humana proposto pela espiritualidade oriental
do Budismo ou Taoísmo? Essa primeira compreensão sobre o nascer humano é
fundamental para iniciarmos a construção de nosso Mapa da Vida. Temos de
cultivar Habilidades, através de
treinamentos que direcionem nosso corpo e mente no sentido de erradicar as
tendências não-saudáveis, e desenvolver as tendências saudáveis. Significa
assumirmos em níveis cada vez maiores as responsabilidades pelas nossas ações
nos três níveis: ações do corpo, da fala e da mente.
Em todas as tradições espirituais,
observamos que o homem “não se considera ‘acabado’ tal qual se acha ‘dado’ ao
nível natural da existência: para se tornar homem propriamente dito, deve
morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que
é ao mesmo tempo religiosa e cultural”[2].
Os treinamentos iniciáticos de
transformação espiritual são constitutivos essenciais nas sociedades de
tradição espiritual, conforme podemos constatar no imenso leque das culturas
humanas apontadas pela Antropologia. Os modos desses treinamentos são múltiplos.
Há graus parciais de libertação espiritual que podem ser realizados pela via
devocional ou a via da ação, conforme o exemplo na tradição hindu sobre a via
da devoção (bhakti marga), ou da ação (karma marga). A libertação suprema se
dá pela via do conhecimento (jñaña marga)[3].
No centro deste campo da diversidade dos modos dos treinamentos, encontramos um
fundamento essencial análogo: erradicar as impurezas e ignorâncias da mente
humana rumo à libertação e plenitude espiritual.
Retornando ao Método de Educação
Humana. Se nós humanos agimos pelo corpo, fala e mente, então é exatamente
sobre estes três níveis que a Educação deve intervir. Mas intervir não
significa impor, e sim cultivar, sempre tendo a compreensão como
princípio-guia. Trata-se de desenvolver um treinamento a partir de um paradigma
cognitivo cientificamente observável, como ponto de partida, aplicável como processo,
e passível de verificação empírica dos seus resultados. Nesse sentido, os
ensinamentos do Buddha estão perfeitamente consonantes com as exigências de uma
metodologia rigorosamente científica, desprovida de dogmas, crenças ou
aceitação cega.
Corpo, fala e mente. As práticas
educacionais nessas três esferas estão substanciadas no Nobre Óctuplo Caminho,
como a Quarta das Quatro Nobres Verdades, a fina essência, síntese de todo o
ensinamento do Buddha:
A Primeira Nobre Verdade da
insatisfatoriedade/sofrimento da existência condicionada (insatisfatoriedade
proveniente da natureza impermanente de tudo que é condicionado);
A Segunda Nobre Verdade da causa do
sofrimento (nos apegamos aos objetos físicos e mentais porque estamos presos à
uma visão distorcida de que nossos desejos pelos objetos físicos e mentais podem
ser efetivamente saciados, e com isso nos trazer uma felicidade duradoura,
ignorando a natureza impermanente de todos os fenômenos[4].
Nesse sentido, não é que a vida seja necessariamente sofrimento, é o nosso
apego aos cinco agregados do corpo e mente que causa sofrimento, nos fazendo
correr atrás do agradável e fugir do desagradável);
A Terceira Nobre Verdade: cessando a
causa, cessa o efeito (erradicando a cobiça, o ódio e a ignorância da mente,
extingue-se o sofrimento e realiza-se o Nibbana
(o Estado Incondicionado da mente, pura e iluminada);
A Quarta Nobre Verdade: o método, o
remédio do Nobre Óctuplo Caminho.
O Cultivo das Oito Habilidades
Um
Método de Educação Humana: o cultivo das Oito Habilidades. Cultivo da Sabedoria
(pañña), da Virtude Ética (sila) e da Concentração (samadhi). O princípio básico é o de que
quando nossa mente está desatenta, as pulsões não-saudáveis tendem a comandar
nossas ações e reforçar estas pulsões com conseqüências dolorosas, como um
carro de boi que cai na trilha de sulcos viciados pela repetição. Por isso,
despertar a Plena Atenção da mente é fundamental. Treinar a Plena Atenção aos
nossos cinco agregados momento-a-momento: de olho no corpo, nas sensações, na
percepção, nos pensamentos e na consciência: têm os três venenos da cobiça,
ódio e ignorância? Desapegar-se, cultivar a generosidade, amorosidade,
compaixão e sabedoria. Assim diz a voz da Sabedoria:
Eu amo os que me amam, e os que de madrugada
me buscam me acharão.
Riquezas e honra estão comigo; sim, riquezas
duráveis e justiça.
Melhor é o meu fruto do que o ouro, sim, do
que o ouro refinado;
e as minhas novidades melhores do que a
prata escolhida.
Faço andar pelo caminho da justiça, no meio
das veredas do juízo.
Para fazer herdar bens permanentes aos que
me amam, e encher os seus tesouros[5].
Dispondo as Oito Habilidades em três
grupos, temos:
O Treinamento da Sabedoria
1.
cultivando a Compreensão
Hábil: onde há os três venenos, há sofrimento, geração de karmas
não-saudáveis, perpetuação das tendências não-saudáveis, prisão. Compreender
essas Verdades.
2.
cultivando o Pensamento
Hábil: substituindo o pensamento da cobiça pelo da generosidade, do ódio
pela compaixão, do apego e ignorância pelo desapego, pelo entendimento de que
nada de fato nos pertence.
“Tal como uma gota de orvalho na
ponta de uma folha de grama desaparece com rapidez ao alvorecer e não permanece
por muito tempo, da mesma forma, brâmanes, a vida dos seres humanos é como uma
gota de orvalho - limitada e curta, com muita tribulação e sofrimento. Isso
deve ser compreendido através da sabedoria. Vocês devem praticar o bem e viver
uma vida pura; pois ninguém que nasceu poderá escapar da morte (Arakenanusasani,
O Ensinamento de Araka, Anguttara Nikaya VII.70, http://www.acessoaoinsight.net)
O Treinamento da Virtude Ética
3.
cultivando a Fala
Hábil: compreendendo que a fala tem o poder tanto de construir como
destruir, cultivamos a restrição da fala errônea, da fala áspera, da difamação
e fala inútil; e desenvolvemos o cultivo da Verdade, da fala amorosa que une, e
do Silêncio.
4.
cultivando a Ação
Hábil: evitar ações que tragam sofrimento para nós e os outros (ações como
destruir os seres vivos, roubar, abusar dos sentidos, uso de intoxicantes
físicos e mentais, pois anuviam a mente e levam à desatenção, que por sua vez
conduz a ações não-saudáveis, geradoras de sofrimento). Conta uma história que
alguém subindo uma montanha, ao se ver preso por uma tempestade de neve, embora
fosse avisado que não deveria matar nenhum ser vivo, ao sentir fome matou um
velho rato, pensando não haver grande mal nisto. Tempos depois, foi chamado ao
tribunal, pois sucede que este rato se alimentava de insetos doentes, e com sua
morte, se espalhou a doença e com a morte de todos os insetos, cessou a
polinização e fertilização das plantas das encostas da montanha, e com isso
veio a desagregação do solo, a erosão, e um grande deslizamento de terra matou
muitas pessoas que estavam subindo a montanha[6].
5.
cultivando um Meio
de Vida Hábil: como vivemos nosso cotidiano, principalmente o tipo de
trabalho: causa sofrimento para nós e os outros? Profissões não-saudáveis como
o comércio de armas, de seres vivos, de químicas destrutivas, negócios ilícitos
e outras formas de trabalho inábeis?
O Treinamento Meditativo
6.
cultivando o Esforço
Hábil: evitar as condições que criem o surgimento de estados não-saudáveis;
se surgirem, não alimentá-los, livrar-se deles; favorecer condições que criem o
surgimento de estados saudáveis, e procurar manter e desenvolvê-los. Lembrando
que os estados mentais surgem e se reforçam/enfraquecem de acordo com causas e
condições, e que o alimento é uma
das importantes condições desse processo: quais alimentos oferecemos para nossa
mente a cada momento? Saudáveis, não-saudáveis?
7.
cultivando a Plena
Atenção Hábil: treinando, pela prática da meditação contemplativa, a
importante qualidade mental da Plena Atenção da mente sobre tudo que
experienciamos no corpo e na mente a cada instante. Plenamente atentos ao
apego, aversão e falta de compreensão da realidade como ela é, impermanente,
por isso insatisfatória. Soltar, desapegar.
8.
cultivando a Concentração
Hábil: treinando, pela prática meditativa, a qualidade mental da concentração
(usando, por exemplo, a respiração como foco de concentração), pois com a mente
concentrada podemos ver a realidade do corpo e mente como ela é, em sua
natureza efêmera, transitória, sem apego ou aversão, liberando a mente da
cobiça, ódio e confusão.
Os Oito
treinamentos da Educação Humana, embora apresentados nesta seqüência, são
praticados simultaneamente, cada um apoiando os outros sete, como uma Roda de
oito aros: quando gira, não se diz qual é o ponto de início. E quando
cultivamos a mente meditativa, alcançamos e aprofundamos a Compreensão Hábil, e
assim sucessivamente, até a total purificação e libertação da mente de todas as
impurezas: isto é o cume da Educação
Humana, a mente pura e iluminada, plena em si mesma.
Os frutos
desta Educação são benéficos para cada ser humano, bem como para a sociedade, e
para todos os seres, incluindo aí os demais reinos da Natureza. O método
educacional é simples e direto, ainda que exigente, pois implica em nadar
contra a corrente que nos empurra para o sofrimento e delusão. “É difícil”, diz
com freqüência a nossa mente diante do desafio reeducativo. Mas o que é bom e
definitivamente libertador é raro e trabalhoso. Afinal, o que queremos:
migalhas de ilusão com toneladas de sofrimento para nós e os outros, ou
Plenitude?
Bibliografia
Eliade, Mircea. O Sagrado e o
Profano. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d.
Flickstein, Matthew. Swallowing the River Ganges .
A Practice Guide to the Path of Purification. Boston :
Wisdom, 2001.
Goldstein, Joseph. A Experiência do
Insight. São Paulo: Roca, 1995. [A história citada está em Mount Analogue, René Daumal, 1959,
Pantheon Books].
Guénon, René. Initiation e Réalisation Spirituelle. Paris : Éditions Traditionelles, 1980.
Lao Tse. Tao Te King. O Livro do Sentido e da Vida. São Paulo: Hemus, 1983.
Referencia eletronica:
[1] Lao Tse, p. 125, 1983.
[2] Eliade,
Mircea, p. 194, s/d.
[3] Guénon, René, p. 144, 1980.
[4] Flickstein, Matthew, p. 60, 2005.
[5]
Provérbios, 8, 17-21.
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Educação, espiritualidade e humanidade
Contribuições budistas para a realidade brasileira
Dr. Arthur Shaker