Uirá
Sabedorias Milenares
Indígenas e Asiáticas
no Desenvolvimento
Humano
Arthur
Shaker
Uirá Lokutara Magga
Sabedorias Milenares
Indígenas e Asiáticas – Instituto
Quando
nos deparamos com o mundo indígena, é difícil não sentirmos uma estranha
inclinação diante dele. Digo estranha porque de modo geral não paramos para
elaborar em nossa consciência os significados mais claros e profundos desta
inclinação.
Para
alguns é uma inclinação atrativa, gerando na mente sentimentos e imagens de
beleza pelo modo de vida indígena, as formas e cores de sua arte, com seus
adornos de plumário vívido, sua cerâmica ornamentada de expressivos desenhos,
sua pintura corporal, cantos e danças. Sentimentos de simplicidade em contato
com a Natureza, pureza que parece termos perdido em algum lugar e tempo
distante no passado, magia no olhar e no lidar com a vida que nos causa inveja
e vontade, ou talvez fugaz percepção de serem povos que nos reportam a uma
realidade misteriosa e ansiada. É como contemplar um amanhecer. Quantos
aprofundam, o que está dentro desta inclinação extasiante?
Para
outros, a inclinação é aversiva. Um misto de raiva, medo e intolerância, um
diferente que perturba e ameaça nossa auto-imagem de certezas, estética e visão
de futuro. Um estranho, que nos deixa inseguro. Quantos aprofundam, o que está
dentro desta tendência aversiva?
E para
outros, a indiferença, cobrindo a mente de névoa que impede ver, pudesse ao
menos por um breve instante, a misteriosa maravilha dos povos e seres em sua
diversidade.
Para melhor compreendermos a espiritualidade dos
povos indígenas, e seus diálogos com as espiritualidades asiáticas, é preciso
que observemos e lidemos com alguns desafios.
A primeira
dificuldade é que os povos tradicionais têm uma visão metafísica e espiritual
da realidade, e os pensadores ocidentais em sua maioria são formados em uma
visão dessacralizada da realidade. Por isso o olhar de suas ciências permanece
na superfície da realidade desses povos, quando não no preconceito em graus
variados. E para o diálogo com as milenares tradições da Ásia, principalmente
no Taoismo, Hinduísmo e Budismo, necessitamos do clareamento dos fundamentos desses povos, em
suas tradições espirituais, sua sabedoria e rumo espiritual.
Nessa
trajetória, da busca do conhecimento, não só teórico, mas também, e
principalmente, da prática espiritual - pois para esses povos a sabedoria exige
ao mesmo tempo, teoria e prática – necessitamos nos abrir para os nexos sutis
entre as tradições da Ásia e as tradições indígenas, e de um modo mais amplo,
entre todos os povos tradicionais do mundo. Estes nexos constituem os
fundamentos de uma sabedoria universal, Sophia
Perennis, subjacente às variedades das formas tradicionais.
A
segunda dificuldade, em parte ligada à primeira, é a de como conhecer uma
realidade aparentemente tão diferente da vivência do mundo moderno. Como a cor
branca pode conhecer a vermelha? Pode alguém de um povo não-indígena
compreender um povo indígena, pode o branco olhando o vermelho, ver o vermelho
e não um borrão misturado? Talvez alguns pensadores dissessem ser impossível,
mas a sabedoria dos antigos sugere que algo é viável neste sentido, e que para
isso procuremos, na medida do possível, esvaziarmo-nos de nossas ideias
preconcebidas, colocando um pouco de lado nossas próprias lentes, que estão
ficando cada vez mais cinzentas, e permitamos que uma sabedoria mais profunda
que reside em nós propicie abertura de janelas em nossa compreensão sobre a
vida, suas manifestações e seu sentido maior.
Outra
dificuldade está na grande diversidade cultural dos povos indígenas no Brasil,
mais de duzentos povos, seria pretensioso e inviável cobrir a extensão de suas
religiões.
Também é
importante lembrar que os povos indígenas têm uma tradição oral de transmissão
de sua sabedoria. Seus mitos e cantos sagrados têm muito de secreto, portanto
eles não têm porque abrir aspectos mais interiores de sua espiritualidade para
o mundo de fora, ainda mais se considerando a violência que os homens brancos
representaram e ainda representam para os povos indígenas. Isto acaba
inevitavelmente pesando na sua relação também com os pesquisadores que escrevem
sobre o mundo indígena, desde os primeiros viajantes colonizadores,
missionários e etnólogos. Quer dizer que as informações coletadas e as
interpretações feitas pelos pesquisadores não-indígenas, principalmente aquelas
que dizem respeito à vida espiritual mais íntima, estão sujeitas à possíveis
distorções, mesmo que inconscientes, ainda mais levando-se em conta o já
referido fato de que a formação ocidental e moderna de um pesquisador raramente
inclue alguma educação ou vivência metafísico-religiosa, e quando o faz, a leitura que é feita sobre o mundo indígena
corre sempre o risco de ser uma interpretação ocidentalizada do universo
metafísico indígena. Mas ao mesmo tempo, a maior parte do material escrito
sobre os povos indígenas ainda é feito por não-indígenas, embora isto já esteja
mudando. Por outro lado, temos de lidar com as dificuldades práticas do contato
direto com o extenso e diversificado mundo indígena.
Finalmente,
e felizmente, já estão surgindo livros sobre a cultura indígena escritos pelos
próprios indígenas, que mesmo correndo o risco de certa perda ao terem de usar
uma língua não-indígena para expressarem uma sabedoria que está intimamente
ligada ao valor intrínseco de sua língua sagrada, ainda assim a riqueza é
imensa porque expressa por eles mesmos. Os melhores intérpretes da sabedoria de
um povo tradicional são seus próprios intérpretes qualificados, abrindo com
maior e justa precisão sua sabedoria Milenar, e que algo dessa sabedoria seja
útil para abrir os olhos do mundo moderno sobre a grandeza do conhecimento dos
povos indígenas e seu alerta sobre os sérios perigos que a tendência dessacralizante
do mundo moderno significa neste fim de um ciclo da humanidade. Para aqueles
que buscam o caminho da sabedoria, nunca é demais lembrar que este conhecimento
será a semente que será plantada no novo ciclo, por aqueles que a souberem
cultivar.
Povos Indígenas do Brasil
Dez
milhões de pessoas. Estima-se que quando os portugueses chegaram a estas
terras, a população variava entre cinco e dez milhões de nativos, distribuídos
por cerca de mil grupos indígenas diferentes, ocupando toda esta terra que hoje
é o Brasil. Hoje temos uma população indígena estimada em 900 mil pessoas. A
redução drástica expressa nestes números revela a violência destes cinco
séculos de ocupação imposta pelas armas, epidemias de doenças para as quais os
povos indígenas não tinham defesas, a escravização, as reduções, a proibição do
uso das línguas nativas, a expulsão de seus territórios tradicionais
obrigando-os a recorrentes migrações e difíceis readaptações.
Nos
últimos vinte anos, a despeito das previsões de extinção, a população indígena vem
crescendo visivelmente. As 900 mil pessoas distribuem-se em 209 povos indígenas
diferentes, em mais de 5 mil aldeias. No Brasil ainda há povos indígenas sem
contato com o homem branco, estimados em cerca de 41 povos, em alguns casos
deliberadamente evitando o contato, os chamados “indígenas arredios”, e dezenas
de outros não ainda identificados(1).
O número
exato da população indígena, assim como sua exata distribuição pelo território
brasileiro, são dados sempre precários. Os povos indígenas se movimentam
bastante, o que torna difícil sua contagem, ainda mais nas áreas de fronteira
do território nacional, cortando áreas indígenas cujos povos existem em ambos
os lados da fronteira e a cruzam frequentemente nem sempre sem problemas.
A
própria classificação dos povos indígenas é um tema controvertido. Um dos
critérios que se tem utilizado para agrupar os povos indígenas é a sua pertinência
a um grupo linguístico. Observou-se que certas línguas têm várias afinidades
entre si, sugerindo que talvez participem de um tronco original comum. E que
esta afinidade tem relações com o modo de pensar e viver destes povos, ao menos
sob certos aspectos da vida. Por isso, a classificação dos povos indígenas
segundo possíveis troncos e famílias linguísticas teria certa importância para
seu conhecimento, embora haja divergências sobre esses critérios.
A
família Tupi-Guarani tenderia a se situar em áreas de floresta tropical e
subtropical; as de língua não-Tupi-Guarani do tronco Tupi se distribuem nos
Estados de Mato-Grosso, Rondonia, Pará e Amazonas; o tronco Macro-Jê (cujo
constituinte mais numeroso é a família linguística Jê) distribue-se pelos campos
cerrados desde o sul do Maranhão e Pará, passando por Goiás e Mato-Grosso indo
para São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A família Karib,
cuja maioria estaria na região das Guianas, ocupa no Brasil as regiões do Pará,
Roraima, Amazonas e Mato-Grosso; as famílias Aruak e Arawá a região Norte
(Acre, Amazonas, Mato-Grosso), Mato-Grosso do Sul e São Paulo. Teríamos também
as famílias linguísticas não incluidas nos agrupamentos anteriores, as chamadas
famílias linguísticas menores ao Sul do Amazonas (como os Guaikuru, Nambikwara,
Pano e outros); as famílias Tukano, Maku e Yanomami e as línguas isoladas (2).
Também
as áreas geográficas habitadas pelos povos indígenas são bastante variadas,
indo desde as florestas, as regiões do cerrado, dos sertões, até as praias
litorâneas e também as periferias de algumas grandes cidades. Para os
propósitos deste livro, estas referências são apenas para descortinar a grande
amplitude e diversidade dos povos indígenas no Brasil, seus ecossistemas e sua
riqueza cultural.
Notas
(1) Núcleo de Cultura Indígena, São Paulo, 1995.
(2) Esta classificação linguística está baseada nos
estudos de Aryon Dall’Igna Rodrigues, em Línguas Brasileiras- Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Ed. Loyola, 1986.
Dados sobre distribuições segundo línguas, população, localização geográfica
podem também ser encontrados, entre outros, em Os Indígenas e a sociodiversidade, C.A. Ricardo, in A Temática
Indígena na Escola, Aracy Lopes da Silva e Luis D.B.Grupioni (orgs.).
Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995; Indígenas
do Brasil, Julio C. Mellatti. SP-Brasilia: Hucitec, 1987. O Núcleo de
Cultura Indígena também possue vários levantamentos sobre esses dados.
Caminhos espirituais
A vida é como um rio serpenteando por
sucessivas paisagens. Momentos significativos marcam as passagens por fases da
existência, a morte de uma etapa anterior, o brotar e desenvolver da etapa que
se segue. A civilização moderna praticamente abandonou qualquer rito de
passagem, e o que permaneceu tende a ser mais uma cerimônia exterior, uma festa
social em torno do nascimento, ou a já quase pertencente ao passado a entrada
na adolescência marcada por algo semelhante a um baile de debutantes, ou a
festa do casamento e as exéquias do funeral.
Para os
povos tradicionais, as passagens pelas fases da existência são vividas por meio
de ritos ricos de significados simbólicos entrelaçando as ramas do viver como
um cesto de arquitetura metafísica. Nada é trivial ou vulgar, a ritualização
engendra e expressa os sentidos mais profundos das coisas. O rito é uma
ordenação das ações segundo as verdades superiores que estão na base de cada
tradição, de acordo com seus modos próprios e singulares de unir o Céu e a
Terra, sendo instituídos por seus fundadores míticos, e por isso os ritos são
de origem supra-humana. Nesse sentido, rito
e mito expressam e se esforçam por
aproximar seus praticantes do seu Eixo do Mundo, axis mundi, por isso não podem ser confundidos e rebaixados à noção
que o mundo moderno faz da “cerimônia” ou “solenidade”, estes reduzidos a
eventos quase apenas sociais e profanos, de origem apenas humana e de efeitos
restritos ao domínio periférico e emotivo, exterioridades que podem ter com os
ritos apenas uma relação de casca ou vagas lembranças de superfície, quando não
degradados em seu verdadeiro sentido. O rito
é a reta, síntese arquetípica da
ação cor-reta, que mesmo em sua
aparência torta, aponta como flecha
para o Centro do Mundo.
Segundo as sabedorias milenares, a existência,
o mundo, não pode ser compreendido quando se perde a intelecção do que possam
ser seus princípios fundantes: podemos entender o que seja um galho em si, se
seccionado de sua verdade inclusiva, a árvore? Não é preciso ter ido à escola
para percebermos que o nosso mundo se caracteriza por ser uma realidade
limitada. Queiramos aceitar ou não, a todo instante nossa percepção nos
relembra que, como seres humanos, somos limitados: doença, morte e finitude
andam juntos com o homem. Mas o limitado não tem razão suficiente em si. À
semelhança do exemplo do galho, se o percebemos como limitado em seu contorno
fechado é porque o tomamos como objeto supostamente destacado da árvore. Mas
ontològicamente, o que é mais limitado só pode ter seu fundamento no que é
menos limitado, o galho tem na árvore seu princípio. Abrindo essa operação
ontológica, a árvore por sua vez só existe a partir do espaço em que se integra
e se nutre. Integralizando essa operação, que é simultaneamente reintegrativa e
cognitiva, chegamos ao Infinito Transcendente, que é simultaneamente o ponto de
partida necessário. Partida para a manifestação dos mundos relativos e
limitados como o nosso, e ao mesmo tempo chegada, quando se busca o retorno à
Fonte.
O
Cosmos, enquanto realidade condicionada, é a manifestação de certas
possibilidades contidas na Realidade Incondicionada. Utilizando uma linguagem
platônica equivalente, o Cosmos é a manifestação, de modo distintivo, de certas
possibilidades contidas nos Arquétipos divinos Em sua natureza Inominada ,
Nibbana, o silencioso repouso imutável, a anterioridade do Céu e da Terra. Diz
o Taoísmo: do Tao sem Nome, o Absoluto, surge o Um, a Unidade Primordial, o Ser
como princípio de todos os seres; os dez mil seres nascem do Ser e o Ser nasce
do Não-Ser. Para que as possibilidades de manifestação venham à existência, a
Unidade primordial se polariza, surgindo o Dois, os dois princípios
fundamentais da existência, o polo ativo e essencial, designado na tradição
hindu como Purusha, e o polo passivo
e substancial, Prakriti.
Reencontramos concepção análoga entre os taoístas: o Tao engendra o Uno, o Uno
engendra o Dois, Yang-Yin, o Dois engendra o Três, e o Três engendra os dez mil
seres.
E o desafio, aqui e agora: o caminho
de volta, ao Incondicionado, a Terra sem Males, Ivy Mara’ey, dizem os povos Tupi-Guarani. A cessação do sofrimento,
pela tranquilização, concentração e sabedoria no Nobre Caminho Óctuplo, legado
dos Buddhas. Treinamentos.
Escritos
e Cds do autor
Livros
Buddhismo e
Christianismo
A Travessia Buddhista
da Vida e da Morte – Introdução
a uma Antropologia Espiritual
Mindfulness (Meditação da
Consciência Atenta), Neurociências e
Saúde
Os Senhores da
Criação do Mundo Xavante - Romhõsi’wa
Por
Dentro do Escuro – Ed. Global
A
Espiritualidade das Tradições Indígenas do Brasil
Antropologia
dos Mitos e Ritos
As Religiões Orientais - Cosmovisões, Mente humana e Libertação
espiritual
Cds
Bhava Chakra
Interiores do Ser-tão
Juventude e Rebeldia, Corações
Coração e Sonhos, de
meninas
Coração e Sonhos, de meninos
Roteiro de Caminhos e
Paisagens
Travessia dos Oceanos e Mentes
Estrelas no céu de Áfricas
Uirá em busca da Grande Luz, Maíra
****
Aquidauana e o coração
seu amigo, um menino
Arthur
Shaker, julho/81
Aquidauana, chefe dos remanescentes quaiaquis, estava cansado. A cidade dos homens modernos sugara-lhe até as penúltimas forças. As últimas, o chefe guerreiro cuidara de conservar, seriam elas a tirá-lo dali, do inferno.
Os
homens modernos, e suas cidades. Aquidauana prescrutava suas almas, como
sofriam, prisioneiras daquelas rotinas de escritórios e fábricas, labirintos
por onde o espírito penava, sem poder olhar os céus e os horizontes.
E por
debater-se nas misérias e paredes, sem enxergar as saídas, os espíritos dos
homens das cidades giravam em pensamentos escuros e incessantes, dentro de si
mesmo, afogavam seus corpos em álcool, sexo, e tralhas, tudo inútil.
Insaciado,
o espírito se arrastava, olhos no chão, aprisionado.
Aquidauana
sentia-se triste, muito
triste.
Os homens, ele, o sofrimento, aqueles
que dizimaram
seu povo
quase todo, na ambição
de seu progresso.
Aquidauana
sentia pena, de todos.
Sair da
cidade, preciso sair. Esses ruídos, motores,
dia e noite, violentando minha alma, meu corpo, lutando, veneno nos
ares, a cidade enlouquecida e os homens
obrigados a suportar a tirania do tirania do trabalho, imposto pelos donos da
matéria, necessária à sobrevivência da carne,
eles e seu poder, as cidades se concentrando, lucros e misérias.
Ô, meu
Pai, posso fazer tão pouco, por teus filhos.
Aquidauana tinha assistido à destruição
de seu povo, pedira ao Grande Espírito que o levasse também, para lá, onde se
dirigiam os espíritos dos guerreiros de
todo o mundo, já não via mais
sentido ficar aqui, sem sua gente, solitário. Caminhava pelas estradas e
cidades, não encontrava mais razão, tudo se partia, por dentro.
Nem
mesmo a presença de seus três companheiros, sobreviventes como ele, nem isso
estancava a torrente por onde fugia-lhe a alma. Sá morte libertaria seu
sofrimento.
Era uma
noite escura, Aquidauana e seus companheiros dormiam, sob uma ponte da grande
cidade, ao abrigo da chuva. E no sonho, todos eles viram abrir uma fenda no
céu, e por lá descer um pássaro trazendo um suas costas um menino, arrodeado de
luzes.
Majestoso,
veio até eles e disse:
-“Choras
a dor do teu povo extinto, e clamas por tua morte.
Mas o
Grande Espírito sofre por todos seus filhos
feridos e ceifados pela ambição dos
homens gananciosos.
Sofre Ele calado, porque deu ao seu
filho a liberdade, os dois versos.
Já vai
muito a desgraça, e Ele me mandou
que
avisasse a ti e teus companheiros
idem aos
quatro cantos da Terra
reunir
os reminiscentes do teu povo disperso
e quem
mais te ouvir
e
prepara os homens para a Revelação
pois que a Noite sonda a Terra, com sua
Espada justiceira”.
O trem demorava a chegar. Apesar de todos seus esforços, Aquidauana sentia ter realizado muito pouco de sua missão. Suas forças eram curtas, precisava sair, deitar seu corpo nas águas cristalinas do escondido córrego, lá, nos interiores, terras silenciosas, de sua infância. Repousar. Refazer-se.
O
trem titac-titac, embalando meu coração. Meu espírito viaja, solto, tuas
paisagens.
Construções,
fundos de quintais, o outro lado da cena.
Serpente
de ferro, dentro de ti escapo, atravesso, é de manhã, fria.
Meu
avô, tu te lembras, os alimentos preparados por tuas mãos, elas nos conduziam
aos caminhos da grande cidade. Meu avô.
Os
homens, matando seus semelhantes por tão pouco, acumular bens.
Diáfana
luz, cobrindo a memória da infância, tu anjo da guarda.
Sofrimento
e dor, um dia verei liberta a luz, de meu espírito?
Ele
a tudo assiste, calado, a cegueira dos incrédulos.
Manhã
de inverno, assim despertava meu pai, a inspecionar se veio, a geada.
Nas
fímbrias das paredes, nos entulhos, na pupila daquele menino que brinca
mergulhado na esfera do mundo encantado, emana o Amor. Poucos viram.
O
trem se insinua, por dentro dos bairros pobres, nossas gentes trabalhadoiras.
Tuas
fábricas, escolas, construções, tuas obras, um dia serão tuas, para ti.
Não
esquecerei jamais de tuas ruelas, Paraty, em teu chão nossa tenda acolheu
nossos corpos, doce Princesinha, e já cedo eu conhecia a tristeza, do espírito
contido em corpo fino. Tu não ligavas, me consolava, mas eu era um menino,
guerreiro rebelde.
Vence
o trem a intrincada, de concreto, caatinga.
Ei-lo,
pai carreando, seus dezessete filhos, todos prenhes.
Cada
um, trazendo sua história, cruz.
Sacolas.
Nenhuma igual.
Refrigerantes
e biscoitos. O vagão germina e acalenta, família. Festa.
Olha cerveja,
guaraná, revista. As crianças tentadas, faíscam.
Kuriêi, Kuriêi, matá.
Meu povo. Mestiços de tu tierra. América.
Flecha de fogo risca
os céus, Anunciação.
Sol de prata nos
cabelos ondulantes das palmeiras, vento, me chama para dentro, do Mato Grosso.
Joema,
teus olhos d’água, verdes claros, olhando espantados a lucidez de ver o
fantástico mundo da realidade, como se tudo fosse absurdamente
belo e estranho, tua inocência desmanchou a tênue máscara com que os
homens se escondem e fingem uns diante dos outros. Foi demais, eles gritaram,
histéricos, vejam, ela está louca, possuída. E te puseram, fora, o perigo.
Espírito,
te verei um dia liberto, sementes plantadas, se abrindo, paisagens
colhidas romperem-se nos clarões
de suas verdadeiras luzes,
brilhos?
Céu, teu
azulão, abóboda celeste, todas tuas estrelas, a carícia da luz da Lua,
descendo, o céu é minha casa, de lá vim, para lá irei, aqui aprendo, conquisto
com meu trabalho e sofrimento, meu direito à vidas superiores.
Constelações,
o movimento astrológico, mapas e roteiros da senda divina, caminho, ao Infinito.
Aquidauana
irmão guerreiro, sou apenas o poeta, cantando em meus versos teu caminho,
crucix, missão sagrada. o Grande Espírito me acalma.
O
valente guerreiro, e o trem adentrando, cada vez mais.
Que
minhas palavras não maculem o espaço do íntimo sagrado. Pureza.
Noite
negra sem luar e vens tu em meu sonho a dizer que o homem deve seguir seu
destino e a consciência resiste, tão difícil, nos dias de hoje, crer no
destino. Tola consciência, terás de ver e aceitar, o caminho das estrelas.
Ah,
quando se realizar , o que difusamente diviso, inefável reino!
Espíritos
de companheiros mortos atravessam a
tela de meus sonhos.
A foice da brutalidade, zeladora da ordem tirana e
injusta, ceifa a sensível vida dos
amantes da liberdade.
Noite
madrugada no Hemisfério Sul. Aquidauana prescruta o céu, astrológico olhar,
olha, uma estrela cadente. Silencio. O canto dos galos, reconheço suas
localizações, uns aqui, outros lá, no mais profundo.
Investe
o trem, e êi-la, ao cair da tarde, no azul-verde angelical, ela, a Lua crescente, e Vesper,
a nos seguir.
Música,
inocente, se achegar, e subitamente uma faca, vem, querendo matar, o violeiro,
cantador. Sertões, do interior, os homens acostumados a acreditar, que a vida
não tem valor, só na valentia o seu orgulho afirmar. Terra braba, sem a visão
do objetivo superior, turvar a vista de álcool, qualquer motivo para matar,
defender a auto-imagem do pequeno homem, valente e sempre perdedor. Um dia alguém mata, o que era antes
matador. Compaixão, por ti, amor.
Um
ramalhete de pequenas flores a ti, espírito das águas, córrego cristalino, rio
das águas, teu borbulho.
Sol a
pino, sombra tua, ô grande árvore, tuas raízes: dedos se perdendo lá prosfundos
da terra, vermelha.
Yuma,
saudades tantas de ti, quando caminhávamos juntos e as areias brancas gemiam de
gozo no aperto carne seda de teus amorosos pés. E íamos, rindo muito, eu nuca
resisto, acaricio, aperto... Tu rias, zombavas, esses homens, parecem crianças,
não lhes cabem fronteiras
o que imaginam, com o corpo de uma mulher. Yuma,
princesa.
Já se
passam dias, as areias azuis escorrem pelas ampulhetas, sem cessar. As forças
não são muitas, mesmo refeitas, mas assim mesmo, deverão se usar. Não são
poucos os homens de bem, meus aliados na tarefa a completar. Ah, como é difícil
o caminho do homem. Então não o percebo?
Basta olhar para dentro de mim. Ora acredito, vejo, pressinto, ora se rompe,
tudo se dilui, farelos no ar.
Na casa
de meu Pai, tudo será diferente, outras cores, outra consistência, ai, também
gosto desta, passageira.
Pousavam
sobre aas árvores, cruzando os céus, todos os pássaros, a me lembrar, o que a
cidade destruiu.
Yuma,
quando da primeira vez te amei, uma auréola de ternura e intimidade resguardava
nosso laço. Era só tu e eu, um para o outro, um só do outro, namorados,
inocentes. O dia que me disseste que querias amar a tudo e a todos, entregar-se
a tudo e a todos, a terra rachou sob meus pés e durante intermináveis giros do
Sol e da Lua eu vaguei sangrado pelos abismos escuros. Tu me fizeste um homem,
tu e tua convicção com que defendes a voz de teus sextos sentidos. A deusa, do
Amor, tu a vens revelando, a nós, tristes e pequenos homens. Toda noite, ao me deitar,
rogo o Grande Espírito te proteger, em teu sagrado lumiar. Yuma, quando, um
dia, te beijar.
Paraguai,
mi Paraguai, tu guaranias, rincõnes, corazón. Paraná. Luminosa visão do Berço-Celeste, o menino
chora, tanta felicidade.
Aquidauana
sentia forte necessidade de ir até o córrego de águas cristalinas. O Sol era
abrasador, seria bom aquele frescor, para seu corpo.
E lá
chegando, ao sagrado íntimo das matas, pequena fada-mulher de onde emanava a
pequena árvore, sombreando o córrego aconchegado nos colos de pedras bacientas,
se despiu Aquidauana e começou a reverenciar o espírito das águas, da mata, o
Sol, a luz, os seus antepassados.
Aquidauana sentia pena dos homens modernos, que perderam essa comunhão, essas
crenças. Perderam? Verdade é que nunca
conheceram, sementes adormecidas no recôndito de seus corações. É preciso despertá-las. Não era fácil, a
missão de Aquidauana, transmitir, o Invisível.
Arthur Shaker
Tudo era claridade, não existia nada.
No princípio não existia nada, só Maira e aquele
clarão (l)
Esta misteriosa assertiva inicia uma versão dos mitos
de criação do povo indígena Kaapor (2). Sendo os povos indígenas
povos tradicionais, toda sua estrutura de vida e pensamento se
fundamenta na compreensão metafísica da realidade, ligando Céu e
Terra. Sendo o mundo terrestre uma expressão manifesta e limitada do
Transcendente celeste, não há como compreender aquele sem este. O
caminho da compreensão do mundo indígena exige, como decorrência
lógica inevitável, acompanharmos a ontologia de constituição do
mundo a partir de sua Origem. Podemos conhecer os ramos de uma
árvore, partindo de sua Raiz e chegando até eles, ou vir dos
frutos, folhas e ramos, e, descendo pelo Tronco alcançarmos a Raiz.
Partamos dos mitos de criação do mundo, segundo os
relatos indígenas. A palavra mito designa aqui a forma
sintética de transmissão das fundações atemporais do mundo, sendo
o mundo expressão no tempo e no espaço, manifestação transitória
do eterno. Quando se perde a capacidade de ver assim os mitos
tradicionais, e se vulgariza seu sentido rebaixando-os ao senso
-comum do que seria falso, fantasioso e ilusório, em contraposição
a uma imagem mental do que somos levados em nossos dias a imaginar
como sendo uma explicação científica e racional da realidade, é
porque vivemos em uma época em que a captação espiritual e
simbólica do mundo foi tornando-se opaca e incompreensível. Então
a compreensão do mundo indígena se torna difícil para a maioria.
Mas adentremos com atenção no estranho mundo indígena, buscando
fazer deste trilhar um exercício de sabedoria.
À primeira vista, poderia parecer que anterior à
criação era o nada : no princípio (no começo ,anterior à criação
) não existia (era o ) nada. Como se o mito indígena carecesse de
uma coerência lógica, fazendo o mundo surgir do nada, paradoxo que
parece se re-encontrar em outros mitos de criação, como na Gênesis
do Velho Testamento. Examinemos alguns termos-chaves:
No princípio. Um dos sentidos sugeridos é o da
anterioridade temporal, no passado, no começo. Um marco no tempo.
Quando ouvimos os contos de fadas iniciando com o “Era uma vez...”
parece evocar este sentido de algo que ocorreu uma vez e no passado:
uma idéia de sucessão no tempo. Um segundo sentido seria o de
anterioridade lógica, como, por exemplo, a sequência dos números
reais inteiros l,2,3 ... n, sucessão já não mais subordinada ao
tempo, pois se imaginarmos uma sucessão como a dos números
escritos em uma folha de papel, os números estão ali
simultaneamente. Só entrariam em uma sucessão temporal se os
recitássemos usando a linguagem oral. Usando este exemplo, podemos
entender que uma sucessão lógica é a base a partir da qual pode se
dar uma sucessão temporal. Significa que teríamos um terceiro
sentido para o termo “princípio”: o de base, fundamento
Continuando neste exemplo, podemos observar que o
conjunto dos números reais inteiros tem um princípio, o da unidade,
pois todos os demais são gerados pela soma sucessiva com a unidade,
indefinidamente. Significa que tudo que existe, seja temporal ou
lògicamente, pressupõe um fundamento, um princípio que lhe permita
ser o que é, e não outra coisa. Em nosso exemplo, para que possamos
recitar os números inteiros, o que seria o mesmo que dizer, para que
os números inteiros possam existir no tempo (através das
recitações), é preciso que haja um princípio lógico anterior (a
existência da sequência dos números reais inteiros). Este por sua
vez pressupõe um princípio anterior, a geração dos números pela
adição da unidade. Vemos que o termo “anterior”, além de
posição no tempo e espaço, pode significar fundamento ontológico,
e como tal, “superior” à sua expressão. Assim, de princípio em
princípio, de fundamento menor a fundamento maior, como que
abríssemos círculos a partir de um centro, ou subíssemos degraus a
partir de uma base, ou galgássemos uma montanha descortinando
paisagens mais amplas, não teremos senão que chegar ao Topo, ao
Centro. O Infinito, o Princípio Supremo. O Absoluto. No Princípio,
dos princípios.
Inypyrú. Assim inicia-se o mito de criação
dos Apopokuva-Guarani (3). O termo “inypyrú”, o princípio, tem
a raiz “ypy”, princípio, origem, fundamento, do qual decorrem
termos como “rekoypy”, originários, originais ; “onemboecypi”,
originar-se; “ypykue”, antepassado. O relato mítico dos
Mbyá-Guarani do Paraguai abre-se com “Maino i reko ypy kue - os
costumes primitivos do Colibri “(4), este personificando o aspecto
criador da divindade. O termo “ypy” também significa primitivo.
O termo “primitivo” carregou-se da preconceituosa conotação do
“atrasado, grosseiro”, acalentada pela hipótese ocidental do
evolucionismo, com que se pretendeu dar estatuto de cientifico à
idéia de que a sociedade ocidental moderna seria o marco evoluído
de uma trajetória da humanidade onde os povos indígenas ocupariam o
lugar dos que se mantiveram atrasados e presos no tempo à um estágio
“primitivo” desta escala ascensional. Pretendeu-se com isto fazer
da conquista tecnológica moderna o avalizador do “estágio de
evolução” dos povos. Mas aqui o termo “primitivo” tem o
sentido de princípio e primeiro. A anterioridade temporal dos povos
indígenas alude à antiguidade, aos “primórdios”, em que estes
povos se comunicam quase que diretamente com os deuses, com seus
princípios. Por isso, o primórdio dos tempos era o tempo dos povos
primordiais. A estranha fascinação que os povos antigos (e as
ciências que hoje deles se ocupam, como a Arqueologia e a
Antropologia) exercem na mente do homem moderno evoca o mistério de
um mundo mítico que se escondeu ante aos olhos dispersos do mundo
moderno secularizado.
No princípio. Fundamento, o que sustenta. Se
olharmos para um outro lado do mundo, a cosmogonia de Moisés, livro
I do Velho Testamento, que se inicia “No princípio criou Deus os
céus e a terra”, o termo “No princípio” em hebráico é
“Beraeshith”, que significa “primitivamente-em-princípio”.
No princípio, antes de tudo, em princípio, na potencia de ser. O
princípio como potencia absoluta, por meio do qual todo ser relativo
é constituído como tal. Como no grego “Arkhé”. A raiz do termo
Baereshith é “Rash”, e designa “a cabeça, o guia, o chefe, o
Princípio agente” (5).
O Absoluto como fundamento insondável da Realidade
está presente na base de todsos os povos tradicionais, dos quais os
povos indígenas do Brasil fazem parte. Poderíamos indagar se o
conceito de Absoluto, princípio pilar de toda visão metafísica
tradicional, aparece frequentemente nos relatos míticos indígenas,
e em que termos, ou se corremos o risco de sobrepor à visão dos
povos indígenas do Brasil uma noção alheia a seus povos.
O relato mítico dos Mbyá-Guarani prossegue evocando a
Nande Ru Pa-Pa Tenonde , “nosso Pai (Nande Ru ) Pa-Pa
(último-último) Tenonde (primeiro)” e sua atividade criadora . O
conceito de último-último primeiro, à semelhança de um
Omega-omega Alfa, vale-se dos símbolos dos dois extremos do
espaço-tempo. Oferece à mente humana um suporte possível de
aproximação compreensiva da verdade do Absoluto, mas como símbolo
necessita ser transposto por uma intuição sintética superior, pois
o termo último-último primeiro alude, evoca, simboliza o Infinito
cuja imagem tosca e manifesta é a extensão indefinida dos extremos
do espaço: “em virtude de haver existido nos últimos confins do
espaço é que o chamamos “nosso Pai último-último primeiro”,
esclarece um Mbyá-Guarani (6).
Deslocando-nos do sul para a região do rio Negro, no
Amazonas, vamos encontrar no relato mítico dos Desana, povo da
família Tukano que habita nessa área, as seguintes palavras
iniciais: no princípio o mundo não existia (7). A afirmação
de uma Realidade suprema, como substrato principial de toda realidade
dos mundos que existem, aparece explicitado ou sugerido nos relatos
míticos desses povos, que, de uma forma ou outra, tornaram esses
relatos escritos e acessíveis. Ainda há poucos relatos míticos
escritos e relativamente completos na literatura etnográfica
brasileira, e à medida em que surgirem poderão esclarecer melhor
sobre a presença e as formas aludidas a esta noção de Absoluto
entre os povos indígenas do Brasil.
No princípio não existia nada. Se o Absoluto
como Princípio Supremo e Infinito é o fundamento de toda Realidade,
pareceria paradoxal o inicio do mito: no princípio não existia
nada. Como se o “nada” quisesse dizer que “no princípio” (no
infinito) não há nenhuma positividade. Não existindo nada no
princípio, este seria nulo. Mas o relato afirma a seguir que no
princípio “tudo era claridade”. Portanto triplamente
positividade: tudo, era, claridade. Plenitude, Ser, Luz.
O termo “nada” poderia parecer dizer aniquilamento,
vazio, zero. Muitos tratados de matemática moderna e dicionários
dão ao número zero o sentido de “nada, não-algo, o nada”. Do
mesmo modo, muitos pensadores ocidentais, ao se depararem com a
afirmação budista de que a Realidade Suprema, o Nirvana é vazio,
interpretaram essa noção de vazio como sendo “um nada”, e que,
portanto, a tradição budista pregava a negação de um Deus supremo
e o nihilismo e a desesperança, pois se tudo é o vazio, em que
esperança o homem poderia se apoiar para enfrentar os sofrimentos da
existência ?
Para compreendermos melhor estes aparentes paradoxos,
recorramos a uma tradição do outro lado do mundo, mas que se
fundamenta em princípios metafísicos análogos aos das tradições
indígenas. Vamos encontrar na tradição hindu um significado mais
profundo para o termo “zero”. Este aparece referido aos termos
“shûnya” (origem etimológica da palavra zero) e “pûrna”,
que significam “vazio” e “plenitude”: surpreendentemente, “se
referem a uma mesma noção; este supõe que todos os números estão
virtual ou potencialmente presentes no que não tem número. Se
expressarmos esta idéia mediante a equação 0 = x-x , vemos que o
zero é para o número o que a possibilidade é para a atualização“
(9). Nesta mesma ordem de idéias, outra palavra referida ao zero é
o termo “ananta”, cujo significado é “infinito”: “o uso do
termo “ananta”... implica a identificação do zero com o
infinito... É de se notar que esta idéia já se encontra nos
primeiros textos metafísicos, por exemplo, no Rig-Veda” (10 ). Em
síntese, o zero, longe de significar o nada – ausência de
realidade, simboliza a plenitude, o Princípio Absoluto (11).
No princípio não existia nada. Poderíamos
argumentar que apesar do percurso explicativo feito em torno da noção
de Princípio Absoluto, o inicio do mito indígena ainda pareceria
obscuro e soaria como inexistência. Adentremos no sentido da palavra
“existir”. Em um senso comum, associa-se “existir” com a
positividade, o real, e sua negativa (não-existir) como o nada ou
ausência de realidade. Mas o termo “existir” vem de “ex-stare”,
que significa “estar fora”, portanto uma “posição fora” em
relação a um “dentro”, quer dizer a instauração de uma
dualidade. Portanto, “a existência” já é uma exteriorização,
manifestação da Realidade Suprema, já implica em uma limitação,
uma realidade condicionada. Um modo, um mundo. Por isso os relatos
míticos indígenas iniciam dizendo que “no princípio não existe
nada”, “no começo, quando tudo era indistinto...” (12). Quer
dizer que na indistinção do Absoluto não existia nada que lhe
esteja fora, nada que seja ex-stare, existência. Não estando fora,
não há dentro-fora, não há obscuridade, não há dualidade,
luz-obscuridade. Tudo era claridade, não existia nada. É
preciso afiar a mente para se penetrar na sutileza da visão
metafísica tradicional. No princípio não existia nada, dizem os
povos indígenas, só Maira e aquele clarão. Na metafísica dos
povos tradicionais do Oriente, como no Budismo, usa-se o termo
“iluminação” para referir-se ao atingimento dessa Realidade
Incondicionada, chamada muitas vezes como o Grande Vazio. Maira e o
clarão são um só. Como o Um está contido no Zero, poderiam também
dizer, Maira é o clarão, o zero, o vazio, Infinito eterno
in-distinto.
No princípio o mundo não existia. As trevas
cobriam tudo, prossegue o mito dos Desana. Como a natureza do
Absoluto é não-dual, não há distinção luz/ obscuridade, por
isso o termo “trevas” tem aqui o significado superior de plena
luz (13). A Absolutidade, In-finito, sendo Possibilidade Universal,
contem dentro de si todas as Possibilidades: o Ser, o Um, princípio
das possibilidades de manifestação, contido no Não-Ser, o Zero,
princípio do Ser e das possibilidades de não-manifestação,
recônditos guardados no âmago misterioso da Grande Escuridão
divina, Perfeição total que não conhece distinção nem oposição.
O Ser é a Determinação principial, primeira, princípio de todas
as possibilidades de manifestação. Aí se incluem os mundos
(possibilidades) que já se manifestaram, os que estão se
manifestando e os que se manifestarão. Constituem a existência, os
mundos em sua multiplicidade, modos relativos e restritos de ser. Mas
no Absoluto não há distinção, que parece existir apenas aos
nossos olhos que não podem conceber o não-manifesto diretamente
senão através do manifesto; esta distinção existe, portanto, para
nós, mas ela não existe senão para nós (14). Esta aparente
distinção entre o Absoluto e o mundo manifesto, que os hindus
chamam de “maya” (termo que tem uma dupla significação, como
ilusão, mas também arte), é apenas aos nossos olhos iludidos da
existência que o mundo parece algo apartado, separado, solto,
aquário encerrando seus peixes em torno de um aparente nada. Por
isso, dizem os relatos indígenas, no princípio o mundo não
existia. Vejamos agora, “quando não havia nada”, como brotou
o mundo.
Notas
(1)- Ribeiro, Darcy- Uirá sai à procura de Deus.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, l976, p.20.
(2)- Os Kaapor (também chamados de Urubu-Kaapor), que
significa “os moradores da mata”, (o termo “Urubus” é
designação da população não-indígena), são um povo da família
linguística Tupi- Guarani, que hoje vive no Maranhão, na região
dos rios Gurupi, Turiaçu e Pindaré. Ocupavam, entretanto, como a
maioria dos outros povos da língua Tupi, toda a costa brasileira na
época da chegada dos colonizadores. Anterior a isso, a grande
dispersão das tribos Tupi-Guarani pelo continente sul-americano
sugere numerosos e recentes movimentos migratórios dos interiores
para o litoral, expulsando os ocupantes anteriores em sucessivas
guerras. Há indicações de que esses movimentos se deveriam a um
conjunto de fatores como a explosão demográfica, fertilidade e
abundancia dessas regiões, às quais associavam o litoral à mítica
Terra sem Mal. Há sobre isso vários trabalhos escritos, entre eles,
ver: “Os tupis-guaranis antes da conquista”, in Terra sem Mal
- o profetismo tupi-guarani, Hélène Clastres. São Paulo: Ed.
Brasiliense, l978. A despeito da grande perda populacional provocada
pelo contacto com os homens brancos, da sensível diminuição do
número de seus pajés e da influencia religiosa cristã com a
incorporação dos dias santos e batizado cristão entre os grupos
indígenas desta área, como os Tembés, Guajá e Gauajajara, os
Kaapor ainda preservam a base de sua tradição indígena.
(3)- Os Apopokuva-Guarani são um povo do grupo Nandeva,
que junto aos Kayová e os Mbyá, formam o grande grupo dos Guarani,
que habitam as regiões do Paraná, São Paulo, Mato-Grosso e o
Paraguai. Há indicações de que seria recente a presença dos
Guarani nos amplos territórios em que se estabeleceram no séc. XVI.
Dos povos indígenas, os Guarani seriam aqueles que desde o início
da colonização tiveram mais contacto com as ondas invasoras, e
muitos grupos estiveram sob a influencia dos missionários cristãos,
através das chamadas “reduções” jesuíticas. Apesar da
influencia que as concepções cristãs pretenderam exercer sobre a
visão cosmológica guarani, a extrema resistência desses povos
(muitas vezes sob uma aparente passividade), ao longo destes cinco
séculos de violências, e permitiu-lhes conservar, na maioria dos
grupos, a integridade de sua visão metafísica e práticas rituais.
Sobre o mito de criação dos Apopocuva-Guarani, ver As
Lendas da Criação e Destruição do Mundo como fundamentos da
religião dos Apopocuva-Guarani, Curt Nimuendaju. São Paulo:
Hucitec, l987. A introdução e a bibliografia, organizadas por
Eduardo B. Viveiros de Castro, são de bastante ajuda.
(4)- A compilação dos relatos míticos dos
Mbyá-Guarani, feito por León Cadógan, sob o título Ayvu
Rapyta, Boletim no. 227, Antropologia no. 5, FFLCHUSP, SP, l959,
é um testemunho exemplar de dedicação e rigor de um pesquisador
cuidadoso em transcrever e comentar o mundo mítico indígena o mais
próximo e fiel à própria visão deste povo. Apresentando em
guarani e espanhol os vários capítulos da cosmologia dos
Mbyá-Guarani, com comentários aos termos principais ao final de
cada capítulo, o trabalho de muitos anos de L. Cadogan é de extrema
profundidade, beleza e riqueza, um raro exemplo. Diante da pressão
que os grupos Guarani do Paraguai sofrem por parte da sociedade
paraguaia envolvente, o subgrupo dos Mbyá é o que mais se esforça
em manter sua identidade tradicional, impedindo a instalação de
paraguaios e missionários em suas aldeias. Aliado a isso, a
importância e preservação de sua visão, língua e prática
espiritual tornam esses relatos fonte ímpar de compreensão do mundo
mítico indígena, pois resguardado do sincretismo turvo com outras
visões religiosas.
(5)- D’Olivet, Fabre- “Cosmogonie de Moyse”, p.24,
second partie, in La Langue Hebraique Restituée. Paris: Ed. L
Äge d”Homme .
(6)- Cadogan,León - idem,op.cit, p.l6.
(7)- Kumu, Umusin Panlõn e Kenhiri, Tolaman- A
mitologia heróica dos indios Desâna: Antes o Mundo não existia.
São Paulo: Liv. Cultura Ed., l980.
(8)- A reflexão sobre este princípio fundamental deve
levar em conta uma série de fatores importantes: Em primeiro lugar,
lembremos que os povos indígenas são de tradição oral, seus
mitos e cantos sagrados são de natureza secreta, e portanto há
poucas razões para que fossem revelados, ainda mais se levarmos em
conta a violência que os “homens brancos” representaram e ainda
representam para os povos indígenas, estigma que indiretamente os
próprios etnólogos se vêem forçados a compartilhar em suas
indagações com estes povos. Relatos míticos escritos em riqueza e
amplitude como a “Ayvu Rapyta”, dos Mbyá-Guarani, recolhidos por
Leon Cadógan, ou “Os mitos de criação e destruição do mundo
como fundamentos da religião dos Apopokuva-Guarani”, recolhidos
por Curt Nimuendaju são raros. E mais raro ainda é algo como “Antes
o mundo não existia”, porque escrito pelos próprios índios,os
Desâna.
Teríamos de acrescentar na lista das dificuldades a
complexa e importante questão da língua tradicional sagrada em que
os mitos são contados e cantados. Os termos e sons articulam uma
gama de significados em uma hierarquia que vai do mais exterior e
exotérico ao mais interior e esotérico, analogando os níveis de
realidade do Ser, de modo que a penetração nesses níveis da
linguagem só é possível se acompanhados e sustentados por uma
correspondente penetração vivencial interior do próprio
pesquisador, vale dizer, vivencia das etapas de realização
espiritual segundo as iniciações, processo que o pensamento e a
civilização moderna perdeu de há muito tempo. Suporia que ou o
pesquisador fosse agraciado com a iniciação do povo indígena com o
qual procura aprender, como parece ter sido o caso de Leon Cadogan,
ou que ele tivesse uma iniciação em uma tradição que mesmo
não-indígena, lhe desse suporte de compreensão metafísica
analógica.
Haveria de acrescer que a tradução dos relatos
míticos para uma língua não-mítica como as línguas ocidentais já
é um sério limite para a compreensão do universo mítico indígena.
Há certamente termos e concepções que dificilmente encontraríamos
equivalentes nas línguas não-tradicionais. O esforço de Leon
Cadogan e C. Nimuendaju, justapondo o texto em guarani - como os Mbyá
e os Apopokuva lhes relataram - com uma versão na língua espanhola,
cotejando as várias facetas de significação de termos-chaves com
extensos comentários é de um mérito exemplar. Embora o texto dos
Desâna seja todo em português, o fato de seus relatores serem
e“kumuá”, termo que designa na estrutura social Desâna o lugar
do “kumu”, que, entre outras funções, tem, como os pajés,
conhecimento da mitologia, ritos e costumes tribais, e a presença
de apreciável quantidade de explicações e comentários de rodapé,
tudo isso minimiza as perdas da tradução e faz desse relato uma
rica fonte de aproximação ao universo mítico indígena. Digo
aproximação porque talvez seja o máximo de pretensão que podemos
almejar.
Além da questão da língua sacra, há que se lembrar
que o mundo mítico indígena, por seu caráter primordial, lida com
uma metafísica que passa pelo mundo da Natureza, onde o reino
humano, animal, vegetal e mineral se dialogam intensamente entre si e
com os deuses, imbricados em sutis tramas de significados de ordem
metafísica, muito distante do pensamento e modo de vida moderno,
onde os seres da natureza foram esvaziados de sentido e vida.
Destruição da Natureza, ausência de uma língua sacra e de
princípios espirituais fizeram da civilização ocidental moderna
uma anomalia no conjunto da humanidade: a violência sobre os povos
indígenas e a perda de compreensão metafísica são algumas facetas
desta tendência decadente.
(9)- Coomaraswamy, Ananda- El Tiempo y La Eternidad.
Madrid: Taurus, l980, p.l36.
(10)- Coomaraswamy, A.- Idem,op.cit., p.l36. Lembremos
que o “Rig-Veda” é um dos quatro livros sagrados da tradição
hindu, os Veda.
(11)- A interpretação do número zero como “o nada”
é apenas a restrita visão quantitativa dos números. Para os povos
tradicionais, os números expressam verdades principiais e
qualitativas, devendo as ciências compreender sempre os nexos entre
o Absoluto e o relativo. A desconexão em que as ciências modernas
se enveredaram levaram-nas à fragmentação e um beco sem saída,
por isso um saber profano. A secularização de nossos dias criou a
ideologia equivocada de que as ciências seriam um estatuto
privilegiado do mundo moderno, onde a separação entre ciência e
religião marcaria um passo de conquista, liberdade e progresso,
quando de fato, as ciências estão presentes nos povos tradicionais,
mas nestes os nexos entre as ciências e o Transcendente são
imprescindíveis, fazendo de suas ciências sagradas, enquanto as
ciências do mundo moderno, por esta desconexão, as tornam profanas
e opacas à compreensão, e limitando-as a serem apenas ferramentas
de produzir coisas e fenômenos, aliás, o único motor desta
civilização.
(l2)- Rock, J.F.- “The Na-khi Nâga
Cult and related ceremonies”, Vol.II, págs. 386, Roma, l952
(citado por Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo:
Ed.Perspectiva, l972, p.30).
(13)- Em relação ao mundo criado, “trevas” também
tem o sentido inferior de Caos, do qual será extraído a mundo
existencial .Por aqui já podemos ir percebendo como seria difícil
aproximar-se mentalmente do mundo indígena sem a familiaridade com
o exercício da percepção metafísica que fundamenta a vida dos
povos tradicionais e que constitui realmente o “centro” do
mundo e da possibilidade de sua compreensão. O que está “fora
deste centro” real é “excêntrico” (cujo sentido etimológico
é “fora do centro”). Por isso, não é o mundo indígena que é
“exótico ou excêntrico”, mas de fato é esta civilização
moderna que está “fora de centro”, coberta de trevas (agora no
sentido inferior desta palavra, como “obscura e caótica”), sem
saber quem é, quais seus fundamentos e perspectiva, ao sabor da
impermanência da existência, como ensina o Budismo.
(l4)- Guénon, René –
Melanges. France: Gallimard,
l976, p. l2
Quando não havia nada,
brotou uma mulher de si mesma
Arthur Shaker
No princípio o mundo não existia. As trevas
cobriam tudo. Quando não havia nada, brotou uma mulher de si mesma.
Surgiu suspensa sobre seus bancos mágicos e cobriu-se de enfeites
que se transformaram em uma morada. Chama-se etän bë tali bu
(quartzo, compartimento ou camada). Ela própria se chamava Yebá
bëló (terra, tataravó), ou seja, avó do universo (1).
De dentro da Grande Escuridão principial
indiferenciada, irá brotar o fundamento do mundo. Neste mito,
reveste-se da forma da avó (tataravó) do universo. A figura da avó
evoca a ancestralidade, no sentido do princípio da geração, da
qual as sucessivas linhagens existenciais são uma expressão
específica. No mito dos Mbyá-Gauarani, “Nande Ru Pa-pa Tenonde
guete rã ombo-jera pytu yma gui”, traduzindo, “Nosso Pai
último-último primeiro, para seu próprio corpo criou das trevas
primigênias” (2). O radical ra traduz o conceito de criar
no sentido de “fazer que se desenvolva, que se abra, que
surja”. Brotar, criar, surgir de si mesmo porque a Determinação
primeira tem seu fundamento em si mesmo, no sentido de ser autônomo
(de auto-nomos, ter a própria Lei). Por isso, dizem os
Dêsana, a avó do universo se chama a “não-criada”. No mito dos
Apopokuva-Guarani, “Nanderuvuçu oú petei, pytu anoi ojicuaá”,
ou seja, “Nanderuvuçu chegou só, em meio à obscuridade, se
desvelou só (se descobriu a si mesmo)” (3). Também em outra
versão da Genese Mbyá-Guarani, “Nande Ru Pa-pa Tenonde ojera pytu
yma mbyte re - Nosso Primeiro Pai, o Absoluto, criou-se a si mesmo
(surgiu) em meio às trevas primigênias” (4).
Surgiu suspensa sobre seus bancos mágicos. A
forma que a avó do universo surge, sentada sobre bancos mágicos, é
simbolicamente expressiva (5). A postura sentada expressa sua
qualidade de fundamento-estabilidade, como a montanha e a pirâmide
assentada sobre sua base. No Budismo, o Buddha iluminado sentado em
meditação na postura de lótus é a imagem arquetípica para os
praticantes há 2.500 anos (5A). Das seis coisas invisíveis com que
Yebá bëló, a avó do universo, constrói-se a si mesma, uma delas
são os bancos (sé-kali).
A gênese dos Mbyá-Guarani prossegue dizendo: “Ivara
pypyte, apyka apuä i, pitu yma mbyte re oguero-jera”, que
significa “as divinas plantas dos pés, o pequeno assento redondo,
em meio das trevas primigênias, os criou, no curso de sua evolução”
(6). Apyka apu’a i é o pequeno assento redondo em que
aparece Ñande Ru em meio às trevas (7). Por seu aspecto simbólico
e prático, os bancos ocupam um lugar marcante dentre os objetos do
artesanato indígena. Em geral talhados em madeira, destinados aos
pajés, chefes e visitantes, são prerrogativa masculina e
representam várias formas animais, dentre eles a onça, o jacaré, o
jabuti, o sapo, a tartaruga, as aves e os peixes (8).
Na China, as estatuárias mostram o mundo sendo
suportado pela tartaruga, os seus quatro pés representando os quatro
cantos do mundo. Expressão simbólica do suporte do mundo (8A), os
bancos também servem como veículos para os translados pelo espaço:
“também as aves agoureiras - ou espíritos que assumem a forma de
aves - se transladam pelo espaço no apyka” (9). Quando
Nandesy (“nossa mãe“, segundo os Apopokuva-Guarani, e
personificação do princípio cósmico feminino) necessita algo,
chama a seu filho Tupã (filho de Nanderuvuçu - “nosso pai
grande”com Nandesy). Assentado sobre seu apyka no extremo
ocidente, Tupã - como personificação da tempestade - levando o
adorno labial (tembetá feito da resina amarela do yatobá
, relampago), viaja pelos céus para o oriente, tendo ao seu lado
nos extremos do apyká dois ajudantes (yvyraiyá )
portadores dos bastões de combate. “Durante a viagem se agita o
adorno labial de cor amarelo claro, produzindo o raio. Chegando ao
oriente, diante da morada de Nandesy, Tupã a circunda em seu
apyká, para desembarcar diante de sua mãe e lhe falar. O
tembetá prossegue relampejando, embora já não se ouve-o
trovejar, pois o apyká se deteve; percebe-se apenas os
clarões no horizonte oriental.
Os Yvyraiyá de Tupã aparecem de quando em
quando sob a figura do pássaro que os brasileiros chamam “tesoura”
e os Guarani, tapé, ave parecida a uma golondrina gigante,
cujo vôo extraordinariamente elegante desenvolve de preferência
quando uma tormenta se avizinha. Segundo a opinião dos Guarani,
atraem as nuvens de chuva e para receber graça tão preciosa na
agricultura, costumam os pajé Apopokuva colar as largas plumas da
cauda deste pássaro em seu diadema, bem ao meio da testa” (10).
São frequentes nos relatos indígenas as viagens dos pajés em seus
bancos pelos mundos dos espíritos, para a cura, o regate de almas
roubadas ou o restabelecimento de ligações celestes interrompidas
pela quebra de normas por parte de algum membro do grupo.
As formas com que cada tradição indígena narra os
passos de fundação do mundo são múltiplas, obedecendo a uma
lógica espiritual interna e própria, como projeções luminosas
singulares a cada forma tradicional, que cada grupo indígena é a
atualização existencial. Cada uma deve ser compreendida à luz de
sua expressão própria. Mas podemos procurar apreender os princípios
concordantes que estão na base, qual arquétipos no fundamento das
formas tradicionais indígenas.
Essa mulher, prossegue o relato Desana, depois de ter
aparecido, pensou como deveria ser o futuro mundo. Pensou isso em sua
morada de quartzo, na etan bê tali bu. Enquanto pensava,
mascou ipadu (11) mágico e fumou cigarro mágico. Seu pensamento
começou a tomar forma e levantar-se como se fosse uma esfera,
culminando numa torre. A esfera, ao elevar-se, incorporou toda a
escuridão. Dessa maneira, a escuridão ficou dentro daquela esfera,
que era o universo. Ainda não havia luz. Só o compartimento onde
ela se fez havia luz, porque era todo branco, de quartzo. Feito isso,
ela chamou a esfera ëmekho patolé (universo, barriga). Era
como se fosse uma grande maloca. Depois ela quis povoar essa grande
casa” (l2).
Cada operação da avó do universo é um passo
fundador dos princípios do mundo. Seus enfeites se transformam em
sua morada de quartzo. Só aí havia luz, porque era todo branco, de
quartzo. A natureza intrìnsicamente iluminada do princípio do mundo
também é enunciada no mito Mbyá-Guarani: “Ele (nosso Pai
Namandu, o Primeiro) não viu trevas: embora o Sol ainda não
existisse, Ele existia iluminado pelo reflexo de seu próprio
coração; fazia que lhe servisse de sol a sabedoria contida dentro
de sua própria divindade” (13). Também segundo os
Apopokuva-Guarani, em meio à escuridão Nanderuvuçu levava o sol em
seu peito (14), sendo o sol não o astro-sol, mas a fonte de luz
própria do Criador.
O mascar e fumar as ervas mágicas faz parte dos ritos
indígenas porque instaurados pelos fundadores do mundo. Vegetais
extraídos do interior da terra-mãe, seu plantio e consumo obedecem
a regras rituais necessárias a seu funcionamento como suportes de
atividades espirituais. Segundo os Guarani, uma das operações da
atuação do Criador é a criação do tabaco (pety) e do
cachimbo (tatachina kãgã, de tatachina - neblina
vivificante e kãgã, ossos). O tabaco participa, em seu
plano, das qualidades da neblina vivificante (tatachina),
criada, junto com as chamas (tataendy), por Namandu RuEte.
Muitos invernos tem passado desde que isto aconteceu :
uma mulher wakan , uma mulher sagrada, veio ao encontro do
povo lakota e trouxe o cachimbo sagrado. Diante do chefe Hehloghecha
Najin (Chifre Oco de Pé) lhe disse:
“Aqui se encontra o cachimbo sagrado, com ele, nos
invernos futuros, enviarás vossa voz a Wakan-Tanka, vosso Avô
e Pai. Com este cachimbo de mistério caminharás pela Terra, pois a
terra é vossa Avó e Mãe e é sagrada. O fornilho desse cachimbo é
de pedra vermelha. É a Terra. Este jovem bisonte que está cravado
na pedra, e que olha para o centro, representa os quadrúpedes que
vivem sobre vossa mãe. A haste do cachimbo é de madeira, e isto
representa tudo o que cresce sobre a Terra. E estas doze plumas que
caem do local onde a haste se encaixa no fornilho são de Águia
Pintada e representam a Águia e todos os seres alados. Todos estes
povos e todas as coisas do Universo estão vinculadas a tu que fumas
o cachimbo; todos enviam suas vozes a Wakan-Tanka, o Grande
Espírito. Quando orais com este cachimbo, orais por todas as coisas
e com todos elas” (l4A).
Este mito é contado pelo povo Lakota, da nação
Sioux, comunidade indígena da América do Norte. Todas as coisas do
Universo se ligam, como horizontalidade, à haste do cachimbo. O
fogo, alimentado pelo sopro do vento e dos homens, queima dentro do
fornilho as ervas do chão, símbolos do mundo terrestre. Aromas,
fumaça e vozes sobem na verticalidade ao Grande Espírito. No
Budismo tibetano, temos algo análogo: a roda das orações.
Em seu girar, pela mão do homem, o voto de compaixão é renovado,
todos os seres beneficiados. No cachimbo, o simbolismo é axial, o
mundo representado pela horizontal e a Transcendência pela vertical.
Na roda das orações, o simbolismo é circular, a roda representa os
mundos existenciais, subordinados ao Centro, para o qual se procura
dirigir.
Ele existia iluminado pelo reflexo de seu próprio
coração. Em todas as tradições antigas, o coração é um
símbolo do Centro, seja do ser, seja de um mundo ou como Centro do
Mundo. O coração é considerado como a sede da inteligência, por
isso a associação entre o Coração e o Sol (espiritual).
Inteligência aqui deve ser compreendida como a inteligência pura,
universal, a intuição que ilumina, a sabedoria contida dentro da
própria divindade de Namandu RuEte, e que lhe servia de sol. A razão
é o reflexo da inteligência no domínio individual, e nesse sentido
associa-se analogamente à lua e a inteligência ao sol (15).
Ignorando essas analogias simbólicas, os colonizadores das Américas
incorriam no erro de considerar os povos indígenas pagães porque
adorariam um objeto físico com o sol. Quando o Inca Hayana Capac,
chegando a Cuzco para a celebração da festa principal do Sol, o
Raymi, e mira o Sol, o que pareceu ilícito ao sumo sacerdote este
ato de mirar o pai-Sol, Hayana Capac replica: “Pois eu te digo que
este nosso pai o Sol deve ter outro senhor maior e mais poderoso que
ele. Aquele que lhe manda fazer este caminho, que faz cada dia sem
parar; porque se ele fosse o supremo senhor, algumas vezes deixaria
de caminhar e descansaria por gosto próprio ainda que não tivesse
necessidade alguma” (l5A).
Abramos um parenteses para esclarecer este equívoco
fundamental que se incorre, desde o tempo dos invasores até hoje, em
algumas práticas missionárias que pretendem evangelizar os povos
indígenas. O pressuposto seria de que os índios seriam pagães a
serem salvos, e ainda quando consideram terem os índios alguma
religião, seria uma “religião da Natureza”, e, portanto, não
um religião autentica. Examinemos cada um desses dois supostos. O
termo “pagão” é uma corruptela do termo “paysanne” (que em
português se traduziria por “camponês, paisano”), e que, quando
da decadência e extinção da tradição romana, como os grupos
camponeses ainda mantivessem por algum tempo suas práticas
religiosas anteriores ao advento do Cristianismo, associava-se estas
práticas como a dos “pagães”.
A situação dos povos indígenas das Américas no
período pré-colombiano era, e é, totalmente outra. Não se trata
de povos com práticas de tradições em extinção, como o caso dos
grupos rurais do mundo greco-romano dos primeiros séculos. Quanto à
idéia dos índios praticarem uma “religião da natureza” ou uma
“religião naturalista”, devemos nos perguntar o quê se
entenderia por estes termos. Se entendermos o termo “Natureza”
como o mundo fenomênico, destituído de nexo com o Transcendente, e
se “religião” seria justamente o religar o mundo (Natureza) ao
transcendente (supra-Natureza), então uma “religião da Natureza”
não existe, pois é uma contradição entre os termos. Mas se
entendermos o termo “Natureza” em um sentido mais amplo e
profundo, que abarca não só o mundo fenomênico como seus
princípios transcendentes (dos quais os mundos são manifestações
transitórias e espelhos-símbolos) - e esta é a postura das
tradições indígenas- então os povos indígenas não são pagãos
a serem salvos, mas povos estruturados em formas tradicionais de
extensa e rica base metafísica que devem ser respeitados e
compreendidos em sua singulariedade espiritual, onde a Natureza
externa ainda é vista e vivida como teofania , manifestação
divina que alimenta e ilumina o trilhar por esta existência. Talvez
fôsse mais sábio refletir sobre esta verdade: se há alguém que
necessita urgentemente ser salvo, são os “homens brancos”, que
insistem na destruição da Natureza e dos povos indígenas,
pisoteando os ensinamentos do fundador de sua via cristã. Lembremos
que o que deixava os povos indígenas perplexos não era tanto a
forma espiritual do Cristianismo, mas o abismo entre seus
ensinamentos e as atitudes dos colonizadores que se diziam cristãos.
Dois pontos importantes haveria que se acrescentar
sobre esse tema. O primeiro é a marcante distinção que o
Cristianismo desde os seus primórdios iria fazer entre o mundo e o
reino divino, compreensível por ser o Cristianismo uma via interior
em que o aspecto “distrativo” e por isso perigoso) do mundo é
mais enfatizado do que seu aspecto luminoso e teofânico (16); e
também porque o Cristianismo teve de se defrontar com uma herança
greco-romana que em seu período de decadência fazia da Natureza e
dos sentidos um culto do hedonismo, desconectado de seus princípios
transcendentes.
Acresce-se a isto o fato de que a ênfase do
Cristianismo é a salvação dos homens e não tanto uma preocupação
com os outros seres da Natureza, que seriam resgatados indiretamente
pela redenção dos homens. Mas esta excessiva distinção dentro da
visão cristã traria consequências nefastas para as tradições
indígenas, que tiveram que arcar com esta tendência dos
colonizadores verem as práticas indígenas como “práticas pagãs”
e “naturalistas”. Assim escrevia Pe. Manuel da Nóbrega em sua
carta de informação das terras do Brasil, aos Padres e Irmãos de
Coimbra, em agosto de l549: “Esta gentilidade a coisa nenhuma
adora, nem conhecem a Deus, somente aos trovões chamam Tupana, que é
como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo
mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus, senão que
chamar-lhe Pai Tupana” (l6A).
O segundo ponto a ser apenas re-lembrado é a
dificuldade das tradições semíticas, por sua forma espiritual, em
lidar com tradições com formas muito diferentes das suas, em que a
representação de Deus e os “cultos religiosos” não aparece, ao
menos nas formas compreensíveis para estas religiões monoteístas.
A dificuldade de entender o que seja uma tradição metafísica e uma
religião traz consequências nocivas quando se deparam umas frente
às outras. Haja visto como para a maioria dos não-indígenas, o
mundo espiritual indígena é ainda bastante distante e
incompreensível, e motivo de muitos preconceitos e violências.
Coração do Mundo, Centro do Mundo, Coração do Céu.
Assim várias tradições designam o Sol espiritual: “segundo
Macrobio, ‘o nome de Inteligência do Mundo que se dá ao Sol
responde ao de Coração do Céu; fonte da luz etérea, o Sol é para
este fluido o que é o coração para o ser animado’; e Plutarco
escreve que o Sol, ‘dotado da força de um coração, dispersa e
difunde de si mesmo o calor e a luz, como se fossem o sangue e o
hálito” (17). Nas antigas tradições da América Central, como no
relato do Popol Vuh da tradição Maia, vamos encontrar o nome
Coração do Céu ligado ao sol: “Apenas havia imobilidade e
silencio nas trevas, na noite. Apenas o Criador, o Formador, Tepeu,
Gucumatz, os Progenitores, estavam na água rodeados de claridade.
Estavam ocultos sob plumas verdes e azuis, por isso se chama-os
Gucumatz. De grandes sábios, de grandes pensadores é sua natureza.
Desta maneira existia o céu e também o Coração do Céu, que este
é o nome de Deus. Assim contavam” (18).
Feito isso, ela a avó do universo) chamou a esfera de
ëmëkho patolé (universo, barriga). Era como se fosse uma
grande maloca. Depois ela quis povoar essa grande casa. A esfera
cósmica recebe um nome que envolve duas palavras significativas:
universo e barriga. A barriga é a parte do corpo que é o
receptáculo das substancias, seja do alimento a ser processado pelos
vários órgãos, seja de gestação dos filhos. A barriga, no
microcosmos, é o espelho da barriga-universo. Para muitos povos
tradicionais, o centro do ser está no umbigo, e um dos símbolos
mais frequentes do Centro do mundo é o Umbigo, o Ômphalos dos
gregos, cujo templo de Delphos era o centro espiritual da Grécia
antiga. Barriga, abdômen, ventre, útero, a parte mais íntima,
âmago, são alguns termos que ligam a idéia do universo como
barriga, centro, umbigo e âmago. Em sânscrito, o têrmo para umbigo
é nabhi, que também alude ao cubo da roda, centro a partir
do qual o cosmos é extendido (a raiz nabh também designa
“extender-se”). Nabhi, omphalos, a pedra, o habitáculo divino,
antigo penhasco, ilha, o umbigo. Também os derivados desta raiz
nabh, nas línguas célticas e germânicas, tem significados
afins, como nabe (meio) e nabel (umbigo) em alemão,
nave e navel em inglês. Considerando estas formas nab
e nav, “em gaulês, a palavra nav ou naf,
que é idêntico a estes últimos, tem o sentido de “chefe” e se
aplica mesmo a Deus ; é por isso a idéia do Princípio central que
aqui se exprime” (19).
Na língua Guarani, o umbigo é puru’ã
(gravidez - puru’a), que também designa “meio, centro”,
termos designados também como mbyte (meio) e apyte
(centro, meio, vértice, miolo, interior, íntimo, cabeça,
coroa, tonsura) (20). É no futuro centro da terra (yvy mbyte)
que Namandu Ru Ete criará a palmeira eterna, que junto com as outras
quatro palmeiras eternas criadas em cada um dos quatro extremos
cardinais, formarão a base que assegura e ata a morada terrestre.
Reencontramos assim a mesma simbologia das “cinco regiões” em
várias tradições antigas: os quatro pontos cardeais (e os quatro
elementos - ar, fogo, água e terra) e o centro (cuja expressão,
como princípio dos elementos é o Ether).
Prosseguindo na compreensão da Gênese do mundo
segundo os mitos indígenas, dois aspectos se ressaltam. O primeiro é
que não é o Criador que diretamente cria o mundo. No mito dos
Dêsana, a avó do universo tira seu ipadu (coca) da boca e o faz
transformar nos ëmëkho nehké semá (universo, avós,
muitos), os cinco trovões chamados etan bë weli mahsá (quartzo,
que são, gente). Quer dizer, homens da pedra branca, que são
eternas, não são mortais como nós (21). Do princípio da
manifestação (a avó do universo) surgem os cinco princípios
(muitos, avós, universo): “Gerei vocês para criarem o mundo.
Cabe-lhes, agora, imaginar um modo de fazer a luz, fazer os rios e a
futura humanidade, a pamani mahsá aninbolá (transformação,
gente, que vão ser)” (22). Também no relato dos
Mbyá-Guarani, Namandu Ru Ete cria os Namandu Py’aguachu, os
Namandu de coração grande, valoroso. Cria-os para serem, junto com
Namandu Chy Ete (a futura verdadeira mãe dos Namandu), “os
verdadeiros pais das almas de seus futuros numerosos filhos”. A
paternidade espiritual das futuras almas que nascerão será
tripartida entre Karai Ru Ete- Karai Chy Ete, Jakairá Ru Ete-
Jakairá Chy Ete e Tupã Ru Ete- Tupã Chy Ete. Os Mbyá chamam esses
Primeiros Pais das almas de ipurua’a ey va’e, “os que
carecem de umbigo, porque não foram engendrados” (22A).
O desdobramento descendente dos princípios celestes
que engendrarão os mundos e seres obedece a um princípio de
hierarquia que é constitutivo da ontologia cósmica e por isso está
presente de modo concordante entre os povos tradicionais. Mesmo na
Gênesis hebràica, a operação criativa é atribuída não ao
Princípio Supremo, mas ao Ser-dos-seres, que aparece referido no
plural, os Elohim. No Corão, livro sagrado da tradição islamica, o
Criador é referido com “nós”. Namandu RuEte, o deus do Sol, da
sabedoria contida em sua própria divindade, e em virtude de sua
sabedoria criadora, cria os companheiros de sua divindade, repartindo
a eles (fazendo que eles tivessem) a consciência da Divindade. A
nomenclatura e os atributos com que os relatos se referem aos deuses
precisam ser compreendidos em seus significados simbólicos e
metafísicos, evitando os riscos de uma apreensão antropomórfica
desse processo.
A cosmogonia fala de uma hierarquia de princípios
constitutivos em que cada um deles desempenhará um papel determinado
na formação dos mundos existenciais, e essa hierarquia de
determinações é uma espécie de arquétipo principial que terá
sua expressão humana na presença da genealogia das linhagens e
sub-ramos dos grupos indígenas, como um trançado de rede, adorno de
miçangas ou contas de caramujo. Não há como compreender a
estrutura hierárquica e complexa dos povos indígenas (e dos povos
tradicionais em geral), sem compreendermos que são expressões
atualizadas, em seu plano, desse tecido axial de seus princípios
metafísicos e cósmicos. Boa parte da dificuldade do mundo moderno
em apreender a organização e o sentido da vida dos povos
tradicionais advém desta pretensão em desconsiderar este princípio
hierárquico, em nome de uma suposta horizontalização do cosmos e
dos homens, como vemos nas tentativas de explicação não-sagrada de
formação do mundo ou das relações entre os seres, em especial os
seres humanos.
O compartilhar da Divindade com os deuses-futuros
formadores dos rios, da luz e da humanidade significa que, se de um
lado há uma hierarquia ordenadora desses princípios-deuses, de
outro esses deuses participam da unidade da divindade (23). Para os
povos indígenas, muitas vezes a relação com o divino não é feita
diretamente com a Divindade Suprema. Muitas vezes a Divindade como
Princípio Supremo nem aparecerá aos olhos exteriores dos estranhos,
por isso a perplexidade dos missionários afirmando que “esta
gentilidade a coisa nenhuma adora, nem conhecem a Deus”. Para os
povos indígenas, a relação com o divino é feita junto a estas
presenças que são os deuses próximos. Na Índia, a tradição
hindu lembra que há tantos deuses quanto o número de devotos, e os
deuses familiares são portas de acesso ao Princípio Supremo,
Brahman. O termo “deuses” (assim como “Deus”) não faz
parte da nomenclatura indígena, foi aqui usado apenas como recurso
convencional, exigindo daquele que se interessa em conhecer estes
povos uma aproximação dos termos, formas próprias e
significados da expressão da espiritualidade indígena.
Os nomes e características dos princípios criadores
dos povos indígenas do Brasil, em virtude de sua diversidade de
formações, são igualmente diversos. Entre os Desana, os primeiros
a serem gerados como executores da vontade criadora de Yebá bëló
são os emekho nebké semá, os cinco trovões etän bë
weli mahsá. Para os Apopokuva-Guarani, embora o papel de criador
e destruidor esteja ligado fundamentalmente a Nanderuvuçu, este não
rege diretamente a Terra. Para acompanhá-lo encontrou junto a Si a
Nanderu Mbaekuaá (“nosso pai, conhecedor das coisas”) (24), e
responsável pelos detalhes da criação. Nanderuvuçu faz uma panela
de barro e de dentro dela tira Nandesy (“nossa mãe”). Como “mãe
do mundo”, sua origem está associada à panela de barro, portanto
ao barro, expressão do fundamento substancial da existência. Na
Índia, os textos sacros falam da libertação espiritual através da
imagem simbólica da quebra dos vasos de barro, refazendo a unidade
do espaço-Espírito. Da união de Nanderuvuçu e Nanderu Mbaekuaá
com Nandesy virão respectivamente Nanderykey (“nosso irmão
maior”) e Tyvyryi (“seu irmão menor”), os irmãos gêmeos.
O tema dos irmãos gêmeos é muito presente na
mitologia não só dos povos indígenas do Brasil como também entre
os povos indígenas das Américas e outras partes do mundo. Entre os
Tupinambá, um é filho do herói-civilizador Maira-Monan-Atá e o
outro de um homem comum. Algo análogo encontramos entre o povo
Tembé. Às vezes o herói-civilizador tem apenas um filho, como é o
caso dos Mundurucu, cujo herói-civilizador Caru-Sacaebé tem o filho
Carataú, mas este está acompanhado por seu parceiro Rayrú; ou o
caso dos Chiriguano, onde Tatu-tunpa tem um só filho, para a geração
do qual concorre seu rival (25), filho que terá a seu lado a
companhia de outro personagem, Dyóri. Entre os Chipaias, encontramos
os irmãos Kunarima e Arubiatá.
Os Itatins e Guaraius dos Andes referem-se a Pai Tacur
e Pai Amanare, arrebatados ao céu por um dilúvio, análogo ao
relato dos antigos Tupinambás sobre os irmãos Tamendonare e
Ariconte: “Tamendonare e Ariconte eram dois irmãos rivais,
divididos por seus diferentes temperamentos. Aricoute, intrépido e
belicoso, desprezava seu mano, a quem reputava poltrão; mas este,
certa vez, tendo humilhado o irmão por ter o mesmo trazido como
troféu apenas o braço do inimigo, Aricoute, irritado, lançou o
despojo contra a choça de Tamendonare, provocando, por esse ato, a
ascensão ao céu, imediata, de toda a aldeia. Logo, Tamendonare
bateu com o pé na terra, fazendo jorrar a água, que não tardou a
recobrir o globo. Os dois irmãos, acompanhados de suas mulheres,
salvaram-se trepados às árvores e repovoaram, depois, o mundo.
Pretendem os Tupinambás descender de Tamendonare e os Timininós de
Aricoute” (26).
No relato mitológico dos Wayana-Aparaí, grupo da
familia Karib que habita as áreas desde o norte do Pará até as
Guianas, a criação do mundo é feita por Kuyuli, “o qual
primeiramente teria criado as águas, e em seguida os Wayana e os
outros homens. Seu corpo estava coberto de chagas e fedia, por este
motivo sua esposa e os demais o abandonam. Vinga-se provocando o
dilúvio do qual apenas um homem salvou-se. Novos homens foram
criados. Em seguida, Kuyuli criou os peixes e fez voar os pássaros.
Forneceu aos homens as plantas comestíveis e revelou a estes o fogo,
que roubou do ânus de sua avó Pëlé. Uma vez cumprido seu papel,
Kuyuli subiu ao céu e perdeu todo contato com os homens” (27).
Neste mesmo relato, aparecem os dois irmãos míticos, Okaia e
Kutumo, filhos de Tena e Arumana, primeira mulher da criação,
cujo nome deriva do fato dela ser feita a partir do trançado de
fibras da arumã, o que, análogo ao barro, falam da natureza
substancial (28) da “mãe do mundo”. Barro, terra, vegetais, são
expressões do ventre da terra-mãe. Tena, o pai mítico dos gêmeos,
toca flauta - à semelhança da figura divina do mundo hindu,
Khrisna, encarnação de Vishnu, o aspecto preservador da divindade
pessoal Ishwaara, em sua tripla manifestação (trimurti),
como Brahma - o criador, Vishnu - o preservador e Shiva - o
destruidor. À semelhança dos mitos Tupi-Guarani, Tena se retira do
mundo após engravidar Arumana, e seus dois filhos gêmeos partem à
busca do pai.
Vimos que o mito dos irmãos gêmeos aparece com
bastante frequência entre os povos indígenas de toda América.
Entre os Guarayú, os dois filhos de Abaangui; entre os Bakairi, os
irmãos Keri e Kame; entre os Kaingang, os irmãos Kaneru e Kamé;
entre os Kaduveo, os gêmeos Nãreatedi; entre os Munduruku,
Karu-Sakaibê e seu auxiliar-filho Rairu; entre os Araucano do Chile,
os irmãos Conquel e Pedíu; nos povos andinos, entre os Yunca, os
irmãos Pachacamac e Wichama; entre os Guamachuco os irmãos
Apo-Catequil e Piguerao (29).
Na América Central, aparece entre os Quiché-Maya, os
atos míticos de Hun Ahpu e Xbalanque no reino Xibalba (30). Muitas
vezes os gêmeos míticos são identificados com o Sol e a Lua,
embora o Sol e a Lua possam aparecer como irmãos míticos, mas não
necessariamente gêmeos. Entre os Karajá, o Ser divino Rãrãresá
é urubu-rei e tem como enfeites de sua cabeça o Sol e a Lua;
entre os Kalapalo, temos Riti (sol) e Uné (lua). Entre os Bororo, há
dois pares de irmãos, um sendo Bakororo e Itubore, e o outro o Sol e
a Lua, ou Baitagogo e Akaruio Borogo, ligados ao primeiro par de
irmãos como seus respectivos filhos.
A Cosmologia dos povos tradicionais relata a Criação
do mundo desde os seus princípios maiores até os vários detalhes,
cabendo as diversas responsabilidades a uma multiplicidade de
personagens que sintetizam estas funções. Namandu Ru Ete ergue-se
sob forama humana, e, em virtude da sabedoria criadora contida em sua
própria divindade, engendra tataendy, as chamas-manifestação
visível da Divindade, e tatachina , a neblina vivificante. No
mundo extremo-oriental, chy designa a energia vital que
sustenta todos os seres. Fogo celeste e neblina vivificante são os
pilares sutis da existência. Namandu RuEte então concebe e cria o
fundamento da linguagem humana (ayvu rapyta), o fundamento do
amor (mborayu rapyta) e o fundamento do canto sagrado (mba’e
- a’a rapyta). No mito Dêsana, Yeba bëló concebe de seu
pensamento a esfera-barriga do universo ëmëkho patolé e os
cinco trovões, a cada qual será dado um compartimento na grande
maloca-esfera, e serão eles os convocados para a posterior etapa de
formação da luz, rios e humanidade.
Feito a primeira diferenciação que extrairá do Caos
das trevas indiferenciadas os princípios cósmicos, a convocação
dos auxiliares divinos retrata os desdobramentos secundários das
operações cosmogônicas. Refletindo profundamente, Namandu Ru Ete
evoca de si mesmo (cria) os Namandu Py’aguachu, de corações
valorosos, grandes. Cria-os simultaneamente com o reflexo de sua
sabedoria, o Sol. Cria Karai RuEte-Karai ChyEte (senhores do fogo
pais dos futuros Karai), Jakaira RuEte-Jakaira ChyEte (senhores da
primavera e pais dos futuros Jakaira) e Tupã RuEte-Tupã ChyEte (
senhores das águas e pais dos futuros Tupã). Os primeiros, cuja
morada é ao Leste, vigiarão as chamas em que Nande Ru se inspirou.
Levantam as chamas na primavera, cujo ruído de crepitar são os
trovões no Oriente, e alojam as chamas sagradas pelo topo da cabeça.
Na tradição hindu, o sétimo chakra (30A), sahasrâra,
também chamado brâhmarandra, está simbòlicamente
localizado no topo da cabeça, por onde se dá a união espiritual
última, abrindo-se as mil pétalas da lótus-fonte do néctar da
imortalidade (31).
Os Jakaira RuEte vigiam a fonte da neblina que engendra
as palavras inspiradas e alojarão no topo da cabeça a neblina
vivificante. Os Tupã RuEte, cuja morada é no Oeste, vigiam o
extenso mar e ramificações, e como chuvas inspiram a moderação e
a temperança no centro do coração, a harmonia e o refrescar para
que as leis que regem o amor não produzam excessivo calor nos
futuros filhos e filhas amadas (32).
Segue-se os deuses menores, “os que tem umbigo, os
engendrados”, Karai Py’aguachu, Jakaira Py’aguachu e Tupã
Py’aguachu. Abaixo deles estão os agentes de destruição, que
perseguem as entidades malévolas (Namandu Avaeté, Namandu Rekoe,
Namandu Kuchuvi) e os mensageiros mansos, benévolos (Tupã Aguyjei,
Tupã Ne’ëngija). Os Ambá, moradas dos deuses Mbyá, estão no
centro do firmamento, em ambos lados da trajetória do Sol. Nas
regiões celestes ao Norte e Sul da órbita do Sol estão os deuses
das outras raças.
Yeba bëló, a avó do universo, percebendo que os
cinco homens-trovões não conseguiriam cumprir suas ordens de
feitura da luz e da futura humanidade, “mascou ipadu, fumou cigarro
e da sua fumaça formou-se um ser invisível, que não tinha corpo,
não se podia ver nem tocar. Yeba bëló agarrou-o e o envolveu no
pari (trançado de talas de miriti com fio de tucum) que lhe servia
de defesa, chamado weré imikalu (defesa, pari). Estava agindo
como as mulheres quando dão à luz. Depois de o ter pego com o pari,
saudou-o dizendo: Ëmëkho sulãn Panlãmin” universo, palavra
cerimonial, bisneto). Seu segundo nome é Yebá ngoamãn (terra,
criador). Yebá bëló disse a Yebá ngoamãn: “Mandei os ëmekho
ulãn (universo, irmãos) fazerem as camadas do universo e a
futura humanidade. Eles não souberam fazê-lo. Faça você que hei
de guiá-lo”. E ele aceitou a palavra da avó do universo. Saudou-a
dizendo: Ëmëkho sulãn nekhó (universo, palavra cerimonial,
tataravó) (33).
Notas
(l) - Kumu,U. e Kenhiri,T. - Op.cit.,p.5l.
(2)- Cadogan, Leon - op.cit., p.13.
(3)- Nimuendaju,C. - Op.cit.p.l55.
(Apenas ao senso comum parece incompreensível a idéia do
princípio do mundo “brotar de si mesmo”. Metafisicamente, a
Origem primordial possui em si mesmo, como princípio eterno, a
possibilidade do Ser, que lhe é a manifestação contida em estado
potencial dentro da Origem, que é o “si mesmo” deste princípio
cósmico, entendido o Cosmos como o conjunto dos mundos manifestos. O
que é carente de suficiência é a noção moderna do mundo ter-se
originado da explosão de uma “massa concentrada de energia
“(conhecida como a concepção do Big-Bang), sem que se compreenda
qual a origem dessa massa energética original, como se fôsse um
“algo aí” dado, uma realidade limitada carente de substrato
superior. O esforço das ciências modernas em “destronar” a
necessidade ontológica do fundamento Absoluto revela a pretensão
secularizante deste tipo de formulação, mas que objetivamente
examinado, tenta uma visão alternativa que carece de sustentação
compreensiva.
(4)- Cadogan, Leon- op.cit.p.15.
(5)- Os símbolos são a linguagem por excelência das
verdades metafísicas. Sintéticos e diretos, os símbolos traduzem
essas verdades para a intuição da mente humana. A idéia moderna de
que os símbolos são criações arbitrárias da mente humana não
encontra lugar na visão dos povos tradicionais e na própria
observação da Natureza: “Tudo o que é, sob qualquer modo que
seja, participa necessariamente dos princípios universais e nada é
senão por participação nestes princípios, que são as essências
eternas e imutáveis contidas na permanente atualidade do Intelecto
divino; por consequência, pode se dizer que todas as coisas, por
mais contingentes que sejam em si mesmas, traduzem e representam os
princípios à sua maneira e segundo sua ordem de existência, pois,
de outro modo, não seriam senão um puro nada. Assim, de uma ordem à
outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer
à harmonia universal e total, pois a harmonia (...) não é nenhuma
outra coisa senão o reflexo da Unidade principial (grifo meu)
na multiplicidade do mundo manifestado ;e é esta correspondência
que é o verdadeiro fundamento do simbolismo. Eis porque as leis de
um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as
realidades de uma ordem superior, onde elas tem sua razão profunda,
que é ao mesmo tempo seu princípio e seu fim, e podemos assinalar
de passagem,nesta ocasião, o erro das modernas interpretações
“naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, interpretações
que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entra as
diferentes ordens de realidades. Por exemplo, para não levar em
conta senão uma das teorias mais disseminadas em nossos dias, os
símbolos ou os mitos jamais tiveram por papel representar o
movimento dos astros, mas o que é verdade é que neles encontramos
frequentemente, figuras inspiradas neste movimento e destinadas a
exprimir analògicamente coisa inteiramente outra, porque as leis
deste movimento traduzem fisicamente os princípios metafisicos de
que dependem.” (Guénon, René- Autorité Spirituel e Pouvoir
Temporel. Paris: Vega, l976, p.22-3.
(5A)- Tambem no Hinduísmo, as posturas (asanas )
são importantes, tanto as de meditação, sentadas, como as da
prática da Hatha-Yoga.
(6)- Cadógan, Leon- op.cit., p.13.
(7)- Cadogan, Leon- op.cot., p.17.
(8)- Ribeiro, Berta G.- Dicionário de Artesanato
Indígena. Belo Horizonte: Ed.Itatiaia/ São Paulo: Ed.da
Universidade de São Paulo, l988, Col. Reconquista do Brasil, 3, vol.
4, p. 255. Os bancos variam de forma, conforme o grupo indígena:
circulares, concavolineos (como dos Tukano), concavo-ovalado
(Assurini e WaiWai), cupular (Tukuna), na forma de peixes (Aweti), de
aves (como dos grupos do alto Xingu e Karajá), quadrúpedes (Tukuna,
Juruna, Makuxi), retangular (Kaiwá), apoiado em tres pés (Makuxi) e
outros. Poderíamos acrescentar os escabelos, assentos ao rés do
chão, usados geralmente pelas mulheres, feitos de couro (Kadiwéu,
Bororo), pecíolo de buriti (Kuikuro) e carapaças de tartaruga ou
tatu, frequente em todas aldeias.
(8A) Um símbolo análogo a este é o do trono ,
que aparece sob muitas outras formas entre os povos tradicionais :
Trono - o assento da autoridade, conhecimento e da lei, espiritual e
temporal. O trono é erguido sobre um estrado como o centro do mundo
entre o céu e a terra. Simboliza também o que é nascido
miraculosamente, esculpido em tronos de simbolismo especial, como o
trono do dragão, o lótus ou o trono do leão. O colo da Grande Mãe,
como Rainha do Céu, é simbólico do trono...”. Cooper,
J.C.- An Illustrated Encyclopedia of
Traditional Symbols. London: Thames and
Hudson, l982, p.l7l-2.
(9)- Cadógan, Leon- op.cit.p.17
(l0)-Nimuendaju, Curt - op.cit.p.73.
(ll)- Ipadu = coca, em língua geral. Arbusto cujas
folhas são tostadas e socadas em pilão especial. São misturados à
cinza de uma espécie de embaúba. O pó é mascado e engolido. A avó
do universo faz-se a si mesma de seis coisas invisíveis que existia:
sé-kali (bancos), salipu (suportes de panelas), kuásulu
pu (cuias), kuasalu verá (cuias, ipadu), dehkë iuhku
verá pogá kuá (pés de maniva, ipadu, tapioca, cuia),
muhlun iuhku (cigarros). Kumu U.P., Tolamán K.- op.cit., p.51.
(A tradução literal das palavras em dêsana, segundo Berta Ribeiro,
permitiria inferir a estrutura do pensamento desse povo. Por exemplo,
alun sali kuli = beiju, colocar, balaio, ou seja, balaio para
colocar beiju. Cf.explicação, p. 33-36.
(l2)- Kumu U.P., Tolamán K.- op.cit., p.5l-2.
(l3)Cadogan, Leon- op.cit., p.13.
(l4) Nimuendaju, Curt - op.cit, p.l55 e p.68.
(14A)- Brown, Joseph Epes - La Pipa Sagrada.
Oklahoma, l953, p.45-50.
(15)- Guenón, René - “El Corazon irradiante y el
corazon en llamas” in Simbolos Fundamentales de La Ciencia
Sagrada. Buenos Aires: Ed.Univ.de B.Aires, l976, p.364.
(l5A)- De la Vega Inca, Garcilaso - Comentários
Reales, Livro Noveno, cap. X. Peru: Ed. Mercúrio, p.l44.
(l6)- Também no Budismo, como via predominantemente
interior, a Natureza em sua face impermanente recebe maior inflexão
quanto aos perigos do apego, seja à natureza fenomênica exterior
seja interior ao homem (sua mente e corpo). Mas o Budismo jamais
confundiu a necessidade desse alerta e desapego com uma violência
sobre os seres da natureza. Haja visto como em sua prédica : que
todos os seres sejam felizes e possam seguir o seu caminho de Buddha,
a Natureza é respeitada e cultivada pelos budistas de todo o mundo,
independente de sua particulariedade cultural-geográfica.
(16A)- Leite, Serafim - Cartas dos Primeiros Jesuitas
do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade de
São Paulo, l954, p.l50.
(l7)- Guenon, René- op.cit. p .364.
Guénon esclarece que “o hálito refere-se à luz, como
símbolo do espírito, essencialmente idêntico à inteligência,
enquanto o sangue é o veículo do ‘calor vivificante’, ligado ao
papel “vital” do princípio que é centro do ser”. Também
Aristóteles assimila a vida orgânica ao calor.
(18)- Godoy, Roberto y Olmo, Angel- Textos de
Cronistas de Indias y Poemas Precolombianos. Madrid:
Ed. Nacional, l979, p.l87.
(l9) Guénon,René- “L’Omphalos
et les Bétyles”, in Le Roi du Monde.
Paris: Ed. Traditionelles, l950, p.71-72. Guénon mostra
outras correlações de Omphalos, ao referí-la à pedra sagrada ,
bétilo, como no hebreu Beith-El , “casa de Deus”, lugar
de manifestação do Senhor a Jacob quando este dormia recostado
sobre esta pedra, que passaria daí a ser um lugar consagrado como
“casa de Deus e porta dos Céus”. Guénon também mostra como ao
invés de pedra, o mesmo símbolo pode aparecer na forma de outeiro
(como na China, a terra das “cinco regiões”, designando os
quatro pontos cardeais e o centro), elevação, tumulus e ilha (como
“a ilha dos quatro mestres”, na China e Irlanda).
(20)- Guasch, Antonio- Diccionario Castellano-Guarani
y Guarani-Castellano. Assuncion: Ed Loyola, 1981, p.682.
(21)- Kumu,U. e Tolamàn,K.- op.cit., p.52.
(22)- Kumu,U. e Tolamãn,K.- op.cit., p .53.
(22A)- Kumu,U. e Tolamãn,K.- op.cit., p.35.
(23)- A enfase monoteísta (“o Deus único”) das
religiões semíticas, se compreensível e correta sob certa
perspectiva, gera por outro lado certa dificuldade de compreensão da
relação unidade-multiplicidade que une os princípios celestes,
fazendo com que os representantes (leigos ou missionários) dessas
religiões incorram muitas vezes no equívoco de verem as tradições
antigas como “politeístas”. Equívoco análogo ao da
interpretação das tradições indígenas como “religião
naturalista”. Para os hindus, “Deus é uma essência sem
dualidade (adwaita), mas não sem relações
(vishishdâdwaita)”. Coomaraswamy, Ananda - Hindouisme et
Bouddhisme. France: Gallimard, l980, p.25. É verdade que nos
períodos de decadência de uma Tradição, a relação de seus
membros com os “muitos deuses “tende a se transformar em culto
idolátrico, pois desvincula os princípios secundários de sua Raiz
Suprema. Esta era, por exemplo, a situação do culto dos povos da
Arábia na época de Mohamed, o Profeta fundador da tradição
islâmica. Mas certamente não é à luz dessa compreensão que se
impinge a conotativa expressão de “politeistas” aos povos
antigos.
(24)- Nimuendaju, C.- op.cit., p.l55.
(25)- Metraux,Alfred- “A Religião dos Tupinambás
“,p.22, SP, Ed.Nacional-EDUSP, l979.
(26)- Metraux, A.- op.cit., p.21-22. (Nas notas (a) a
este cap .II, p.29, Estevão Pinto comenta que o mito dos gêmeos
existe entre os tupis, os guaraius, os mundurucus, os juracaris, os
bacairis, os tamanacus, os giraras, os araucanos e, aparentemente,
também entre os carajás).
(27)- Hurault,J. Marcel - Les Indiens Wayana de la
Guyane Française : structure sociale et coutume familiale.
Paris: ORSTOM, l968. (Citado em “Povos Indígenas no Brasil”, 3
Amapá/Norte do Pará, p. l57, SP, CEDI, l983; Schoepf, Daniel - Le
Japu faiseur de perles: um mythe des Indiens Wayana-Aparai du Brésil.
Geneve: Museu d’Ethnographie, l978.
(28)- Segundo as doutrinas tradicionais, para a
constituição da existência, o Ser universal se polariza em dois
princípios opostos e complementares : o pólo substancial e o pólo
essencial, cujos nomes são Prakriti-Purusha (na tradição hindu),
Yin-Yang (no Taoismo chines), Matéria-prima e Forma (para os
escolásticos), entre outros. Embora estes princípios não existam
de forma pura na existência, é da união deles que derivam todos os
seres do universo cósmico. O termo substancial, embora em si
não possua qualidade ou forma alguma, é o suporte maternal apto a
receber todas as formas que dela será extraído pela ação de
presença do pólo essencial. O termo sânscrito para o pólo
substancial, Prakriti, esclarece muito do seu sentido é um
termo feminino e formado pela raiz verbal KR (fazer, colocar)
e pra (preposição que dá a noção de “diante de”.
Portanto o pólo substancial é o que está pré-ssuposto, pré-posto.
O uso moderno do termo “material” é impreciso e dá margem a
confusões. A Física moderna tem mostrado que o que se chamou de
“matéria” não é nada mais do que energias vibratórias em
permanente fluxo. O termo escolástico “matéria-prima” nada tem
a ver com o termo moderno “matéria”, pois em acordo com as
várias doutrinas tradicionais, designa um princípio cosmológico .
(29)- Baldus, Herbert - Ensaios de Etnologia
Brasileira. São Paulo: Brasiliense, vol.10l, l979, p.108-53;
Laraia, Roque de Barros - “o Sol e a Lua na mitologia Xinguana”,
in Mito e Linguagem Social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1970, p. 107-134; Melatti, J,.Cesar - Indios do Brasil.
Brasília: Hucitec, 1987, p. l39-40, Schaden, Egon - A Mitologia
Heróica das Tribos Indígenas do Brasil. MEC, l959.
(30)- Krickeberg, Walter - Mitos y Leyendas de los
Aztecas, Incas, Mayas e Muiscas. México: Fondo de Cultura
Economico, 199l.
(30A)- Na tradição hindu, o nível ou forma sutil da
individualidade humana é constituído de uma série de artérias
sutis e luminosas chamadas nadis . “Os plexus nervosos, ou
mais exatamente seus correspondentes na forma sutil (na medida em que
esta está ligada à forma corporal) são designados simbolicamente
como “rodas” ( chakras ) ou ainda como “lótus”
(padmas ou kamalas). Guénon, René
- L’ Homme et Son Devenir selon le
Vedanta. Paris: Ed.
Traditionelles, 1976, p. l6l. Guénon esclarece que em relação às
condições póstumas do ser humano, o topo da cabeça desempenha
importante papel em várias tradições, como a tonsura dos
sacerdotes católicos ou entre vários povos indígenas, como por
exemplo os Xavante.
(31)- Sangita- Ratnakara of Sarngadeva. R.K.
Shringy and Prem Lata Sharma. India: Motilal Banarsidas, 1978,
p.95-6.
(32) - Cadogan, Leon - op.cit., p.31-32. O autor observa
com propriedade que “o fato de ocupar Tupã RuEte o quinto lugar na
teogonia Mbyá-guarani e lugares mais secundários ainda em outras
parcialidades guarani, dá razão a Nimuendaju quando fala do “abuso
que fizeram de seu nome os missionários que o introduziram para
designação do Deus cristão em todo Brasil, Paraguai, grande parte
da Argentina e Bolivia”, op.cit., p.36.
(33)- Kumu,U.P., Kenhiri,T. - op.cit., p.54-5.
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O Conhecimento de Deus:
O Conhecimento de Deus:
Cristianismo e Tradições Indígenas
Arthur Shaker
“Essa gentilidade a coisa nenhuma adora, nem conhecem a Deus, somente aos trovões chamam Tupana que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus, senão que chamar-lhe Pai Tupana”(1).
Assim escrevia Pe. Manuel da Nóbrega, em 1549. Cinco séculos se passaram, de muitos desencontros e imposições, poucos diálogos houve para com as tradições indígenas. Se ressonâncias podem se dar entre as espiritualidades indígenas e as formas do Cristianismo, em que bases isso seria possível? Por quais caminhos adentrar na compreensão do modo de ser próprio de uma tradição espiritual, ainda mais quando têm, como as tradições índígenas, uma forma muito distinta, e até bem distante, do Cristianismo católico e protestante?
Sentado, o novo pretendente aguardava o mestre zen. Esperava que esse mestre o aceitasse como discípulo. O mestre entrou, se sentou diante dele.
O pretendente foi logo dizendo as razões que o trouxeram ali, e tudo que tinha estudado e praticado. O mestre ouviu, quieto. E disse-lhe: “Coloque sua mala no canto esquerdo da sala”. O discípulo ficou tenso, ansiava ser aceito. Como atender ao pedido do mestre, se não tinha mala alguma na mão? Pensou um pouco, se levantou, foi ao canto esquerdo da sala e fingiu estar colocando uma mala no chão. Voltou e se sentou, diante do mestre. E continuou explicando suas razões. “Coloque sua mala no canto direito da sala”, disse o mestre. Um pouco mais nervoso, e sem graça, o discípulo se levantou e repetiu o mesmo gesto imitativo no canto direito da sala. Voltou e se sentou. “Coloque sua mala no chão”, disse o mestre. Silêncio. De súbito, o pretendente entendeu: a mala era a bagagem mental distrativa, que lhe impedia de estar ali, atento, aberto à realidade ali presente.
Reconheçamos, é difícil tirarmos os óculos de nossa visão condicionada e tentarmos olhar e compreender o mundo do outro através dos olhos dele. Trabalhar sobre a cosmologia indígena, e mais especificamente a Xavante, colocou para mim muitos desafios (2). Ao longo desses anos, em minhas conversas com representantes indígenas, ouvi muitos deles contestarem que muitas das interpretações que foram feitas sobre suas culturas eram construções que não correspondiam à realidade e ao modo com que eles compreendem a si mesmos. Isso incluía as traduções e as interpretações sobre elas construídas. Avaliar se cada contexto etnológico responde fielmente à própria visão daquele povo indígena exige várias ponderações. De qualquer modo, é certo que na crítica à produção etnológica, caberá progressivamente um lugar importante aos intelectuais indígenas.
De minha parte, isso me alertava para sempre me lembrar que o espaço maior da fala deve ser o dos seus próprios narradores e tradutores. Entendi que o desafio desse projeto envolvia várias questões ligadas aos três interlocutores participantes do trabalho. Do lado dos velhos narradores, não parecia haver grandes problemas. Eles sempre estiveram dispostos a contar e re-contar seus mitos e darem todas as explicações sobre as dúvidas que íamos colocando, e quantas vezes fossem necessárias. O ambiente sempre correu com muito bom ânimo, e que paciência eles demonstraram!
Metodologicamente, o desafio maior era para comigo e os tradutores. Da minha parte, descolonizar incessantemente as possíveis distorções de meu olhar. Esta é uma luta difícil e que exige muito. Por mais que tomemos fortes precauções, freqüentemente nos flagramos olhando e interpretando o mundo indígena segundo certos padrões sutilmente distorcidos – pois nem estou me referindo aos padrões grosseiros – que são os condicionamentos intelectivos com que se introjeta a cultura ocidental dentro do pensamento etnológico. Vencer este etnocentrismo intelectual não é simples. Não me iludo, há sempre um certo limite de consciência possível para quem está buscando compreender a cultura do outro com o máximo de proximidade com o olhar do outro. Este limite pode ser reduzido através de um constante trabalho de revisão dos nossos padrões intelectuais. Esta constante revisão é de fato um trabalho de re-educação, algo relativo ao que os gregos chamavam de paideia. Mas não é uma tarefa fácil, principalmente porque diz respeito à uma esfera muita complexa de realidade, que são as barreiras de penetração no mundo mítico indígena. Dentre esses olhares cognitivos, aqueles que pretendem captar a dimensão espiritual são os que mais podem dar margens a distorções. Isto porque a secularização do mundo moderno obscureceu de muito a capacidade de penetração no universo mítico, já por si mesmo de alto grau de sutileza, ainda mais em se tratando dos universos míticos dos povos indígenas, com formas tão distintas daquelas que constituem o familiar religioso do mundo ocidental.
Posso dizer que meu grande aliado na minimização desse perigo é minha formação teórica dentro de certas tradições espirituais asiáticas como a hindu e taoísta, e teórica e prática budista, que me servem de suportes para uma intuição metafísica que me permitiu construir certas pontes entre o misterioso mundo mítico A’uwê e meu próprio processo de tessitura interior. A familiaridade com a Metafísica é fundamental para estudos dessa natureza. Procurei me aproximar da compreensão do mundo indígena através da apreensão dos conceitos e significados com que eles mesmos, como agentes de sua cultura e História, se percebem a si mesmos. Conceitos com que eles se auto-referenciam, através dos quais eles compreendem seus fundamentos, suas origens, seus símbolos e paradigmas de ação no tempo e espaço.
De acordo com as doutrinas tradicionais, cada ciclo cósmico (ou de uma humanidade) caminha no sentido da progressiva perda das bases espirituais que fundam as tradições, concomitante ao aumento da obscuridade e da dificuldade de acesso às instâncias intelectivas mais profundas, vale dizer, o enfraquecimento da intuição metafísica. Neste período, que corresponde ao atual Kali-yuga (a idade sombria, segundo a tradição hindu), muitas tradições podem se enfraquecer e deixarem de oferecer os suportes necessários para sustentação de um corpo de ritos e doutrinas, embora em sua aparência exterior possam parecer ainda estarem provendo uma influência espiritual eficaz. Nesses casos, a ocupação de uma outra tradição, muitas vezes incorporando aspectos culturais ou ritualísticos da tradição anterior, tem uma função providencial. Assim foi o caso da ocupação do Cristianismo dentro do vazio deixado pela tradição greco-romana. Algo semelhante, mas com dimensões bem mais localizadas, foi a expansão do Islã na Índia. É certo que neste caso houve uma certa imposição e perseguição aos hindus e budistas, mas por outro lado, o monoteísmo islâmico se colocou como uma via providencial para certa parcela da população hindu, que por já não mais compreender os significados fundamentais de seus ritos e símbolos, os transformaram num ritualismo esvaziado. Teria o Cristianismo esse análogo papel providencial para com certas formas tradicionais indígenas sul-americanas?
Avaliar esta pergunta não é uma tarefa muito simples. Sob quais critérios se concluiria que esta ou aquela tradição indígena sofre de um esvaziamento de suas bases, tornando sua cristianização uma solução providencial? Seria preciso que esta tradição indígena já não mais possuísse nenhuma autoridade espiritual que fizesse o elo da transmissão da influência espiritual instituída por seus fundadores; que os ritos já não mais existissem; que os mitos tivessem sido esquecidos ou profundamente alterados ou fragmentados, se tornando como que apenas superstições, no sentido de aparências ritualísticas e imagéticas desprovidas de substância espiritual presente. É possível que haja alguns casos dessa ordem, e que a própria cristianização desses povos seja uma evidência de fato dessa mudança cabida. Mas a vitalidade das tradições indígenas indica que seriam casos muito localizados. E dentre eles, há aqueles em que se acresce ao dado do enfraquecimento dessas tradições, a analogia que elas trazem dentro de si com o profetismo messiânico, como os Baniwa, povo Aruak do Noroeste amazônico ou os Taurepang, povo Karib do Roraima (3).
Existem ao menos três modos de aproximação de uma tradição religiosa para com outra. A primeira é a da imposição pura e simples. Apesar de discursar sobre a importância de entender as tradições religiosas, sua prática real é a da imposição catequética. Esse é o modo mais grosseiro e o mais deletério para as culturas indígenas. O segundo modo busca encontrar certas analogias entre o Cristianismo e as tradições indígenas que serviriam de base para a ação missionária. A despeito de sua forma menos impositiva, persiste a resistência em aceitar a legitimidade e validade espiritual das formas tradicionais indígenas. E porque essa recusa e insistência do catequismo missionário?
Imbuído de intenção salvadora, o missionarismo segue a orientação do Cristo, ide e pregai o Evangelho. Mas a questão não é a boa intenção missionária, e sim a de saber se não lhe falta uma visão correta mais profunda sobre as dimensões metafísicas da espiritualidade indígena. É sobre isto que tentarei tecer alguns comentários.
Minha convivência com os Xavante (eles se auto-denominam A’uwê) é principalmente com os da Reserva de Pimentel Barbosa (Mato Grosso), e mais especificamente as aldeias de Êtenhiritipa e de Wederã, onde não há missões. O missionarismo cristão se faz mais presente em outras reservas, como as de São Marcos e Sangradouro, e o mais influente é o dos salesianos. Não conheço as reservas onde os salesianos atuam, as informações que tenho vêm pelo material que tive acesso sobre (livros e vídeos), pelo diálogo com os Xavante dessas reservas, quando vêm à Reserva de Pimentel Barbosa, e pelo diálogo com os Xavante desta Reserva acerca do missionarismo salesiano. E algumas poucas vezes em que o carro da ordem salesiana adentra a Reserva, para um breve distribuir de alimentos e uma ainda mais breve exibição de algum vídeo sobre a missa, com participação dos Xavante de outras reservas. Quero comentar algo sobre a cosmologia Xavante em relação a uma interpretação missionária atual de uma Nova Evangelização denominada de “inculturação”. E para isso, utilizarei o texto-dissertação de mestrado “Iniciação Cristã entre os Xavante”, de George Lachnitt (4). Datado de 1993, não sei se atualmente sofreu reformulações fundamentais em sua perspectiva.
Buscando rever a visão colonial de que os povos indígenas seriam simplesmente ateus, ignorantes da existência de Deus e por isso merecedores de uma salvação pelo catequismo, historicamente realizado pela força, a inculturação entende que “o Espírito Santo estava já a operar no mundo, antes da glorificação do Filho” (5) . A história indígena seria uma espécie de Antigo Testamento à espera do anúncio de Jesus Cristo: “Toda reflexão se concentra numa antiga afirmação de Gregório de Nazianzeno sobre as “Sementes do Verbo” inatas no gênero humano que atravessam de um lado ao outro a tradição e sabedoria dos povos indígenas e os preparou a aceitar mais profundamente o anúncio do Evangelho. Estas sementes manifestam que em todos os povos e em todas as religiões há elementos preciosos que conduzem ao Deus verdadeiro e preparam o Evangelho. (...) Estas sementes do Verbo precisam ser aperfeiçoadas em Cristo, ou recapituladas, fecundadas ou plenificadas por Ele” (6).
O primeiro pressuposto a ser examinado é esse de que as Sementes do Verbo prepararam as tradições indígenas para receberem o anúncio do Evangelho. Penso que esta é uma formulação teológica altamente complexa e problemática, pois leva a concluir que, para que todas as atuais tradições espirituais, incluindo as indígenas, se realizem em sua plenitude, devem se dissolver dentro do Cristianismo, pois “estas sementes do Verbo precisam ser aperfeiçoadas em Cristo, ou recapituladas, fecundadas ou plenificadas por Ele”. De um ponto de vista exotérico, é compreensível que o lugar de Cristo como Filho de Deus, a coroa da Criação, e a única via ao Pai, carrega essa perspectiva de tradição que plenifica as demais. Mas do ponto de vista mais interior, esotérico, todas as tradições legítimas se enraízam no Absoluto e constituem vias de realização enquanto permanecerem vivas. Esta relação complexa entre as diferenças de perspectiva exterior entre as tradições, que mescla afinidades e oposições, e a unidade transcendental, quando vista de uma perspectiva interior, escapa muitas vezes do âmbito da reflexão teológica ou missionária, para se colocar dentro da compreensão metafísica, da relação entre as formas tradicionais e a unidade transcendental das tradições. E com que olhos vemos a Tradição, e a tradição do Outro?
“O povo A’uwê de Êtenhiritipa mantém a Tradição. É assim que eu vou falar. Para que nossos filhos aprendam e mantenham a Tradição para as futuras gerações. Para que não acabe nunca.
Em Êtenhiritipa existe a presença viva da força da Criação. Nós somos o povo verdadeiro, nós mantemos o espírito da Criação.
A Tradição deve permanecer. Ela vem de antes de nós e vai seguir em frente.
Eu me chamo Sereburã. É assim que eu vou falar sobre a minha Tradição.
Ãné!” (7).
Os A’uwê usam o conceito de Dato (ou dasiwa’uburuzé) para se referirem à sua Tradição, o patrimônio de ritos e conhecimentos que herdaram de seus ancestrais criadores. São os esteios mítico-rituais que traduzem a idéia de uma “tradição Xavante”, e nesse sentido se vinculam aos tempos míticos primordiais em que foram erigidos os fundamentos de sua tradição, fundamentos que estão nos mitos e ritos. Usam o têrmo dahöimanazé para designar os tempos presentes do seu cotidiano, que, embora também seja formulado como parte da “tradição Xavante”, mantém certa diferença fundamental em relação ao universo mítico-ritual. É através dos mitos e ritos, re-presentificando e re-atualizando os tempos dos criadores, que o cotidiano é re-integrado ao tempo primordial, re-unificando o mundo imanente no transcendente, o temporal no atemporal. Este caráter fundante e integrador do conceito de “tradição”, que está na base da cultura Xavante, e dos povos indígenas de modo mais amplo, nem sempre é de fácil compreensão ou assimilação no pensamento do Ocidente moderno, onde passou a ser associado à idéia do repetitivo costumeiro de um passado superado, dificuldade que advém da progressiva secularização e perda das próprias bases metafísicas do Ocidente pós-medieval. A apropriação do termo “Tradição” por organizações ideológicas retrógradas também colaborou para uma reatividade aversiva.
Quando Sereburã diz que a Tradição deve permanecer, que ela vem antes de nós e vai seguir em frente, ele está se referindo à Tradição como “a força que mantém o espírito da Criação”, força com que os ancestrais míticos criaram os seres, os ritos e conhecimentos que até hoje constituem os modos de ver e viver dos A’uwê. Tradição significa tradução e transmissão dessas verdades metafísicas evidenciadas nos tempos míticos. Estas verdades se traduzem, através de símbolos, em beleza expressiva dos ritos repletos de cantos, danças e pinturas corporais, em leis de regramento para os membros da comunidade e constituem as formas específicas de cada Tradição, situando-a histórica e geograficamente no tempo e no espaço.
Tomemos um dos mais belos símbolos da metafísica tradicional, a árvore. Podemos entender o que seja uma folha, ou um galho, seccionados de sua verdade inclusiva, a árvore? A existência, o mundo se torna opaco quando se perde a intelecção do quê possam ser seus princípios fundantes. Quando a folha abandona a árvore, ela amarela e seca, vagando ao sabor do vento. Assim se construíram as sociedades modernas, em bases desconectadas de uma raiz transcendente, feito folhas cortadas de sua raiz.
O que é mais limitado só pode ter seu fundamento no que é menos limitado. A folha está ligada ao galho, o galho ao tronco e o tronco à raiz. Seguindo este percurso de entendimento, só podemos concluir que o Transcendente Incondicionado é a Realidade Última, o necessário ponto de partida para a manifestação dos mundos relativos, como o nosso, e ao mesmo tempo ponto de chegada, quando se busca retornar à Fonte, raiz última de todas as espiritualidades. Em sua Infinitude e Absolutidade, guarda em suas profundezas oceânicas as possibilidades de não-manifestação, permitindo que suas superfícies tragam para a existência fenomênica as possibilidades de manifestação. A ligação entre a Fonte-Raiz Transcendente e os mundos relativos é feita por este corpo de conhecimentos e diretrizes espirituais que são as Tradições. O conceito de tradição é muito mais amplo do que o de religião. A Tradição é o Tronco, Eixo, Áxis Mundi, de uma grande Árvore, cuja Raiz está na Origem Transcendente e cujos galhos se estendem, com suas folhas, por esta existência. É neste princípio de ligação entre o Céu e a Terra, aqui entendidos como os Princípios e a manifestação existencial, que os povos tradicionais têm sua constituição. A ruptura ou enfraquecimento deste contato representa a morte em seu aspecto mais tenebroso.
Tradição evoca a palavra trade, troca, entre o Céu e a Terra. No símbolo da Árvore, o tronco alude à Tradição, mediador entre a Raiz transcendente e os galhos, que se abrem como tradições manifestas ao longo da marcha da humanidade. Muitas já surgiram e se extinguiram, como a tradição egípcia, caldáica, celta e tantas outras. Seria mais correto dizer que se recolheram para dentro da invisível e misteriosa origem, pois sua identidade com a sophia perennis, a Sabedoria perene, não pode ser extinta. E muitas ainda estão presentes enquanto tradições vivas, como a Tradição taoísta, hindu, buddhista, judaica, cristã, islâmica e as tradições indígenas e africanas. Embora provindas da mesma fonte, cada Tradição tem uma forma própria e é completa em si mesma, e assim ela deve ser entendida, a partir de sua própria estrutura interna. Cada ciclo da humanidade vê surgir um conjunto de formas tradicionais, segundo leis e significações de grande profundidade.
Em 1985, na Encíclica Slavorum Apostoli, o Papa João Paulo II define a inculturação como “a encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, ao mesmo tempo, a introdução dessas culturas na vida da Igreja”. No Sínodo daquele ano, a inculturação foi definida como “a íntima transformação dos valores culturais autênticos por meio da integração no cristianismo, e a encarnação do cristianismo nas várias culturas humanas (...) o esforço da Igreja para fazer penetrar a mensagem de Cristo num determinado ambiente sócio-cultural, convidando-o a aceitar a fé cristã com todos os seus valores específicos, levando em consideração que estes são conciliáveis com o Evangelho. (...) A inculturação significa a íntima transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas” (8).
Caberia aos missionários analisar as culturas indígenas e reconhecer aonde em seus mitos, símbolos e ritos estariam certas analogias com a doutrina, símbolos e ritos fundamentais cristãos de modo a inculturar, introduzir de fora para dentro os paradigmas cristãos no interior das culturas indígenas, paradigmas que são recebidos pela cultura indígena dentro de sua própria cultura, de modo que se “transforme e recrie esta cultura, dando origem a uma ‘nova criação’ ” (9). O pressuposto da inculturação é de que valores específicos que fazem parte das tradições indígenas como a solidariedade, o respeito à Natureza, a caridade comunitária permanecerão (e serão re-aproveitados) quando da integração no cristianismo, pois são conciliáveis com o Evangelho. A questão, porém, é saber se é possível integrar uma tradição indígena dentro do cristianismo sem que ela deixe de ser o que ela é em suas estruturas fundantes. De um modo geral, quais são os fundamentos de uma tradição?
O primeiro critério que fundamenta uma Tradição é sua origem eterna, intemporal, não-humana, supra-humana, aquilo que a tradição hindu se refere como apaurusheya. Todas as Tradições possuem um corpo doutrinal perfeitamente articulado sobre o Infinito, o Absoluto e o relativo, a Transcendência e a Imanência. Este corpo doutrinal pode estar na forma de um livro sagrado, como os Vedas, a Torah, o Corão, ou segundo transmissão oral iniciada pelo fundador mítico desta Tradição, um Avatara (a descida divina) como o Buddha, Christo e os seres míticos fundadores das tradições africanas e indígenas de todas as partes do mundo.
Possuem um corpo de ritos e práticas que permitem aos homens trilharem com segurança os vários degraus de uma ascese vertical que culmina na realização espiritual definitiva, a completude. A constituição destes ritos e práticas, e sua eficácia, também são atributos exclusivos da autoridade dos fundadores míticos de cada tradição, por isso também são de origem supra-humana. E é este caráter de autoridade transcendente que confere ao rito sua retitude, sinônimo de eficácia que resulta em realização. Este conjunto de qualidades confere às Tradições o exclusivo poder de transmissão de uma influência com a qual e pela qual cada membro de uma tradição se re-liga à corrente intemporal de transmissão divina e alcança sua realização espiritual.
Para compreendermos o complexo universo de trançados que liga os fundamentos míticos à cada aspecto da vida de um povo tradicional, como os povos indígenas, é preciso uma revitalização da capacidade de ver o mundo com os olhos da Metafísica. Esse termo, bem como o de Cosmologia, tem sido usado de modo pouco claro, por isso é útil retomarmos o sentido original desses conceitos.
O termo Metafísica provém do grego, de meta, “para além”, e Fisis, “Física”. O termo Física, entretanto, tem para os povos antigos, como os gregos, uma acepção profundamente diferente daquela que seria utilizada pelos pensadores modernos. Para os gregos, o termo Fisis designa o Cosmos de um modo amplo, entendido o Cosmos como o mundo manifesto e relativo – “o mundo criado”, na linguagem teológica - incluindo por isso os vários domínios sutis e o corporal. Designa “o que brota”, aquilo que os gregos entendiam como sendo a Natureza. A Física, designando para os gregos “a ciência da Natureza sem nenhuma restrição, é então a ciência que se relaciona com as leis mais gerais do “devir”, porque “Natureza” e “devir” são, no fundo, sinônimos e era assim que o entendiam os gregos, nomeadamente Aristóteles; se existem ciências particulares referindo-se à mesma ordem, são apenas “especificações” da Física para este ou aquele domínio estritamente determinado” (10).
A Metafísica designa tanto as leis que ligam a Natureza, o mundo manifesto, aos seus princípios supra-naturais, universais, como também esses próprios princípios universais, assim como o conhecimento desses princípios que estão para além da Natureza, da Fisis, como entendiam os gregos: “Para Aristóteles, a Física era apenas segunda em relação à Metafísica, quer dizer que ela estava dependente desta, no fundo era apenas uma aplicação, no domínio da Natureza, dos princípios superiores à Natureza e que se refletem nas suas leis...” (11). A Metafísica é o fio de Ariadne que liga a Natureza aos seus princípios fundantes, a supra-Natureza. Se entendermos que o conceito de Tradição significa tanto o modo de estruturação da vida indígena a partir das diretrizes metafísicas fundantes trazidas pelos seus criadores míticos, bem como a tradução e a transmissão dessas verdades metafísicas presentes nesses fundamentos, e constantemente re-atualizadas, e também nesse mesmo sentido utilizarmos a noção de religião indígena (e não apenas como uma área da vida humana desconectada das demais), então podemos tomar os termos tradição e religião como sinônimos.
Se pretendemos usar os termos Cosmos, mundo manifesto e Natureza, devemos manter a atenção sobre seus significados no sentido grego como sinônimos. A Natureza é entendida como uma manifestação, no domínio da relatividade e da diferenciação, de princípios supra-naturais, por isso a própria manifestação é em si mesma um símbolo desses princípios, e conseqüentemente podemos acessar a eles através da compreensão da natureza simbólica do Cosmos.
Em sua alta fluidez, não vamos encontrar, por exemplo, na metafísica A’uwê uma visão acentuada de uma descontinuidade entre a Supra-Natureza e o Cosmos. Este ponto de vista é mais visível nas doutrinas tradicionais que acentuam o ângulo da descontinuidade entre a fonte essencial, o transcendente, e o imanente (o cosmos), descontinuidade que sustenta a noção do transcendentalismo. Uma imagem simbólica disto seria a dos círculos concêntricos (o Cosmos) que são descontínuos em relação ao Centro (o supra-Cosmos ou Supra-Natureza). Já a metafísica A’uwê acentua o ângulo da não-descontinuidade da Realidade como um todo, cuja imagem simbólica seria a de uma espiral que se abre a partir de seu Centro. Mas esses dois ângulos não devem ser vistos como opostos ou conflitantes, mas como complementares, o acento ora recaindo sobre um, ora sobre o outro (12). A própria visão não-descontínua, entretanto, deve ser relativizada. Não-descontinuidade não significa ausência de distinção. Na metafísica A’uwê, os velhos distinguem höiwa, o mundo celeste, do mundo terrestre que os A’uwê vivem, distinção que se abrirá como manifestação cosmológica. Mas a distinção aparece apenas para o olhar da manifestação, que colocada em um ponto de vista relativo, sofre por isso de uma certa ilusão de ótica.
A supra-Natureza designa o que seria a Realidade total, o Absoluto em sua infinitude, aquilo que os taoístas se referem como o Tao sem Nome. Como Possibilidade universal, contém em si as possibilidades de não-manifestação, bem como os mundos a serem manifestos. O têrmo manifestação corresponderia ao termo criação da linguagem teológica, com a diferença que o conceito de “criação” vincula consigo a figura de um demiurgo criador. Como mundos manifestos, estão subordinados ao conjunto de condições que os definem. Em verdade, esta é a própria característica de ser do mundo manifesto, de modo que mundo manifesto, mundo condicionado e mundo relativo são sinônimos, diferentes modos de falar da mesma realidade. E este é o sentido mesmo do termo grego Cosmos: a manifestação ordenada de certas possibilidades de mundos segundo certas leis. O domínio desses mundos cosmológicos inclui os níveis de realidade informal (não sujeito à forma) e formal (sujeito à forma, incluindo nele os domínios cosmológicos sutis e o corporal, do qual nossa realidade faz parte).
O que os relatos míticos Xavante estão falando é exatamente sobre esse processo de manifestação ordenada de certas possibilidades, realizado pelos seus seres míticos primordiais que farão que o mundo Xavante seja o que ele é, que ele tenha a sua forma própria. A cosmogonia refere-se à manifestação de um domínio limitado da Realidade total, enquanto a Metafísica diz respeito aos princípios supracosmológicos, para cuja penetração se exige as práticas iniciáticas pertinentes. Apenas os grandes xamãs talvez tenham acesso a estes elevados domínios supra-cosmológicos. O conceito de forma de uma tradição espiritual não deve, portanto, ser entendido como uma espécie de roupa que pode ser trocada sem alterar o conteúdo daquela tradição. É verdade que o Centro de todas as tradições é o Absoluto, que está para além de todas as formas, mas também é verdade que o Absoluto se presentifica no mundo humano através de formas próprias que podem dialogar, emprestar ou herdar alguns rituais das anteriores, como é o caso do Buddhismo tibetano que incorporou em seu interior aspectos do anterior xamanismo Bon Pö. Mas elas não se misturam em seus fundamentos, o que seria apenas um sincretismo religioso que não o qualifica como uma tradição legítima, no sentido de sua eficácia na realização espiritual.
Nos estudos apresentados nesta coleção, o próprio subtítulo indica que mesmo os casos de conversão entre os povos indígenas no Brasil têm múltiplos sentidos, e o fazem readaptando os ensinamentos cristãos aos seus códigos culturais e à sua cosmologia, mesclando facetas espirituais com estratégias políticas de defesa e obtenção de certos recursos assistenciais considerados necessários à sua sobrevivência. Ainda assim, será que em seus íntimos esses povos indígenas convertidos deixaram as estruturas psíquicas e espirituais de suas Tradições e introjetaram a simbologia e a via cristã? Minha convivência com eles ao longo desses anos me coloca sérias dúvidas sobre a profundidade dessas conversões. São estruturas tradicionais enraizadas no âmago do psiquismo, com rituais e mitos que constituem formas arquetípicas bastante distintas da via cristã. Ainda que tenham analogias, isso não é suficiente para subsidiar uma base catequética. Os Xavante certa vez me contaram uma história pitoresca. Em tempos passados, um warazu (“estrangeiro, homem branco”) vendo um Xavante comendo gafanhotos assados, ficou com pena de sua falta de alimento e lhe ofereceu uma lata de biscoitos. O Xavante abriu a lata, jogou fora os biscoitos e colocou dentro da lata os gafanhotos assados. Na conversão dos povos indígenas, poderia haver algo dessa idéia? E os gafanhotos guardados em lata são os mesmos gafanhotos? E a lata é a mesma lata?
Segundo a perspectiva da inculturação, “a encarnação de Cristo foi uma encarnação cultural. Toda a sua vida e sua atuação estão profundamente inseridos na cultura judáica do seu tempo” (13). Nesse sentido, a cultura judáica seria simplesmente uma veste circunstancial dentro da qual o Cristianismo encarnou inicialmente a Boa Notícia, e que depois esta veste foi sendo trocada pela cultura helênica, depois franco-gemânica e assim através dos tempos, mas “o Evangelho não se identifica com as culturas, mas se identifica nas culturas, nunca podendo existir fora de uma expressão cultural” (14). Assim sendo, sua introdução no mundo indígena seria através da própria cultura indígena, que deveria ser preservada e valorizada de modo que o Cristianismo fosse um Cristianismo autóctone. Também esse pressuposto levanta sérias reflexões. É verdade que certas tradições têm uma tal universalidade que as permite difundir em ambientes culturais os mais diversos. Mas não me parece que no caso específico da relação entre o Cristianismo e o Judaísmo, esse pressuposto esteja correto. Não sou uma autoridade em Cristianismo, nem pretendo fazer objeções levianas, mas do pouco que compreendo, o Judaísmo não foi para o Cristianismo apenas um contexto cultural. Novamente está em discussão uma certa interpretação entre o que seja o conteúdo e a forma de uma tradição. Há um forte nexo entre o Antigo e o Novo Testamento. A vinda do Messias estava inscrita dentro da estrutura interna do Judaísmo, e não foi essa recusa da tradição judáica em aceitar o Cristo como o Messias esperado que constituiu um dos pontos de maior conflito entre esta tradição e o Cristianismo?
Por tudo que já colocamos anteriormente, o conceito de Tradição (e forma tradicional) é algo muito mais profundo e complexo do que o de cultura. Este conceito, que etimológicamente significa “o que se cultiva”, pode ser de fato o cultivo de qualquer coisa, e no sentido usado pela Antropologia tende a se referir ao conjunto de valores de um povo ou grupo, mas isso não significa necessariamente que esse conjunto se refira às estruturas mítico-espirituais que fundam e sustentam a ligação de um povo ou grupo às suas raízes transcendentes, o que é propriamente o conceito de Tradição. O revestimento exterior do Cristianismo pela cultura helênica e depois franco-germânica é compreensível, pois se tratavam de Tradições em processo de extinção (recolhimento), e delas se aproveitaram “as coisas que não atingem a substância da fé” (15). O mesmo poderia se estender quando da difusão do Cristianismo para aquelas tradições indígenas em extinção, mas uma tradição indígena ainda viva não pode manter sua identidade estrutural e apenas se revestir de uma feição cristã. É verdade que no caso das tradições africanas no Brasil colonial, elas usaram como estratégia de defesa esse revestimento de certos santos católicos, graças a essa possibilidade de certas analogias entre figuras e funções religiosas, mas isso foi temporário, e ainda quando persistem na atualidade, a estrutura íntima de mitos, ritos e símbolos mantêm seus princípios fundantes preservados. Adaptações são possíveis e tendem a ocorrer em todas as Tradições, pela própria necessidade imposta pela marcha cósmica, mas essas adaptações, como possibilidades secundárias inerentes a elas, não modificam suas fundações arquetípicas. Muitas vezes, em sua difusão por outras terras, uma Tradição incorpora aspectos culturais locais. Por exemplo, o Buddhismo no Japão incorporou e re-significou a cerimonia do chá; nos mosteiros Zen a forma de se comer nas refeições ritualizou práticas culturais japonesas, mas isso não faz parte necessária da estrutura budista, não é preciso comer de palitinho ou tomar chá para ser budista.
Para que uma tradição indígena se constitua numa tradição efetivamente cristã, é preciso que ela introjete e assuma em seu esforço intencional e prático a essencialidade do Cristianismo, aquilo que é a Novidade do Evangelho: “a comunidade de fé no Senhor Ressuscitado, numa dimensão a partir de seu mistério pascal que transforma e da presença e ação do Espírito Santo agindo na comunidade” (16). Este fundamento se realiza através da liturgia cristã. A proposição da inculturação nos meios indígenas é de que a liturgia cristã deveria procurar assumir ritos indígenas, com seus mitos originais (17).
Esta adaptação também teria de lidar com a questão das iniciações: com relação à iniciação cristã, se concede que “nas missões, além do que existe na tradição cristã, seja também lícito admitir os elementos de iniciação que se encontrem em cada povo, na medida em que possam ser acomodados ao rito cristão” (18). Certos ritos anteriores podem preservados e utilizados na medida em que possam ser acomodados ao rito cristão. É possível “acomodar” um rito indígena a uma iniciação cristã, que abrange os três sacramentos do batismo, confirmação e eucaristia?
Do ponto de vista da estrutura interna de uma tradição, o que seria realmente uma “acomodação” de um rito de iniciação dentro de outra estrutura iniciática? A inculturação vai então se deparar com o desafio de símbolos tìpicamente cristãos, e procurar localizar as analogias. A Palavra de Deus transmitida na Bíblia encontraria ouvidos na analogia da transmissão da sabedoria pelos velhos Xavante, e o fato atual dos livros de registros de sua mitologia torna equivalente o lugar do livro sagrado, e seria assimilável a leitura da Bíblia no warã, espaço central da aldeia Xavante onde duas vezes ao dia os homens se reúnem para discutir todos os tipos de assuntos.
Nesta mesma linha de raciocínio, o pão teria seu análogo no bolo ritual de milho, o uso do vinho ainda fica sem solução. A imposição das mãos, gesto de Cristo para abençoar, e que os apóstolos usavam para conferir o Espírito Santo, teria seu análogo no gesto Xavante quando do encerramento da festa de perfuração de orelhas. Sem estender em demasia sobre os vários ritos, o que está novamente em questão é o mesmo pressuposto: não será que se está apenas usando de certas similitudes rituais para inculturar uma estrutura espiritual que despoja a espiritualidade indígena de sua forma arquetípica própria? Os ritos podem ser similares em sua aparência gestual e uso de elementos, como a água, o bolo, mas os significados são distintos pois estão inseridos em outra estrutura simbólica. Por isso, não será que esta metodologia incorre num preocupante equívoco de supor que é possível revestir a essencialidade da forma cristã com os ritos indígenas, sem com isso esvaziar a substância espiritual própria das tradições indígenas, delas mantendo apenas a casca, a letra sem o espírito?
É importante que os leitores, sejam eles leigos cristãos, missionários, ou de outras formações intelectuais e religiosas, procurem entender meus comentários não como uma postura de hostilidade ou de intolerância, mas como ponderações que envolvem questões de uma alta espiritualidade cujas conseqüências podem ser opostas ao intencionado: tradições autênticas podem ser solapadas em nome de Deus, tornando os índios apenas aparentemente cristãos, mas que no fundo terminam por não serem nem cristãos nem íntegros em suas tradições, e isso é bem o que as forças antiespirituais aspiram.
Devemos reconhecer e enaltecer o esforço dos teólogos da inculturação em compreender as culturas indígenas, como no caso Xavante. Mas o tema é complexo e crucial, e o olhar missionário sobre a cosmologia Xavante tem várias complicações de ordem cognitiva. Lachnitt conta que certa vez pedira a um Xavante que falasse do deus dele, ao que ele respondera taxativamente: “Pára de falar do ‘nosso’ e do ‘vosso’ deus! Deus é o mesmo para todos nós!”. E que eles Lhe atribuem espontaneamente o nome de Dapoto’wa, o que significa pai, criador de gente, antepassado, ou Ropoto’wa, criador de todas as coisas. E que pertence ao conceito Xavante de Deus sua qualidade de criador, sua paternidade, o que por sua vez exige o conceito de Filho que se comunica com os homens no rito.
Não me arvoro em questionar a interpretação de um Xavante que vive nas Missões, mas em meus estudos e diálogos com os velhos da aldeia de Etênhiritipa, a colocação deles não é tão simples assim: “Para os warazu existe Deus, é o nome que eles chamam, de Deus, de Jesus. O deus dos A’uwê chama-se parinai’a. Os dois wapté (nome dado aos meninos no período de formação e reclusão) tinham facilidade de criar, como mágicos. Os dois se combinavam, vamos criar aquilo. O que faltava naquela época, os dois combinavam para criar. Criaram para deixar para nós todos, o que hoje existe. Os dois tinham poder. Dentro da cultura Xavante, só eles mesmos que têm força, muita força. O poder de criar, ninguém os ultrapassa. São eles que têm mais poder. Em força, poder, é o mais alto, ninguém os ultrapassa. Só os parinai’a é o nosso deus”.
Toda a estrutura cosmológica Xavante se desenrola em torno dos seres míticos primordiais, os romhõsi’wa, assim chamados porque tinham o poder romhõ, através do qual eles criavam os seres por meio de sua auto-transformação. E os dois wapté parinai’a são considerados o deus A’uwê. Não encontrei nada que assemelhasse à esta concepção de um Deus-Pai e Deus-Filho. Existe uma versão no livro A’uwê uptabi, publicado pelos salesianos, segundo a qual na origem do povo Xavante dois homens foram postos na terra pela força do alto por meio do arco-íris, seus nomes foram dados por uma voz do alto, e eles criaram uma mulher para o outro, com as quais se casaram e deles proveio o povo Xavante (19). Durante muitas reuniões no warã, à noite e pela manhã, os velhos discutiram com a comunidade essa versão da origem Xavante. Ao que os velhos da aldeia Etênhiritipa comentaram, nas palavras do tradutor e cacique Suptó:
“Serezabdi falou que desconhece essa história da origem. Isso é uma invenção deles (dos padres), estão inventando. O que ele conhece de importante vem dos descendentes deles (dos velhos), ele nunca ouviu uma história como essa. No meu ponto de vista (Suptó), isso é coisa do padre, falando que a voz veio do alto, querem dizer que o Deus falou para os dois Xavante, e assim eles juntam tudo na história deles, como criação de Deus. O Xavante não nasceu assim, que uma voz do alto teria mandado tirar os pauzinhos, pintar de vermelho e preto, como (se fosse) Adão e Eva, (e que) nasceu dois homens, (e que) eles mesmos criaram uma mulher... Sereburã não reconhece isso”.
Os velhos ignoram como surgiu o povo A’uwê. Após tecerem vários comentários em torno desta versão, refutaram-na. Consideram que é uma tentativa forçada de mostrar uma similitude entre a versão bíblica da Gênesis e o suposto mito de origem dos A’uwê contado nesta versão. Sustentam que eles os velhos não sabem como o primeiro povo apareceu, só o que é contado nas histórias pode servir de referência para legitimar a verdade, e que seus antepassados nada lhes contaram sobre a origem dos primeiros A’uwê. Mas, apontam o lugar ontológico dessa origem, a porta de entrada: höiwana’rada, a raiz do céu, no leste, de onde o céu, o sol, a lua e os A’uwê surgiram.
Ainda que seja legítimo sustentar que na raiz de todas as tradições estaria a mesma Realidade Original, nem por isso ela é menos misteriosa ou que se possa incorrer no erro reducionista de dissolver a singularidade de cada forma tradicional cosmogônica em nome de uma Realidade original que estaria na raiz de todas as tradições. Essa é a crítica maior que se faz a essa versão da origem dos A’uwê. Dissolver a diferença das formas tradicionais em nome de um Princípio fundante único é simplificar o desafio da compreensão dos fios que ligam a diversidade das formas tradicionais com suas raízes supranaturais, o grande desafio das religiões comparadas. Não encontrei na cosmologia Xavante concepções que se assemelhem à Trindade cristã, nem penso que deveria haver, pois são vias metafísicas distintas. Todo nosso esforço no trabalho com os velhos foi o compreender e desenhar essa complexa tessitura da presença dos criadores romhõsi’wa e o que os liga à Realidade Última. Podemos dizer que a Realidade Última é o Mistério dos mistérios, não no sentido do incognoscível, mas do que apenas os plenamente realizados espiritualmente conhecem, e que está para além de todos os nomes, inclusive do nome Deus. Segundo a visão islâmica, Allah tem três mil nomes. Desses, 2.999 são conhecidos. Um Nome que foi oculto por Allah é chamado Ism Allah al-a’zam: O Supremo Nome de Allah (20).
A transposição da visão indígena sobre a Realidade Última para uma perspectiva cristã sobre a natureza de Deus e sua Unidade é uma operação complexa que exige mediações nem sempre perceptíveis pela teologia da inculturação. Segundo Lachnitt, “ainda em tempos antes do contato, Deus era chamado de TSIPOTOTSIRO, o que significa “criado por si mesmo”. Notável novamente a radical POTO, criar. Depois da catequese cristã, tendo os missionários descrito as qualidades de Deus, ele foi chamado de RE IHÖIMANA U’ÖTSI MONO, tanto entre os protestantes como entre os católicos, o que abreviado resultou em HÖIMANA ’Ú ’Ö, o que significa “aquele que vive sempre” (21).
Vimos que para os Xavante, o deus são os dois grandes criadores, os parinai’a. Nas palavras comentadas de seus tradutores: “Hoje os chamamos de höimana’u’ö Esse nome foi inventado. Nós não falávamos höimana’u’ö, falávamos parinai’a. Foram os padres que colocaram. Eles entraram, e como eles chamam de Jesus, eles perceberam o sentido de nossas palavras, então eles colocaram, já que os parinai’a têm poder, que eles vivem muito, sempre, por isso eles chamaram agora de höimana’u’ö. Os dois parinai’a, êles são os höimana’u’ö. Höimana’u’ö e parinai’a são a mesma coisa. É ele. Parinai’a já é um nome dos poderes. Höimana’u’ö é ele, é a mesma coisa. Na maneira de nossa fala, pode se entender de um só parinai’a. Eu não vou falar de dois parinai’a, só uma pessoa. Mas não é uma, pelas histórias existem duas pessoas. Se fosse um criador só, mas tem o outro parceiro. Dentro da nossa cultura são dois, os criadores”.
São dois os criadores, mas às vezes eles são referidos no singular, “o höimana’u’ö, ele”. Penso que aí poderia estar o significado metafísico dos criadores que em muitas cosmologias indígenas aparecem na forma de uma dupla, de gêmeos ou parceiros. Eles são a presença mais central do princípio metafísico da Unidade transcendente que se manifesta polarizado como dois criadores com atributos em certos aspectos opostos, que neste caso é o dos dois clãs Poreza’õno e Öwawê, mas intrínsicamente complementares, pois eles são i’amo, que significa “a outra metade de mim”. Os i’amo são companheiros íntimos no hö, e permanecem companheiros por toda a vida.
Existe um aspecto importante em que os velhos apontaram uma relação de analogia entre sua tradição e o Cristianismo. Tanto seus criadores parinai’a como o Cristo foram vítimas sacrificiais. A realização dos imperativos da criação cósmica, no caso dos parinai’a, e do resgate da humanidade, no caso de Cristo, têm uma dimensão de sacrificio. Sacrifício significa sacrum facere, tornar sagrado. Os parinai’a criam não apenas seres benéficos (aos olhos da comunidade), mas também maléficos. Dentro da perspectiva humana e limitada, os seres da noite, como a onça, são o perigo, ameaçam e atacam o homem. É o aspecto tenebroso, mas necessário da criação cósmica. Isto mobiliza os temores da comunidade, que, situada numa posição mais exterior em relação aos romhõsi’wa, não os compreende e não aceita, e reage matando-os. A ignorância desencadeia o medo. Mas tanto os parinai’a como o Cristo, embora tivessem todo o poder para destruir seus algozes, aceitam passiva e pacificamente sua morte sem reagir, pois ela está inscrita em sua pré-destinação.
Penso que uma compreensão mais refinada destes liames que ao mesmo tempo entrelaçam e distinguem as formas das tradições espirituais, no caso as indígenas e a cristã, e apontam para sua unidade transcendental, seriam os fundamentos para uma terceira postura espiritual: a amizade, que compreende as afinidades e distinções de outra Tradição, respeitando-a, buscando compreendê-la, protegê-la, tanto mais que se tratam de tradições indígenas ameaçadas constantemente por sociedades de ambições e violências, nestes tempos em que de muito se esqueceu o que realmente significa uma civilização e o lugar da humanidade dentro do Cosmos efêmero.
Proteger o amigo, mas, de modo despreendido, sem esperar dele nenhum retorno, proveito ou conversão, sem exigir que ele deixe de ser o que ele é. Amar o próximo como a si mesmo. Se a ação missionária tem um lugar necessário na visão salvadora cristã, a conversão pode ter sentido onde inexiste uma Tradição viva, e esse não é o caso das Tradições indígenas. Lembremos que nem sempre a difusão e catequese foi autorizada e legitimada pelas próprias escrituras cristãs, como vemos nos Atos dos Apóstolos, quando Paulo empreende uma segunda viagem missionária na companhia de Silas e Timóteo: “E passando pela Frígia e pela província da Galácia, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia. E, quando chegaram a Mísia, intentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não lho permitiu”. (Atos 16, 6-7).
Notas
(1) Leite, 1954, p.150.
(2) Este texto se basea em parte na tese de doutorado Romhõsi’wai hawi rowa’õno re ihöimana mono – a Criação do mundo segundo os velhos narradores Xavante (UNICAMP, 2002).
(3) Wright, 1999, p.12-13.
(4) Lachnitt, 1993.
(5)Lachnitt, 1993, p.211, em que o autor se refere ao Pontifício Conselho para Diálogo Inter-religioso e Congregação para Evangelização dos Povos. Diálogo e anúncio. n. 17.
(6) Lachnitt, 1993, p.211, cf. Comisión Episcopal para Indigenas. Fundamentos teológicos de la pastoral indígena en México. p. 81, 96-97, onde remete a João Paulo II, Redemptor Hominis 12; Gaudium et Spes 92; Ad Gentes 15; Ad Gentes 22.
(7) Sereburã et all, 1997, p.18.
(8) Lachnitt, 1993, p.183, cf. Slavorum Apostoli n.21; Comissão Teológica Internacional (CTI), Fé e inculturação, SEDOC, p. 145, n.3; ibidem, p. 148, n. 1.11; João Paulo II, Redemptoris Missio, n. 52.
(9) Lachnitt, 1993, p.183, cf. Paulo Suess. Inculturação, Desafios – Caminhos –Metas. p. 97.
(10) Guénon, 1977, p. 81-82.
(11) Guénon, 1977, p. 83.
(12) Schuon, 1990, p.26, 30.
(13) Lachnitt, 1993, p.193.
(14) Lachnitt, 1993, p.194.
(15) Lachnitt, 1993, p.191.
(16) Lachnitt, 1993, p.215.
(17) Lachnitt, 1993, p.225.
(18) Lachnitt, 1993, p.240.
(19) Giaccaria, Heide, 1972, p. 11-13.
(20) Al-Hajj Shaikh Muzafferedin, 1978, p. 7.
(21) Lachnitt, 1993, p.285.
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A’uwê anda pelo sonho
a Espiritualidade indígena e os perigos da Modernidade (1)
Sonhar com o mundo dos espíritos é uma atividade muito importante para o caminho espiritual Xavante. Os velhos das comunidades Xavante Pimentel Barbosa e Etênhiritipá, Terra Indígena de Pimentel Barbosa, Mato Grosso, estão preocupados. Os perigos trazidos pelo mundo dos warazu, os homens brancos, parecem não ter descanso. A chegada dos meios de comunicação de massa, como o rádio, gravador, vídeo, televisão e antena parabólica traz uma presença inevitável, mas inquietante quanto a seus possíveis efeitos sobre a vida geral da tradição xavante, e mais especificamente sobre a atividade do sonho. Este texto pretende refletir junto com os Xavante sobre esse perigo e com isso fortalecer a consciência alerta dos Xavante e de outros povos indígenas, já que essa ameaça parece atingir não apenas os Xavante.
Iniciamos com as palavras de Sereburã, que junto com Serenimirãmi, Hipru, Rupawê e Serezabdi formam o grupo dos homens mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa:
É assim que eu vou falar. Vou falar do tempo dos ancestrais. Da Tradição do povo A’uwê Uptabi (“povo verdadeiro”), desde a origem do tempo.
O povo A’uwê corta o cabelo deste jeito, tira sobrancelha e o supercílio, usa dañorebozu’a (gravata cerimonial), daporewa’u (brinco de madeira), faz suas cerimônias.
O povo A’uwê de Etêñiritipá mantém a Tradição.
É assim que eu vou falar. Para que nossos filhos aprendam e mantenham a Tradição para as futuras gerações. Para que não acabe nunca.
Em Etêñiritipá existe a presença viva da força da Criação. Nós somos o povo verdadeiro, nós mantemos o espírito da Criação.
Por que os brancos não respeitam o povo tradicional? Por que estão fazendo assim? É muito difícil tirar um povo verdadeiro de seu lugar. Porque os brancos querem fazer isso?
Vocês dizem que gostam da terra, vocês dizem que se preocupam com a terra. Isso não é verdade. Eu não vejo isso. Seus descendentes são numerosos, mas viraram a face para a verdade da Criação. Mal sabem quem são.
É por isso que estou falando. Para revelar nossa Tradição, a força que mantém o espírito da Criação (2).
Destacamos uma noção importante para os Xavante, e para os povos indígenas de modo geral, a de serem um povo tradicional, regidos e mantidos por uma Tradição. Essa noção foi comentada pelos pensadores sociais, mas teria sido com os mesmos significados com que os Xavante entendem? Quando se opõe o mundo moderno dos warazu ao dos povos tradicionais, o que está na base dessa oposição?
De início, temos de compreender o fundamental conceito de Tradição. Bastante mal entendido, quando não objeto de menosprezo pelo mundo moderno, passou a ser associado ao costumeiro, repetitivo e mecânico, o atrasado, o folclórico reminiscência de um passado, o ultrapassado pela História. Interpretação à base de uma noção ocidental valorativa de progresso e evolução, rotulou o termo Tradição como caractere de povos sem escrita, com baixo domínio tecnológico, pré-lógicos, regrados por um conjunto de crenças fetichistas e não-científicas. O próprio termo “crenças” conota valores de “suposição, fé, superstição, aspiração”, ou seja, pré-científicos ou não-científicos. Algumas correntes do pensamento moderno, a fim de enfrentarem essas pressuposições evolucionistas (3), ofereceram alternativamente um “lugar diferente” para o pensamento indígena, chamando-o de “pensamento mágico”. E onde colocar o lugar dos povos indígenas nesta acepção evolucionista? Como um “lugar frio e imutável” na marcha da História, concebendo a História como um jogo de dados com lances de oportunidade acumulativa, chances que os povos ditos primitivos não teriam desejado ou podido aproveitar, mas que o Ocidente soubera arregimentar tais chances de transformação e com isso se impor por sua força tecnológica sobre todos os povos. Mas vimos em textos anteriores que é possível propor uma outra visão, mais ampla da história da humanidade, onde os termos Tradição-modernidade ganhassem significação mais clara e os perigos que os velhos indígenas alertam, como é o caso específico das ameaças sobre o sonhar, pudessem ser melhor compreendidos.
Segundo muitos povos indígenas, nos tempos primordiais a palavra era criadora, bastava dizer e as coisas surgiam. Contam os Xavante sobre os dois i’amo (companheiros da casa de adolescentes) criadores: Nesse tempo (dos criadores) o povo tinha poder. Os dois i’amo tinham muito poder. Podiam criar, só com o desejo, qualquer coisa que pensassem. Criavam os animais e os alimentos já com os seus nomes (4). Rupturas ocorreram, e apenas uma pequena parcela deste poder primordial permaneceu entre os homens.
Ouçamos as palavras do velho Xavante Sereburã:
O warazu está acabando com o nosso povo. Tem outras aldeias onde o povo já bebe até pinga. Aceitaram também os padres, os pastores. Estão esquecendo a Tradição. Estão mudando os costumes. Como pode?
Não sabemos como vamos viver daqui para a frente. O warazu está em volta. Para todo lado que vamos, encontramos arame farpado. Está tudo cercado. Até o rio das Mortes está sendo cercado. Estão fazendo a hidrovia. Vão tomar conta do rio também. Vão estragar o rio.
É assim! É assim que nós vamos continuar vivendo. Eu sou velho e enquanto viver vou seguir transmitindo a Tradição. Mesmo vestindo roupa, mesmo com algumas coisas que aprendemos com os warazu. Vamos continuar essa Tradição. Sempre.
Este espaço, este território é fundamental para continuar nossa Tradição. O território e a Tradição têm que ser respeitados.
É assim que eu estou falando. Vocês, meus netos, têm que tomar cuidado. Têm que cuidar de todo esse ensinamento.
A Tradição deve permanecer. Ela vem de antes de nós e vai seguir em frente (5).
Aos olhos das doutrinas tradicionais milenares, a modernidade significou a necessária realização das possibilidades inferiores contidas desde as origens no conjunto global deste ciclo cósmico. Necessária, e aí se poderia falar em uma “libertação necessária”, mas nem por isso menos terrível, porque se funda na progressiva ruptura dos nexos metafísicos entre os princípios transcendentes e a existência terrestre humana, e marca com isso o encerramento deste ciclo humano. Do ponto de vista cosmológico, o frenético desejo-impulso de desenvolvimento das forças produtivas, a ponto de ser o motor central do mundo moderno, subordinando tudo o mais ao seu imperativo, significa uma vertiginosa descida rumo ao pólo substancial.
Para que este motor produtivo pudesse ser liberado, internamente o mundo medieval foi desmantelado, a concepção teológica cristã passaria a ser contestada como não-científica e apoiada apenas na fé e na crença, trazendo subjacente uma noção ideológica do que seria uma “visão científica”. O obscurecimento da Metafísica, que aos poucos seria designativo do incompreensível e oposto da ciência, acompanha a progressiva ruptura, no Ocidente moderno, dos nexos metafísicos que uniam o transcendente com a existência humana. A visão moderna se marcaria pela desespiritualização do homem, da sociedade e da Natureza. É esta perda de visão metafísica do homem que se irradiará em todas as esferas: em uma sociedade, que a despeito de manter sua superfície cultural como sendo cristã, de fato se fundaria não mais em bases metafísicas, mas como o domínio dos homens regidos por um “contrato social”, um suposto acordo entre homens livres, dissimulando com sofismas a coerção impositiva de um sistema de classes baseado na produção socializada e na apropriação privada, e de um Estado-Nação, cujo modelo europeu se impôs para todos os povos, forçando as etnias à submissão a uma forma de organização uniformizante e desprovida de qualquer fundamento metafísico. Nesta esteira interna foram os servos transformados em proletários, perdendo seus ofícios artesanais e submetidos a se tornarem como que apenas extensões mecânicas e fragmentadas de um maquinismo industrial, tão bem ilustrado por Chaplin em seu filme “Os Tempos Modernos”. Externamente, tendo em uma das mãos a espada e as canhoneiras, e na outra a cruz, lançaram-se à invasão e rapinagem das Américas, África e Ásia, impondo a todos esses povos tradicionais o domínio econômico e político, junto às várias tentativas de imposição da catequese cristã (6).
Ligado a essa libertação da violência materializante e de seus desdobramentos sociopolíticos, e da instituição de uma concepção de sociedade desprovida de qualquer fundamento metafísico, acompanha a emergência de uma visão do homem reduzido apenas a uma individualidade psicofísica, o Ego, agora erigido em categoria e realidade central do homem. Agora o Ego seria liberto e seus apetites e frustrações o assunto dos romances. Classes burguesas e individualismo marcarão a ascensão do romance prosaico, em detrimento do epopéico e da literatura referencial e arquetípica (7). Os personagens serão agora os indivíduos, enredados em suas contradições psíquicas, um ego sem raiz, Psique sem Eros.
Do ponto de vista do conhecimento, a perda da visão metafísica marcará a emergência de um tipo de saber, científico e racional, cuja pressuposição é a de que a faculdade humana da razão, aliada à provas empíricas, seria suficiente para dar conta da explicação dos diversos domínios da existência. Será posto como o novo e verdadeiro modo de saber inaugurado pela modernidade, como que a renegar que o saber medieval anterior fosse ciência, e com isso pretendendo também que todos os outros povos não possuiriam ciências. O pensamento moderno passou a propor várias interpretações para o modo do pensamento dos povos indígenas. Como pré-lógico, ou análogo aos modos do bricoleur que tomando dados do sensível qual peças dispersas constrói uma composição de sentidos (8). Mas se adentrarmos no universo estruturado de certas tradições como a hindu, percebemos que as múltiplas formas de saber possuem seus fundamentos maiores na metafísica, em torno da qual se articulam e se desdobram como aplicações nos vários domínios cosmológicos secundários. São saberes do mundo fenomênico segundo vários pontos de vista, mas todos esses pontos de vista e níveis ligam a realidade do mundo existencial com o que lhe é ontològicamente superior e determinante, do corporal subordinado ao sutil e este ao propriamente espiritual, pois é esse Eixo que dá significado a cada coisa segundo seu plano de realidade
O quadro da Modernidade aqui desenhado são linhas gerais introdutórias sobre um processo complexo e heterogêneo marcado por contradições, rupturas e impasses. Linhas gerais, devem ser vistas como tais. Desconectada a sociedade moderna de qualquer raiz metafísica, desconectada a razão de seu intelecto transcendente, desconectado o homem moderno de seu princípio e destinação espiritual, impulsionada por uma frenética ambição material, a “civilização” moderna avança sobre os povos indígenas em várias ondas de turbulência e sofrimento. A inquietação dos velhos Xavante se levanta agora para os possíveis perigos da presença dos meios de comunicação de massa sobre a cultura Xavante. Perder a capacidade de sonhar com o mundo dos espíritos é perder a fonte de sua tradição.
Na cultura Xavante, o sonho (rotsawere) tem várias funções, das quais três são muito importantes. Uma delas é a de prever doenças, guerras e caçadas: “Às vezes alguém dormiu assim, tem gente que está se aproximando, alguém está vindo para guerrear, então todo mundo vai [para a luta] ... pessoa que sonhava bastante antigamente é meu avô, ele é sonhador, ele vê sonho mesmo, ele fala tudo certinho... Quando ele canta no meio do centro, lá [no warã (10)], ele vai falar alguma coisa, ou alguém vai adoecer na aldeia, ou vai surgir a guerra, ou alguém vai morrer, ele fala tudo em pessoa, nome, ele grava tudo... Porque Xavante na caçada, eles vão caçar, ele vê, ele sonha com pessoa assim, quando ele vai caçar, então ele encontra bicho, então ele já sabe, sonhei muito, então acho que vou caçar, vai dar para achar muito fácil essa caça”(11). Alguns xavantes dizem que quando alguém sonha com algo que está caçando, no outro dia ele pode ir caçar que vai pegar alguma coisa. Quando se vai caçar, pode acontecer de sonhar na véspera. Mas “tem gente que vai muito pelos pássaros que cantam, tem um tipo de pássaro que está sempre junto daquele animal, no sonho ou acordado”. Quando os velhos decidem que vai ser feito uma caçada, não necessariamente esperam antes ter o sonho para decidir caçar: “tem gente que anda antes de chamar o resto do grupo. Tem gente que vai sozinho no lugar caçar, se vê muito rastro chama o resto para ir para lá, que tem muito bicho. Aí comenta no warã, e se o resto tiver vontade de caçar, vai”.
Outra função é a de conhecer outros mundos, outros domínios cosmológicos, ou outras aldeias e povos que o sonhador não conhecia, mas que falam a língua Xavante. Os Xavante não possuem, como alguns outros povos indígenas, a figura específica do xamã ou pajé; os poderes e segredos espirituais estão distribuídos pelos clãs e grupos de famílias, e o acesso aos vários domínios cosmológicos não passa pela mediação de uma autoridade espiritual definida, está potencialmente aberto a todos, mas, segundo certas regras, e o sonho é o principal veículo para isso. Diferentemente de certas culturas indígenas, como as amazônicas, os Xavante não utilizam substâncias ingeridas ou inaladas para acessar aos vários domínios cosmológicos, mas fazem através do sonho.
Uma outra função das mais importantes é no sonho receber os cantos ou participar de ritos que depois serão transmitidos e incorporados por toda a comunidade. Os sonhos serão contados, os da’ño’re (cantos e ritos) serão cantados e dançados e com isso mantida a continuidade da ligação entre o mudo terrestre e os criadores celestes - os hoimana’u’ö, “os sempre vivos”-, revivificando a tradição Xavante e alentando os membros da comunidade para que prossigam vivendo de acordo com a Tradição que lhes foi ensinada pelos seus ancestrais criadores hoimana’u’ö (12).
Todos podem ter esse tipo de sonho, mas há uma certa diferenciação conforme a faixa de idade. Os iprédu, homens adultos que completaram todo o seu ciclo de formação, e os ihire, os velhos, são mais experientes e mais aptos a sonharem com os hoimana’u’ö, embora não esteja excluído aos jovens essa possibilidade. A fase de riteiwá é considerada muito propícia para receber cantos e ritos de dança. Riteiwá é a fase de idade dos rapazes após o rito de furação de orelhas (dañono), quando saem do hö (casa de reclusão dos meninos, os wapté) e voltam ao convívio social, podendo daí casarem. Na fase de riteiwá, já tendo uma noiva pode se casar, mas nem sempre isto ocorre. Essa é uma situação propícia, pois não tendo noiva, tem que se preocupar só com ele mesmo, “é bem mais fácil quando você está sozinho, porque não tem ninguém interferindo, não tem ninguém do lado te cutucando, ou você distraído com a outra pessoa, você está pensando mais no seu objetivo”. Sobre os riteiwá recai uma cobrança maior dos velhos, exigindo que eles cumpram os muitos requisitos disciplinares da prática para que os sonhos aconteçam. Os velhos têm falado muitas vezes que a disciplina está afrouxando, que está havendo uma diminuição da preparação dos jovens em vários aspectos da vida Xavante, enfraquecendo a capacidade dos jovens de sonhar com os espíritos, enfraquecendo com isso a força da tradição Xavante.
São vários os requisitos necessários: o primeiro é o uso do brinco de madeira (daporewa’ú), pequeno cilindro de madeira que os riteiwá recebem após a furação de orelha. “Para você participar de um sonho, sonhar uma música ou alguma coisa, sonhar com aquela festa, você tem que saber que tipo de madeira que você está usando na orelha e o tempo que você vai usar, porque tem gente que usa e troca no outro dia”. Existem vários tipos de madeira, de árvores diferentes. “Tem pau para sonhar uma música, um choro cerimonial ou alguma que a pessoa gosta de usar aquele tipo de pau, diferencia muito ... cada grupo tem um jeito, se gosta de usar aquele tipo de madeira, sempre usa... outro grupo... diferencia várias coisas, a gente vai ver só lá na frente, quando vai ficando mais velho... a gente não usa todas, tem de usar uma madeira para experimentar, que tipo de sonho você vai ter, depois você não pode ficar trocando assim, cada ano, cada mês, sempre usar aquela madeira para ver o resultado... cada um tem seu jeito. Tem gente que se atrapalha, troca cada semana, cada dia. Sempre é bom usar várias vezes para você ver o resultado”.
As cordinhas de casca de árvore (wedeñoro), para amarrar nos pulsos e tornozelos, servem para ajudar os sonhos. O banho de ervas é importante para a limpeza espiritual: “Atualmente a gente banha com sabão, com sabonete. Antigamente o pessoal banhava com algumas plantas, já ajuda a ter um sonho bom... cada grupo de idade ou pessoa tem o tipo de erva que gosta, então usa aquele”. Dos vários banhos, “sempre à tarde tem de ser mais caprichado para chegar a noite e sonhar”. A comunidade dorme cedo, escureceu é hora de dormir. Não tanto o horário, dizem, mas o jeito de deitar é importante: “sempre a gente deita, se tem um sonho, a gente deita de costas olhando para cima. Sempre sonha assim. Tem gente que deita de qualquer jeito, aí interfere no sonho, aí vai ter outros sonhos. Os velhos sempre comentam, para ter um sonho, sempre olhar para cima, costas no chão”.
Junto com essas práticas preparatórias, é necessário um esforço concentrativo para ter um bom sonho: “você tem sempre que colocar atenção nas coisas que você quer sonhar, você tem que concentrar, na música ou alguma festa. Você não pode dormir despreparado... não pode ficar só na espera, você tem que ter uma esperança, de tanto se esforçar, eles - o pessoal que participa dos sonhos, tanto os espíritos e algumas pessoas que conviveram antigamente, antes do contato, da aldeia - vão ver que você é esforçado, e mais tarde você vai sonhar com uma música bonita ou você vai receber alguma música para alguma festa... cada música é daquela festa, e os mais experientes, os mais velhos sabem, essa música é para aquela festa, essa é para furar orelha, e vai indo”.
E quando se consegue entrar em um sonho iniciático, é preciso saber participar dele, saber o que está sonhando: “você entrou no sonho, está participando, cantando junto, ou você vendo aquela festa ou algum acontecimento. Porque a gente sonha vendo uma pessoa cantando, a música dele vai estar sendo passada para uma pessoa que está sonhando. Ou sonhar com um grupo que está dançando. Tem que saber e acompanhar o que está acontecendo. Tem gente que sonha assim, um sonho normal, tem gente que não diferencia um sonho normal de um sonho em que uma coisa está sendo entregue... [é preciso estar] sabendo que está sonhando, porque tem gente que sonha com uma festa e ele pode estar participando mas confundir o que ele está vendo, tem sempre essas coisas”. A clareza na interpretação dos sonhos é fundamental, para isso os velhos ensinam os jovens através de muito diálogo desde a fase em que estão no hö, os padrinhos dialogam bastante com os riteiwá, no hö aprendem os fundamentos da tradição Xavante necessários ao futuro.
Os primeiros sonhos tendem a ser os mais difíceis, são muitos os tipos de “lugar” que se penetra e participa: domínios cosmológicos, aldeias e povos desconhecidos, mas de língua xavante. Há diferenças entre os mundos em que se vai no sonho: “tem gente que usa uma madeira que no começo só sai coisa ruim. Ele pode estar em um lugar que ele nem conhece, sonhar com uma guerra, pessoal em guerra, ele sonhando com ele mesmo que está correndo risco, no começo sempre tem de saber o que você está sonhando. Tem gente que sonha que está na guerra e no outro dia já amanhece doente. Porque ele entrou muito fundo no sonho, tem essas coisas”.
Fazer contato com os hoimana’u’ö, trazer cantos e danças que serão transmitidos ritualmente para a comunidade, o sonho é vida espiritual para a tradição Xavante, por isso valorizado por todos e incentivado pelos velhos. Como guardiões da continuidade espiritual de sua tradição, os velhos se preocupam com os possíveis malefícios que a chegada dos meios de comunicação de massa, entre outros “agentes da modernidade”, possa trazer para o sonhar com os espíritos. Sintomas desse perigo: “acho que as coisas começaram pelo gravador... o pessoal ouvia muita música sertaneja, isso já foi interferido pelas músicas que o pessoal ia comprar na cidade e ouvia aqui na aldeia... Então ia dormir muito tarde, ficava ouvindo música até não sei que hora, música sertaneja, aí quando o pessoal vai dormir, em vez de sonhar com o tradicional, sonha meio confuso, não sabe o que sonhou... os velhos estão sempre cobrando dos riteiwá, porque sempre tem que cantar à tardezinha, à noite. [Isso] ajuda, fortalece [o sonhar]. Pelo jeito o pessoal está ouvindo muito gravador, como dizem os mais velhos, ‘vocês estão ouvindo muito gravador, não estão nem cantando’...”.
Que efeitos, a longo prazo, a audição de músicas alheias ao mundo Xavante - com letras e musicalidade do mundo mental dos warazu - terá não só sobre a disciplina preparatória do sonhar mas também sobre a estrutura musical - seus sons, timbres e ritmos - próprios da espiritualidade Xavante? Há certamente relações metafísicas sutis entre a estrutura sonora e a vida espiritual (onde o sonhar com cantos e danças é importante) de um povo tradicional, como o Xavante. Não se deve ingenuamente supor que a audição indiscriminada de todo tipo de música divulgada hoje em dia tenha só a faceta enriquecedora, ainda mais considerando que a grande parte da música tocada nas rádios e as vendidas em Cds e cassetes no comércio próximo às aldeias é do tipo pasteurizado e pop-melodramático, esvaziado de qualquer base metafísico-musical. Estudos sobre isso seriam esclarecedores.
Somado a isso, a chegada dos meios modernos de comunicação visual. A questão da presença e influências das imagens televisivas (programas de televisão viabilizados pelas parabólicas, vídeos e filmes em vídeo) é uma questão aberta, de muitas faces contraditórias: “agora com a chegada da televisão, vídeo, essas coisas, acho que as coisas se completaram, tanto imagem e som ao mesmo tempo, acho que isso vai interferir mais no sonho audiovisual, pessoal sonha, vendo a imagem, dorme e sonha com alguma coisa que viu. Acho que isso sempre vai interferir no sonho... Com a chegada da televisão acho que interferiu um pouco, acho que nós vamos ver o resultado mais para frente, na juventude”. Sobre se a quantidade ou qualidade do sonho estaria se modificando: “acho que sempre abaixa. Antigamente pessoal sempre comentava que o pessoal sonhava mais, agora com essa interferência de fora, acho que acaba cada vez abaixando, diminuindo... acho que tanto ele pode estar tendo bastante sonho, mas ele no outro dia já esquece. Antigamente, o pessoal sempre comenta, antigamente sempre sonhou, no outro dia ele já sabe de cor, gravava na cabeça. Com tanta interferência de fora, ficou mais complicado a juventude sonhar e ter memória boa”.
Na dinâmica entre os veículos espirituais das tradições indígenas e as influências dos meios modernos de comunicação de massa, as tradições indígenas não são simplesmente passivas, dependerá de como cada tradição indígena, e, neste caso, como a comunidade Xavante de Pimentel Barbosa dirigirá esse jogo de forças. Como incorporará essas presenças, entre benefícios e malefícios. Que adaptações poderá fazer. Como as novas gerações defenderão as condições de continuar a sonhar com o mundo dos espíritos. É assim que eu estou falando. Vocês, meus netos, têm que tomar cuidado. Têm que cuidar de todo esse ensinamento. A Tradição deve permanecer. Ela vem de antes de nós e vai seguir em frente.
É assim! Ãné!
Notas
(1) Este trabalho faz parte das reflexões e pesquisas que estamos desenvolvendo sobre as cosmologias indígenas. Como parte do doutorado em Etnologia, teve apoio como bolsista da FAPESP, a quem agradecemos, assim como ao povo Xavante, o Núcleo de Cultura Indígena e outras entidades indígenas que contribuiram para essa realização. Este trabalho se insere em um projeto maior de estudos comparativos com as cosmologias asiáticas. O propósito desta pesquisa é o conhecimento e a defesa da integridade cultural e espiritual dos povos indígenas, sobre os quais as pressões do mundo moderno não cessam.
(2) Sereburã, Hipru, Rupawê, Serezabdi, Serenimirãmi - Wamrêmé Za’ra, Nossa Palavra - Mito e História do povo Xavante. SP: Ed. Senac, 1998.
(3) Sobre uma reflexão crítica do evolucionismo darwiniano, veja Douglas Dewar, The Transformist Illusion. USA: Sophia Perennis et Universalis, 1995. Neste trabalho, com base em um vasto conjunto de dados biológicos, o autor põe em questão e refuta cientificamente os vários pressupostos da hipótese evolucionista. Veja também Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis; Phillip E. Johnson, Darwinism on Trial; Titus Burckhardt, Mirror of the Intellect. SUNY Albany , 1987.
(4) Sereburã, Hipru, Rupawê, Serezabdi, Serenimirãmi - idem, p.38.
(5) Sereburã, Hipru, Rupawê, Serezabdi, Serenimirãmi - idem, p.165.
(6) Sobre esse aparente paradoxo entre os propósitos econômicos e políticos do colonialismo europeu e os valores religiosos do Cristianismo, ver, entre outros, as referências no texto a Modernidade aos olhos da Tradição hindu.
(7) Sobre a questão das implicações da expansão da escrita e da literatura, veja Ananda K. Coomaraswamy - Povos Iletrados são Povos Incultos? p. 40-53, in Religio Perennis, ano I n.o l, São José dos Campos, maio/1977, que propõe uma reflexão sobre os aspectos disruptivos dessa expansão; ver as diferenças desta perspectiva com relação às interpretações de Jack Goody - Literacy in Traditional Societies, Cambridge University Press, 1968; The domestication of the savage mind, Cambridge University Press, 1976.
(8) A interpretação de C. Lévi-Strauss sobre um modo de “pensamento selvagem”, ainda que o autor não pretenda identificar necessariamente “o pensamento selvagem” com “o pensamento do selvagem”, por assim dizer, sua interpretação deve merecer em outro momento maiores reflexões críticas à luz da metafísica.
(9) Sobre a trajetória do pensamento ocidental desde os gregos até a modernidade, e sua progressiva tendência de desespiritualização cognitiva, ver Seyyed H. Nasr, O Homem e a Natureza, RJ, Zahar, 1977; René Guénon, op. cit.; Arthur S.F. Eid, op. cit.
(10) warã - conselho tribal. Espaço das reuniões, discussões, envolvendo todos os homens adultos da comunidade. Também designa o centro do semicírculo da aldeia, onde acontecem todas as reuniões e grande parte dos ritos.
(11) As explicações foram dadas pelos Xavante de Pimentel Barbosa, durante nossas conversas na aldeia em julho/agosto/setembro de 1997, à sombra de uma grande mangueira, e aquentada com café e bolachas.
(12) Sobre isso, veja Laura R. Graham - Performing Dreams. Discourses of Immortality among the Xavante of Central Brazil, Austin , University of Texas Press, 1995.
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O um e o outro nas religiões:
O um e o outro nas religiões:
Antigamente o nosso povo, nossos avós viviam no escuro. Naquele tempo não existia o céu, nem o dia, era tudo escuro. Era escuro mesmo, era noite. O tempo todo escuro. Não havia fogo também. (2)
Assim se inicia o mito Xavante sobre os tempos da escuridão. Noite, escuridão. A noite tem muitas escuridões, algumas visíveis, outras invisíveis. Não havia fogo também. Tempos difíceis, antigamente.
Não tinha comida. As mulheres coletavam coró, as larvas grandes, wede wai’u, e também pau seco, podre. Era uma colheita que elas faziam para alimentar. Povo antigo não tinha nada, nada, nada, nada. Para se alimentar tinha de procurar aqueles paus podres. Povo antigo se alimentava com isso. Sofria de fome, vivia só com coró e pau podre. Coró tem muita gordura, o bicho é muito gordo e gostoso. O povo antigo comia coró cru, não tinha fogo, era escuro, não tinha nada.
Assim prossegue o mito. No escuro, os homens. No escuro, não conseguimos ver nosso rosto, não conseguimos construir algo que seja nossa auto-imagem. Talvez nem tenhamos sequer a idéia de que haveria algo chamado rosto, ou auto-imagem. Apenas nosso tato, talvez nos desse apenas certas impressões dos objetos.
A noite tem muitas escuridões. Na escuridão sem rosto, aqueles homens e mulheres sabiam que não estavam sós. Havia homens e mulheres, coletando. Homens e mulheres, sem rosto, mas havia vozes, algum senso de individualidade. Eu e o outro, os outros.
Mas, como entender o que seja “o eu e o outro”? A pergunta parece tola, alguém diria: “é simples, eu sou eu e o outro é um outro ser que não sou eu, um ser diferente de mim”. Mas será a pergunta tão tola assim, ou tomamos por óbvio o que ignoramos? A pergunta se recoloca: de onde provém a diferença? Como entender o igual a mim e o diferente de mim? Subjacente a isso, está a questão do “mesmo e do outro”, ou dito em outros termos, a identidade e a alteridade. Nos vemos como uma individualidade, diante de outras individualidades, mas raramente nos perguntamos: o que é esta individualidade com que nos identificamos? Qual sua natureza? Como ela se relaciona às outras individualidades?
Vamos prosseguir pelo mito:
O céu já existia, mas era uma parte só, não era inteiro. Era como uma onda da água do rio, levantando só de um lado. Era pouco. Desse lado do höiwarã sudu (poente) não tinha nada ainda, era pouco ainda. Em volta não tinha nada, era só espaço. O céu está sendo criado, era baixo.
O céu está sendo criado, diz o mito. Os mitos cosmogônicos falam de uma Ontologia do Espaço e dos seres viventes. Isto significa a ipseidade e a alteridade. Na Matemática moderna, aprendemos que o um é metade do dois. Mas na Matemática tradicional, como a Pitagórica, o dois é metade do um (3). Ou, na linguagem da Metafísica, o Dois nasce da polarização do Um, não o um numérico quantitativo, mas a Unidade primordial, o Ser (princípio dos seres). Para que o mundo se manifeste, o Ser primordial se polariza e desta trama e urdidura se desenrola uma progressiva diferenciação que engendra os seres, processo que se baseia analogicamente naquele da formação dos números, do Um ao Dez, fundamento de toda Matemática tradicional:
Segundo a Kabala, o Absoluto, para se manifestar, se concentra em um ponto infinitamente luminoso, deixando as trevas em sua volta; esta luz dentro das trevas, este ponto dentro da extensão metafísica sem limites este nada que é tudo dentro de um tudo que é nada, se assim podemos expressar, é o Ser no seio do Não-Ser, a Perfeição ativa (Khien) dentro da Perfeição passiva (Khouen). O ponto luminoso é a Unidade, afirmação do zero metafísico, que é representado pela extensão ilimitada, imagem da infinita Possibilidade universal. A unidade, ao se afirmar, para se fazer o centro de onde emanarão como múltiplos raios as manifestações indefinidas do Ser, está unida ao Zero que a contém em princípio, no estado de não-manifestação, aqui já aparece em potencialidade o Denário , que será o número perfeito, o desenvolvimento completo da Unidade primordial. (4)
Assim teria iniciado a abertura dos horizontes cosmológicos. Com a luz , a visão mais ampla da diferenciação, das alteridades. O céu era uma parte só. O sol e a lua já estavam lá. O sol já estava clareando o céu. Na mitologia Xavante, dois meninos se transformarão em sol e lua.
A diferenciação abre o mundo das formas. Na penumbra, o olho descobre a forma, no espelho vê o rosto, a face. "Isto sou eu!" Começa a surgir o senso de identidade. Ela traz certo êxtase, como uma criança que se deleita em descobrir seu corpo, seu rosto. A auto-imagem. A palavra êxtase vem de ex-stare, "estar fora de si". O ser humano sai de dentro de si, ou para fora de si. Cosmologicamente, a diferenciação acarreta uma saída, e, portanto, certa perda da interioridade para a exterioridade. Então foram abertos os olhos de ambos (Adão e Eva), e reconheceram que estavam nus (...) (Gênesis, 3-7). O ser humano se vê em sua auto-imagem, como algo fora de si. O espelho e a exterioridade.
Conta a mitologia grega que Nêmesis, a deusa filha da noite, encarregada de exercer a vingança divina contra o orgulho humano, resolveu castigar Narciso, filho do deus-rio Cefiso e de uma Ninfa. Embora as Ninfas o perseguissem, enamoradas de sua beleza, Narciso desprezava o amor. “Um dia (Nêmesis) fez com que Narciso contemplasse o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, onde fora se refrescar. Insensível a tudo mais, ali ficou o moço, extasiado diante da beleza do rosto que via no fundo da água. E assim permaneceu até morrer. No lugar onde morreu brotou uma flor que se chamou narciso” (5).
A abertura não traz apenas alegrias, visões de espaço e beleza. Saindo da indiferenciação protetora da escuridão primordial, a forma se vê como identidade verdadeira. Crê no que lhe parece ser. "Isto sou eu!" Cobertos pelo véu de Maya - que faz as formas se esquecerem da verdade de sua origem na não-forma - os seres (as formas) se vêem diante de outras formas. No mito Xavante, a luz evidencia uma estranheza: o fechamento da abóbada celeste. A abertura traz sua outra face, temerosa: a prisão do Cosmos.
De repente surgiu algo subindo, aquela fumaça, igual fumaça. O início era como neblina, fumaça, hunhizé, subindo. Todos acharam: “Que coisa estranha que estava vindo!” Não estava bom para eles, não estavam achando bom isso. Eles não queriam que o céu se criasse. O céu estava começando a subir, e eles não gostaram, não estavam achando muito bom isso. Queriam que limpasse, não estava agradando isso. Então eles queriam derrubar, antes que o céu se desenvolvesse por inteiro. Queriam derrubar, derrubar, derrubar.
Estranheza, derrubar, derrubar. Alteridades. Espaços de ocupação, a ameaça trazida pela existência de outros. O espelho, rosto, forma, eu, diante... O Eu. “Que coisa estranha que estava vindo!”
O Eu, diante do Outro. E o paradoxo: para o outro, nós somos o outro.
Neste amplo campo ardiloso do eu e do outro, encontramos um desafio ainda mais exigente: quanto mais diferente for a cultura do outro, tanto maior o esforço necessário para sua compreensão, aceitação e relacionamento. Para a sociedade brasileira, as tradições indígenas são o outro mais distante dela.
Como vamos adentrar por este mundo do outro, indígena, muito distante da forma de viver e pensar de nossa sociedade ocidental moderna, e vê-lo não segundo os nossos olhos, mas a partir dos olhos dele, ao menos o mais próximo possível?
Para compreendermos o outro, necessitamos procurar nos despir de nossas pré-concepções com as quais tendemos a projetar nossa visão de mundo sobre o outro. Temos de abrir um espaço de acolhimento para a estranheza que o diferente nos coloca, talvez ele nos abra a percepção de uma dimensão de nós até então desconhecida, oculta. Esta é uma questão complexa e um grande desafio para o conhecimento e convivência. Quando nos aproximamos do universo indígena, chegamos com nossa bagagem de conceitos, quase sempre pré-conceitos. Meu trabalho com os povos indígenas, e mais especificamente junto com os velhos narradores Xavante, revela muitos desafios para o conhecimento de suas tradições, espiritualidade e cosmologias.
O primeiro grande desafio é o nosso olhar colonizador. A história da colonização não se encerrou. Ainda tem muitos braços. Sutil e não menos violento, são os condicionamentos intelectivos da cultura ocidental introjetada em nosso olhar. Olhamos o mundo segundo os padrões cristalizados em nossa mente. Nesses padrões, a ignorância determina como efeito a aversão, ou o seu aparente oposto, o romantismo. O índio, o bom selvagem, pensava Rousseau. O deleite pelo exótico.
Uma primeira camada destes padrões ignorantes é aquela mais grosseira: índio é sujo, atrasado, primitivo, preguiçoso, retarda o progresso, tem muitas terras, é selvagem, e perigoso. Chegou-se a dizer que índio não tem alma, portanto a conversão catequética era um ato de misericórdia salvadora. Houve até um caso de um prefeito do interior do Brasil que editou um decreto proibindo a entrada de índios em “sua” cidade. Ou restaurantes que não servem refeições a índios, mesmo que estes tenham dinheiro para isto. Para não falar de outros temas como o relativo descuido para com a saúde indígena, a demarcação de suas terras, a cobiça dos grandes interesses pela madeira, minérios e recursos naturais no subsolo das Terras (reservas) indígenas.
Uma segunda camada é a da ignorância letrada. Um pesquisador mostrou um desses aspectos equivocados que tomamos como verdade. Muitos livros de História do Brasil nomeiam a progressiva história colonial como “Povoamento do Brasil”. Mas, mostra este pesquisador, isto poderia (e talvez até deveria) ser olhada por outro ângulo: considerando que havia de cinco a dez milhões de indígenas no início da colonização, e hoje temos cerca de quatrocentos a quinhentos mil, o termo correto seria a história colonial ser referida como “o período do despovoamento do Brasil”.
Pensadores como Sullivan mostram que muitos dos conceitos da ciência Antropológica, como mito, rito, religião, História, símbolo, cultura, povo, ideologia, sagrado, embora possam ser até certo ponto operativos para um primeiro apoio cognitivo do “outro indígena”, tendem a nublar nosso olhar diante da plena e criativa presença desse universo indígena. Esses termos são freqüentemente criados, ainda que inconscientemente, para evitar a presença esclarecedora dessas culturas na história (6). Os padrões de ignorância condicionada se tornam ainda mais limitantes quando se trata da complexa esfera de realidade do mundo mítico-religioso indígena, com seu alto grau de sutileza, em suas formas tão distintas do familiar religioso do mundo ocidental.
Dentre esses conceitos, talvez o mais problemático seja o de “religião, sagrado”. Não existe entre o povo Xavante a noção de uma esfera do “religioso” que o distinguisse do “não-religioso”. Quando falam no “religioso”, é para se referir aos missionários e, por extensão, ao Cristianismo. Não há para eles um “campo da religião”, em distinção de outras áreas da vida psíquica, social e simbólica, ao menos nos moldes com que se entende e se vivencia o religioso no mundo ocidental moderno, em que se associa o religioso às noções de culto, adoração e esfera da vida dirigida ao transcendente, já bastante desconexa das outras esferas da existência cotidiana. Os velhos acreditam e confiam em seus criadores míticos, “mas não vão chorar e rezar no pé deles”, o que não significa que eles não sintam certa “saudade” desse povo primordial com seus poderes, o que traduz o reconhecimento dos velhos sobre a sua Alteridade em relação aos seres primordiais, que é o fundamento da própria identidade Xavante (eles se autodenominam A’uwe, que significa “povo verdadeiro”).
Conceitos como “transcendente, imanente, religião, espiritual, natureza/sobrenatureza” precisam ser revistos à luz da própria visão indígena. É preciso procurarmos nos aproximar da compreensão do mundo indígena através da apreensão dos conceitos e significados com que eles mesmos, como agentes de sua cultura e História, se percebem a si mesmos. Conceitos com os quais eles se auto-referenciam, através dos quais eles compreendem seus fundamentos, suas origens, seus símbolos e paradigmas de ação no tempo e espaço. Nos conceitos próprios do mundo indígena estão as vias de acesso para a compreensão do conteúdo de seus universos míticos.
Compreender e descolonizar nossa percepção e projeção de nossa ignorância sobre o outro, ainda mais se tratando do “outro indígena”, não é fácil. Exige um constante trabalho de revisão dos nossos padrões intelectivos, éticos e de ação. Mas é também importante sabermos aceitar que, ainda que nos esforcemos para ganhar uma proximidade com o olhar do outro, há limites de consciência possível para a compreensão da cultura do outro, embora possamos reduzir esse limite através de um esforço de re-educação e educação de nossa mente. E isso significa muitas vezes, entre outras coisas, uma des-construção e re-construção de nossas idéias e atitudes.
Há uma terceira camada de ignorância, que condiciona não apenas nosso olhar sobre o outro indígena, mas sobre toda a realidade: a pretensa auto-identidade do ego, o “Eu”. Supomos, pela ignorância, que nossa ipseidade é esse senso do “eu”, a identificação com nossos agregados psicofísicos, que tomamos como sendo o “eu”. Na doutrina budista, esses cinco agregados (corpo, sensações, percepções, formação mental e consciência) são chamados de agregados do apego, pois, segundo os ensinamentos do Buddha, são a raiz do sofrimento, gerado pela cobiça, a aversão e a delusão. Esses agregados são não-eu, anatta. “(...) Monges, qualquer corpo (ou objeto sensorial), qualquer sensação, qualquer percepção, qualquer formação mental, qualquer momento de consciência, seja interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, passada, presente ou futura, eu digo que todas devem ser vistas como na verdade são, com correta sabedoria, com insight perfeito, assim: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu’. Vendo dessa maneira correta, tendo consciência deste corpo e de todas as condições externas, não surge a tendência ao conceito “eu” e “meu” em relação a esses cinco elementos da existência” (7).
A falta de visão correta cria a prisão na teia da ilusão, em que o “eu” busca proteger sua pseudo-identidade, se agarrando não só ao mundo exterior, como também ao seu “mundo mental”, construído de representações de si mesmo equivocadas, e reagindo com aversão, ódio e violência, chegando até à guerra, quando o “eu” e o concomitante “meu” e “mim” se sentem, em sua cobiça e desejo, ameaçados “pelos outros” ou pelas barreiras das condições externas. A alteridade carrega em si a potencialidade do conflito (8).
Mas a dualidade é sinônimo apenas de conflito e separatividade irredutível? É preciso uma compreensão clara e correta da realidade existencial, e esta pode ser apoiada pela Metafísica, Cosmologia e Religiões Comparadas (9).
Imbricada na própria dualidade, está a outra face talvez não vista por Narciso: a verdade da interdependência de todos os seres. A interconectividade dos seres cria o espaço para abertura ao outro, a comunicação, a solidariedade e a compaixão. Aqui se coloca um ponto fundamental: a perspectiva espiritual correta. Teoria e prática, indissociáveis. Trata-se de compreender que tomar o “eu” como sendo a verdade última da ipseidade humana é a grande ilusão e fonte de sofrimento para consigo e na relação com os outros. Quando Cristo afirma o segundo mandamento do “amar ao próximo como a ti mesmo”, quem é “o próximo” a ser amado?
Em um nível mais exterior, tendemos a considerar “o próximo” como apenas os humanos (às vezes nem isso), esquecendo de incluir os outros seres do mundo, os não-humanos. Basta ver como nossa época tem tratado com agressão os demais reinos da Natureza, como os animais, as florestas, o meio ambiente (10).
Mas como vemos os seres, e mais especificamente os seres humanos? Se nosso olhar enxergar os humanos apenas como realidades corporal e psíquica, embora esse amor seja importante, ainda mais nesses tempos de um mundo cada vez mais agressivo e egóico, será, entretanto, um amor restrito ao âmbito da individualidade dos seres, um amor parcial, limitado, marcado pela preferência. Poderá inclusive permanecer numa esfera de um vago e superficial sentimentalismo.
Há um nível mais profundo que passa por uma compreensão maior do que seria este “o próximo”. No Corão está dito que Deus está mais próximo do homem que sua veia jugular (Surata 50, versículo 12, Kaf). (11).O sentido mais profundo do “próximo” refere-se ao princípio divino, a verdade última, e não ao “eu”-individualidade psicocorporal, agregado efêmero e residência da ilusão. Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo (Matheus, 16, 24). Talvez o que o Cristo esteja orientando é que se ame a ipseidade que se manifesta na diversidade dos seres, respeitando e cultivando o bem querer pela singularidade de cada ser, o múltiplo do Uno, mas atentos para não fazer da individualidade a verdade última dos seres, pois ver a diversidade como algo em si, fechado e autônomo, é cair no pior erro, o da ilusão da separatividade, da independência e auto-suficiência ontológica dos seres, pretensão que os torna incompreensíveis e sem sentido, e não haveria como amar a ilusão sem nexo.
Poderíamos ver este ângulo como um dos importantes pontos que aproxima o Cristianismo do Buddhismo e de muitas (talvez de todas) Tradições: a delusão que temos sobre o quê realmente somos nós mesmos, delusão fruto da ignorância que mantém os seres no ciclo da existência condicionada. Se o amor ao próximo, seja por sentimentos ou obras de caridade, não for compreendido à luz do que seja este sentido do “próximo” mais profundo, correremos o risco de restringir o “próximo” à uma imagem refletida de “nosso” próprio ego, cujo orgulho crescerá com “nossos” atos tomados como provas de “nossa” bondade. Seria por acaso que o maior dos sete pecados capitais seja o orgulho? No exercício das importantes virtudes da Compaixão e Caridade, o primeiro passo é investigar a pretensa substancialidade do ego, e o significado mais profundo de sermos bem-aventurados “pobres de espírito”. O vazio do ego. (12).
Todos os seres querem ser felizes, e buscam fugir do sofrimento. O instrumento que aqui estamos escolhendo para arrefecer o sofrimento é a Educação. O que seria uma Educação orientada pela Sabedoria, que abra espaço para a acolhida do outro? Sabedoria não é sinônimo de informação. Em nossos dias, há uma grande disponibilidade de informações, mas o que dizer da formação? Diz a Sabedoria: Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra (...). Bem aventurado o homem que me dá ouvidos, velando às minhas portas a cada dia, esperando às ombreiras da minha entrada. (Provérbios, 8, 23-34).
Se olharmos a raiz latina da palavra educar, veremos que provém do prefixo e (“para fora”) e ducere (“conduzir”). Educar significa “trazer para fora”, para a luz, algo latente. Também tem o sentido de “erguer, levantar”. Algo análogo ao conceito grego de Paidéia, proveniente da raiz pais, paidós, “menino, filho”. Educar seria “domesticar, domar, ensinar”, como um pai que toma a sua própria mente como seu filho, e o ensina a lapidá-la. Mas o que nós humanos temos latente, que caberia à Educação expressar e lapidar? Nossas tendências saudáveis, como o amor, a amizade, a sabedoria, a arte, a beleza, a propensão à iluminação libertadora. Mas, também, temos nossas tendências latentes não-saudáveis da cobiça, do ódio e da delusão. E a maior das delusões é o apego à crença de que o ego, o eu, seja nossa identidade verdadeira. Desapegar-se dessa crença não é fácil: Cuidai vós que vim trazer paz à terra? Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três (S.Lucas, 12, 51-52).
A re-educação, esforço e luta interior, para além das dualidades e da delusão. Um longo caminho. A grande Paz, momento a momento, presente. Nas palavras de Gandhi: Devemos ser a mudança que queremos ter.
Um homem muito religioso, ao morrer, chegou ao portão dos céus. Bateu no portão fechado. Uma voz do outro lado lhe perguntou: “O que queres aqui? Quem és tu?” O homem respondeu: “Sou Fulano de Tal, dediquei minha vida à oração e à caridade, quero agora minha recompensa”. Ao que a voz respondeu: “Aqui não há céu nenhum, vá procurar em outro lugar”.
O religioso voltou à Terra, e depois, ao morrer, insistiu no seu direito à recompensa, batendo no portão. A voz lhe perguntou: “O que queres aqui, quem és tu?” O religioso repetiu que era Fulano de Tal, e listou suas novas boas obras no mundo. A voz lhe mandou buscar a recompensa em outro lugar, voltar à Terra, ali não havia céu nenhum.
O religioso voltou à Terra, passou mais uma vida meditando, e ao morrer, novamente bateu no portão.
A voz perguntou: O que queres aqui? Quem és tu?
O religioso respondeu: Sou Tu.
O portão se abriu.
Notas
(1) Trabalho apresentado no I Simpósio de Ciências da Religião: Religião: Alteridade e Educação, 25-27 Agosto 2008, Faculdade de Ciências da Religião, das Faculdades Integradas Claretianas, SP. Meus agradecimentos a Zlatica de Farias , pela revisão e contribuições sugestivas.
(2) Shaker, Arthur. 2002, p. 79.
(3) Sobre o tema, veja, entre outros: Santos, Mario Ferreira. 1965.
(4) Guénon, René. 1976 a , pg. 58-59.
(5) Guimarães, Ruth. 1983, p.228.
(6) Sullivan, Lawrence E. 1988, p. 16-17.
(7). Yogavacara Rahula Bhikkhu, 2006, p. 23, extraído do Samyutta Nikaya, XXII, 79, Vol. III, p. 916.
(8) Shaker, Arthur. 2003, p. 110.
(9) Sobre a Metafísica e a Cosmologia, veja Guénon, René, 1976 b.
(10) Sobre este tema, veja, entre outros: Nasr, Seyyed H. 1977.
(11) Dawood, p.122, Challita, p.283.
(12) Shaker, Arthur. 1999, p. 43-44.
BIBLIOGRAFIA
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______________ La métaphysique orientale, Paris, Ed. Traditionelles, 1976 b.
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega, São Paulo, Cultrix, 1983.
LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros Jesuítas do Brasil, 1954, São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. v I.
NASR, Seyyed H. O Homem e a Natureza, Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
SANTOS, Mario Ferreira dos. Pitágoras e o Tema do Número, SP, Ed.Matese, 1965.
SEREBURÃ et all (SEREBURÃ; HIPRU; RUPAWÊ; SEREZABDI; SERENIMIRAMI). Wamrêmé Za’ra, nossa palavra: mito e história do povo Xavante, São Paulo, Senac, 1997.
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______________ Romhõsi’wai hawi rowa’õno re ihöimana mono – a Criação do mundo segundo os velhos narradores Xavante, tese de doutorado, IFCH, Fac. Ciências Sociais, Etnologia Indígena, UNICAMP, Campinas, 2002.
_______________ A travessia buddhista da vida e da morte – Introdução a uma Antropologia Espiritual, Rio, Gryphus, 2003.
________________ O lugar do Homem nas doutrinas tradicionais, p. 37-48, Revista UNICLAR, ano IX, no. 1, SP, Faculdades Integradas Claretianas, nov. 2007.
SULLIVAN, Lawrence E. Icanchu’s Drum: an orientation to meaning in South American religions, New York , Mac Millan, 1988.
The Connected Discourses of the Budda. A Translation of the Samyutta Nikaya, tradução do Páli por Bhikkhu Bodhi , USA , Wisdom Publications, 2000.
YOGAVACARA Rahula Bhikkhu. Superando a ilusão do Eu, SP, Edições Casa de Dharma, 2006.
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Indigenous Spirituality
and 500 years of modern ambition
Arthur Shaker
A letter to indigenous friends,
Friends: indigenous peoples have undergone much suffering since the 500 years of modern ambition. Dark forces have been at work in the world since a long time, bringing much hardship for traditional people all over the world. Hard times are still ahead. To continue defending the traditions inherited from our ancestors, we need to understand what these dark forces are and how to deal with them.
It was ambition that arrived here in the Americas, as well as to Africa and Asia. This much is known. Ambition is a disease burning in man's mind since ancient times. Where does this ambition come from? We hold within us a fire, it's like an energy, that conect us with the Invisible. This energy can conduce our spiritual path or can be a fire of greed. When we do not correctly understand what this fire is, and how to control it, the fire becomes ambition that deceives and destroys. And this is what is happening with the modern mentality.
This fire is wisdom and power, light and heat. The Mbyá-Guarani teach that Ñamandu Ru Ete, when creating the world, told Karai Ru Ete, the lord of fire, to place the sacred fire tataendy above the heads of humans, so as to bring strength. But, so that the fire not become too intense and dangerous, Ñamandu asked Tupã Ru Ete, the lord of the waters and of thunder, to place temperance, moderation, yvára ñemboro’y in the heart of humanity.
By controlling the fire, the shamans are able to travel to and dream of other, more profound worlds. But to know and control this fire is difficult, needing much effort and the correct guidance. Only traditional peoples possess the powers to do this. When we say traditional, or Tradition, some modern thinkers get upset and do not want to understand. They think it is something backward, the opposite of progress. We are traditional peoples because what sustains and drives us are the laws that spiritual creators have brought from the wonderful world of Supreme Reality, or from those who realised enlightnement, like the Buddha.
Some of the modern thinkers says that indigenous peoples are very different from each other, and that for this reason it is impossible to speak of "indigenous peoples", for they have nothing in common. And if they have nothing in common, then they can never become united. It is indeed true that there are many differences between indigenous peoples, and these differences are important and must be respected. The Sioux of North America are different from the Maya of Guatemala, the Xavante of Brazil are different from the Aymara of Peru. Indigenous peoples are many, with differing languages and traditions. But all of them speak of the origin of their peoples, and of the plants and animals, as having been a deep spiritual foundation.
I am using words to speak of this spiritual world, words like spirit, spiritual and spirituality, metaphysical foundations. I am aware that they are words that come from the language of the white man, they are not words from an indigenous language, and for this reason they do not correctly translate indigenous thought, and should therefore be treated with care. But they serve for this initial dialogue.
It is true that every indigenous people has its own way of living and communicating with the world of the spirits. But here also is a truth that is basic to all indigenous peoples: all of them say that their creators had great spiritual power, that every sencient being that lives has some kind of consciousness, all they say that this world is linked to the Invisible. Indigenous peoples are different, but all of them came from the Invisible. It's like the rainbow in the sky: there are many colors, but all of them come from pure Light, which, as it passes through the moisture in the clouds, opens up into many colors. Is not the Invisible the Great Mystery of the root of all peoples, animals, plants and cosmologic beings?
Everything that is living has within it this fire from the Invisible. It is this fire that causes birth, growth, joy and the happiness of dance. Many spiritual traditions say that when their beings of power created the world, they taught their people the laws of living in such a way that this fire would not consume everything. These are the laws of the Tradition, which defend humans, trees and animals and allow conversation with cosmologic beings. In the ancient hindu and buddhist traditions of India, from where my spiritual education comes, this Law that sustains and is present in everything, is called Dharma (Dhamma). In hindu tradition there is also creators. In the tradition taught by the Buddha, however, there isn't nor this same conception about a god-creator, neither a eternal soul or spirit. We don't want to ignore that there are affinities but also diferences among the cosmologies amd the paths to spiritual realization. But we see that there is also a close conection with the notion of the Ultimate Reality. And that to realize it, we must understand and live according to the proper spiritual teachings of each spiritual tradition. Modern world forgot these laws, the fire became ambition and took control of his thoughts, like a python with a huge mouth always eating but never satisfied, till one day it explodes.
When we speak of the modern world, we are not talking of race or skin color, as we are against any form of racism or prejudice. When we speak of the modern world, we are referring to a type of mentality: the modern mentality that began with the West civilization the last five hundred years ago and that has spread around all the world. It is dominated by a materialistic and no-spiritual mindset and attitude toward life and traditional peoples.
This ambition in modern civilization has been planted in the world as a seed since its creation. Men of wisdom in India say that the world was already born with all the seeds that will ever sprout. In the beginning the world was more luminous and those seeds with more spiritual power and light sprouted first. The world was closer to its magnificent origin. Many indigenous peoples say that it is for this reason that in ancient times the word was a creative force, the word alone was sufficient to make the things appear. The Xavante tell that at the time of the creators, all had power, but that there were special beings that had much greater power, and these were the creators. They could create just with their will power. They used their thoughts to create the food plants and animals, already with names.
However, many laws began to be broken. This was inevitable due to the world's course, and with this much metaphysical power has been lost. As the cosmic cycle unwinds, new worlds are born with less power and light, each further removed from this metaphysical power, and at an ever-accelerating speed. By the time this process comes to a close, a world will have ended. Many traditions have already appeared and disappeared.
Not that a tradition ends, it is simply re-absorbed into the Great Invisible Mystery. I have never heard any traditional people say that the world is becoming more luminous. This idea of progress and evolution was invented by the thought of the modern white man. For traditional peoples, the opposite is true. Hindu tradition holds that the Cosmos is being drawn downward. In modern western civilization, materialism has grown tremendously and ambition has taken over everything, destroying nature and the indigenous peoples. This sickness has today spread all over the world.
The expansion of this ambition brought the invasion of America, Africa and Asia and was part of this cosmic downward trend. Nothing happens by chance. Hindu tradition says that we have for long been in the fourth and final stage of this cycle, a phase called Kali Yuga, the Dark Age. This truth also appears in many indigenous traditions. The spirituality of the world and of humanity is rapidly being lost, and time passes ever more quickly.
Ever darker and more heavy, the world is being drawn downward, like a river's current taking everything before it. To struggle against this current many traditional peoples have rituals and knowledge to defend the equilibrium of life on Earth and maintain contact with the world of ujther spiritual beings. In traditions like Buddhism, however, rituals are not so much important, the emphasis is on the path of mind purification by the practice of the Noble Path of virtue, concentration and wisdom. This includes respect and protection of the Earth and all living beings. But perhaps a time will come when it will no longer be possible to protect the world.
Looking at the Western history, we see that western societies also had their spiritual laws in Christianity. But over five hundred years have passed since they began to break these laws and turn their backs on the values of their Christian tradition. History shows when another warlike people blocked the overland route of the Western societies’ trades with the peoples of the Orient, trade became difficult. The great western traders then decided to ally themselves with government and gave a lot of money for ships to find new overseas trade routes. Thus began the great ocean voyages in search of new lands and wealth. Ambition had begun to grow.
Christianity taught that it should live a life of respect and friendship for others, and that thoughts should always be with God. And that one should have little ambition for material things but rather strive to follow the example of Christ in order to reach Heaven, where all is good. But this was forgotten. The tradition began to weaken. Wealth and profit became their most important desires. They wished to make much profit, taking the land and the wealth of others. This was all they thought of. And this became like a fever in their heads.
Those seeds of material ambition that had been kept within the world since ancient times began to want to grow like fire in the forest. And this mentality opened the doors to the violent growth of these terrible seeds. The ancients said that this was bound to happen, that this was fated to happen, because the dark seeds are also within this world and have to sprout and grow and spread until there are no more. The stories of the ancients say that similar things have happened at other times in the past. But now the danger is much greater, as it is threatening the spiritual equilibrium of the entire Earth. For this reason the ancients say that modern materialistic mentality is madness and they are worried that it will destroy the world.
The indigenous spiritual leader Davi Kopenawa, of the Yanomami people, said that rotukala, the world, is tired. And that the time will come when our world will explode. He said that one day the whites will remember his words, because pollution is increasing, reaching the forest, killing the trees, falling in the rivers and killing the fish. Pollution falls in the city and is carried far and wide by the wind. He said that the Indians who are taking care of the planet are falling sick, and that when rotukala falls on us, there will be nowhere to run and nowhere to hide. Modern civilization is like a snake swallowing indigenous peoples. When all the shamans are dead, the world will wobble and disintegrate, and no one will escape, not even the whites. The sky will explode and fall, flattening the earth. Is it this what humanity wants?
Modern society takes pride in its industrial products, talks of progress and development, but those who work inside a factory, do they think that this kind of work is wonderful? The indigenous peoples, do they ever accepted this way of working?
Along with it, arrised a kind of thinking, where men, society and Nature have no more spiritual meaning. All traditional peoples say that our visible world is only an appearance, a shadow of that other magnificent and luminous world, the Invisible. Our world is like a mirror, reflecting only a little of the brilliant world of Invisible. There are many worlds peopled by magnificently adorned spiritual beings, what we call the devas. These worlds are like layers of light over the Great Mystery. No traditional people believes that there is only this material and visible world. Our world is only the surface of an Infinite Luminous Ocean.
Many thinkers in modern society say that this knowledge held by indigenous peoples is not science, it is only a "belief". They study indigenous peoples all over the world, but did they understand them correctly? Why do they call the wisdom of indigenous peoples a "belief"? Aren’t they using the word "belief" to belittle traditional knowledge? Since much of the modern "science" no longer has any connection to the Invisible, they therefore wish to reduce the force of indigenous knowledge by using the name "religious beliefs". Sometimes they go so far as to say that these "indigenous beliefs" should be respected as they constitute the thinking of indigenous peoples, but in fact many of them feel that indigenous knowledge does not have the same force of truth as modern "science". Instead, they still think that the West has made great progress in knowledge, leaving Christian spiritual knowledge behind and creating "the true scientific knowledge". But what is a "true scientific knowledge"?
When we study this in depth, we can see that it is only in modern western thought that we find the idea that only the visible and material world exists, and that man descends from the ape. They hold their materialistic knowledge as being "scientific and true", whereas the knowledge of traditional peoples is called "religious belief" and "non-scientific". The truth, however, is that they are both sciences, but modern science does not connect the visible world with its Invisible Root. The sciences of traditional peoples are, on the contrary, always aware of this link to the Invisible. This means that the conflict is not between "science" and "religious belief", but between two kinds of science: modern science shorn of spirituality and the sacred traditional sciences. Not that modern science is totally wrong. It possesses a quantitative view of phenomena and based on this has created modern technology and facilities. However, the problem is that this quantitative view sees only the surface of phenomena, and therefore cannot claim to be the only and most correct way of perceiving phenomena, as it possesses neither the quality nor the depth of traditional knowledge.
Take, for example, the Sun. For modern science, the Sun is merely a mass of exploding gases producing energy in the form of light and heat. However, for the Desâna, the Sun is more than this. According to their myths, in the book Antes o Mundo não existia, the Sun is the creation of Yebá bëlo, the grandmother of the universe, and her great grandson, Yebá ngoaman. With her ceremonial scepter-rattle, yéi waí ngoá, decorated with mahá weá iëhse (macaws, many feathers) and with abé põn mihi (sun, earrings), the tip of the scepter turns into a human face radiating light. This was the Sun being created and emerging.
Today we are in the middle of a serious ecological crisis. Many of us are worried about the pace of environmental destruction. This is the result of western civilization having cut the bond between Nature and the Invisible. It has taken the spiritual quality from Nature and turned into an article for consumption, as only a material thing without spiritual meaning, serving only as raw material for the production of merchandise. Many measures have been demanded in defense of the environment, which is of importance, but it has to be shown that Nature is being destroyed as a result of the great ambition for consumption that has taken control of the world. Many people want to save Nature, but do not want to reduce their appetite for consumption. What is called an ecological crisis is also a consequence of the non-spiritual mindset of the modern world.
The modern world turned its back on its objective and its spiritual responsibility for the planet. For this reason the Earth is tired. For this reason the shamans say that when they end, the world will end, because it is they who still fight to defend the spiritual equilibrium of the world. But everything in this world has a limit.
It is not only Nature that has been stripped of its spirituality. The modern mentality has also created a materialistic society without spiritual meaning. The modern mentality created a society which is no longer governed by spiritual laws, Dharma, but by economic and political power and affairs. Indigenous peoples still are treated with discrimination and prejudice, forcing them many times to accept laws that are not the laws taught by their spiritual creators. When an indigenous people claims the right to follow its own laws, and to affirm that they have their own identity, it becomes evident that liberty, equality and fraternity not always are applied to indigenous rights.
The modern mindset also robbed man of his deep spiritual foundation and create an idea of man that is only body and brain, a hungry stomach and a head in which only rational thought and sensations function. This is what we see, the mentality of rationalism. Rationalism is a way of seeing the world without its spiritual meaning. Traditional peoples also know how to use rational thought, reason is an important human quality, but we know that reason is not alone sufficient. Reason only works correctly when it is guided by the voice of the spiritual root, which lives not in the brain but deep inside the mind-heart.
Without the understanding brought by our inner spiritual foundation, the interior fire is transformed into a madness that destroys the world. This what we are now witnessing. The last five hundred years of violence against indigenous peoples is not restricted to only physical and mental violence. It is the violence against spiritual truths that are at the root of humanity.
Indigenous friends:
May you all keep in the courage and wisdom to protect your tradition, and overcome the difficulties of these modern days.
May all beings wake up to the deep truths, and guided by them, may they protect themselves and all beings, and overcome the sufferings of body and mind, sufferings caused by greed, hatred and delusion.
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Veja outros textos sobre o tema:
a Espiritualidade indígena e os 500 e tantos anos da ambição moderna
A espiritualidade indígena e a Natureza
A espiritualidade indígena e a Natureza
Culturas Indígenas
Guarani é oficializado como segunda língua em município do Mato Grosso do Sul
O guarani é a segunda língua oficial do município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul. O município é o segundo do país a adotar um idioma indígena como língua oficial, depois da sanção, pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 24 de maio, do Projeto de lei que oficializa a língua guarani em Tacuru. Com a nova lei, os serviços públicos básicos na área de saúde e as campanhas de prevenção de doenças neste município devem, a partir de agora, prestar informações em guarani e em português.
O primeiro município do Brasil a adotar idioma indígena como língua oficial, além do português, foi São Gabriel da Cachoeira, localizado no extremo norte do Amazonas. Além do português, São Gabriel tem três línguas indígenas oficiais: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa.
Em Tacuru, pequeno município no cone sul do estado do Mato Grosso do Sul, próximo ao Paraguai formado por uma população de 9.554 habitantes, segundo estimativa do IBGE de 2009, 30% de seus habitantes são guarani residentes na aldeia de Jaguapiré, situada no município. A maioria dos 3.245 indígenas de Tacuru não é bilíngue, ou seja, fala somente o Guarani o que dificulta o acesso aos serviços públicos mais essenciais.
Com a nova lei, a Prefeitura de Tacuru se compromete a apoiar e a incentivar o ensino da língua guarani nas escolas e nos meios de comunicação do município. A lei estabelece também que nenhuma pessoa poderá ser discriminada em razão da língua oficial falada, devendo ser respeitada e valorizada as variedades da língua guarani, como o kaiowá, o ñandeva e o mbya.
O Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS) elogiou a aprovação da medida e argumentou que o Brasil é multiétnico e que o português não pode ser considerado a única língua utilizada no país. O MPF lembrou que o Brasil é signatário do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que determina que, nos Estados onde haja minorias étnicas ou linguísticas, pessoas pertencentes a esses grupos não poderão ser privadas de usar sua própria língua.
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os Povos Indígenas e Tribais determina, dentre outras coisas, que deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros das minorias étnicas possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.
No mês de fevereiro (de 2 a 5), a SID/MinC realizou, juntamente com a Itaipu Binacional, o Encontro dos Povos Guarani da América do Sul - Aty Guasu Ñande Reko Resakã Yvy Rupa que reuniu cerca de 800 índios da etnia do Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina, em Diamante D”Oeste, no Paraná, para discutir formas de fortalecer o intercâmbio cultural entre as comunidades dos quatro países. “Temos no Brasil uma comunidade de aproximadamente um milhão de indígenas, formada por 270 povos diferentes, falantes de mais de 180 línguas”, informa Córdula. Segundo ele, a população indígena brasileira é detentora de uma grande diversidade cultural, que deve ser protegida por seu caráter formador da nacionalidade brasileira. Com esse objetivo, a SID/MinC já realizou dois prêmios culturais (2006 e 2007) voltados para as comunidades tradicionais indígenas. Foram investidos R$ 3,6 milhões para a premiação de 182 projetos em todo o Brasil.
(Secretaria da Diversidade Cultural - Minc)
(Secretaria da Diversidade Cultural - Minc)